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Crítica

Allegro delirium

14.5.2021  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Luiz Maximiano

Artista da imagem e iconoclasta por natureza – a ponto de jogar com a autoimagem deformada em seus escritos extracênicos –, Gerald Thomas aterrissa com suavidade na transposição de Terra em trânsito (2006) para o imperativo da internet. O caráter recorrente de obra aberta agora se estende às pupilas e aos poros de Fabiana Gugli, cuja atuação dignifica o trabalho de comediante com a devida complexidade que lhe cabe. Ela modera o intimismo do projeto com a pulsão espetacular inarredável do encenador. Apenas uma câmera captura sua presença enquanto a concepção audiovisual expande a percepção de quem a acompanha através da tela, desde a sala de sua casa convertida cenograficamente no camarim de uma diva prestes a interpretar o trecho de uma ópera. A distância entre a intenção e o ato se revelará tragicômica no curso do primeiro ao terceiro sinal.

Thomas e Gugli desenvolvem parceria artística há mais de 20 anos, dado que contribui para buscar novos expedientes. Com a impossibilidade da amplidão cenográfica do palco ou das varas de refletores que permitem desenhar visualidades de mundos outrora inabitáveis, a dramaturgia e o desempenho da atuante tornam-se categóricos. São as bases de sustentação poética da filmagem e do desenho sonoro. No equilíbrio de primeiro e segundo planos, desfocagens são assumidas sem pestanejar, opção que dá organicidade à edição. Um acento artesanal inerente às artes da cena, homenageadas nas entrelinhas.

Em meio ao roteiro nonsense, a cantora tenta se concentrar para a interpretação dali a pouco. Gugli interage com um cisne caracterizado de forma animada, manipulado por Isabela Carvalho, sob a voz do ator Marcos Azevedo. Já o texto expõe procedimentos conhecidos da trajetória do autor, como a autoironia, o comentário sarcástico, a apropriação da cultura pop e a troça intelectual, além do recurso da repetição, tanto verbal como gestual.

Quando a atriz Fabiana Gugli aproxima o rosto da câmera parece colar o grau de perturbação no semblante do público, estreitando o vão ocular entre quem observa e a imagem que se ergue. Esse descolamento cognitivo e instrumental faz da recriação online de ‘Terra em trânsito’, direção e dramaturgia de Gerald Thomas, um desbravamento das possibilidades dos trabalhadores das artes e da cultura distanciados

Autodeclarado homem de lugar nenhum, Thomas coloca-se, ou assim se insinua, tanto na voz da solista como na do cisne judeu, alter ego mais explícito. Até a metade da apresentação, a ave posa de ombro amigo da diva que não dissimula fazer dela um patê de fígado. Mais adiante, o ser animado muda a chave e posiciona-se com mais veemência, na condição de intelectual amigo do poeta Haroldo de Campos e contemporâneo da contracultura.

Na mixórdia de acontecimentos geopolíticos na Europa e nos Estados Unidos, com alusões ao regime da necropolítica à brasileira, Terra em trânsito pode dar a impressão de que pulveriza sua dimensão política. Ao cabo, contudo, o delirium tem razão de ser: é também uma estratégia crítica. A situação da artista que se vê refém na antessala, preparando-se para interpretar uma parte de Tristão e Isolda, na versão de Richard Wagner, serve de pretexto para uma crônica melancólica do estado de coisas da humanidade.

Há 15 anos envolvida com a peça, Gugli apropria-se da narrativa de tal maneira que as partituras vocal e corporal equivalem a uma dramaturgia à parte, ou melhor, agregada, processando uma síntese singular das estéticas do teatro e do cinema. As falas desconexas dão pistas de um sujeito com percepção alterada por medicamento. Ao mesmo tempo, surpreende a capacidade de expressar atenção e consciência sobre si e os outros.

Quando a atriz aproxima o rosto da câmera parece colar o grau de perturbação no semblante do público, estreitando o vão ocular entre quem observa e a imagem que se ergue. Esse descolamento cognitivo e instrumental faz da recriação online um desbravamento das possibilidades dos trabalhadores das artes e da cultura distanciados.

Luiz Maximiano Fabiana Gugli é a solista enclausurada no camarim com seus delírios, momentos antes de entrar em cena para cantar ‘Liebestod’, sua ária em ‘Tristão e Isolda’, conversando o tempo todo com um cisne judeu na peça de Gerald Thomas que, 15 anos depois, teve a dramaturgia reformulada para o contexto atual

“Olha só como a gente interpreta tudo”, pontua a personagem não nomeada que, em determinados momentos, confunde-se com a própria atriz. Essa consideração lembra o impulso de tentar elucidar sentidos diante da obra de arte que, no caso, não advoga causas, apesar de atravessar problemas da realidade histórica ou imediata.

Thomas chega ao teatro digital saudando, sintomaticamente, o cineasta Glauber Rocha (Terra em transe) e convidando espectadores a experenciar o estranhamento em tempos brutos para a fábula – a inquietude é de mão dupla. Com as imanências de Fabiana Gugli, as potencialidades de comunicação ampliam-se objetiva e sensivelmente, sem matar a metáfora e o chiste, em que pesem as ruínas.

.:. Leia a crítica de Maria Eugênia de Menezes a partir de Terra em trânsito.

Serviço:

Terra em trânsito

Disponível 24 horas por dia no canal da peça no YouTube. Até 31 de maio

Grátis

40 minutos

14 anos

Ficha técnica:

Direção e dramaturgia: Gerald Thomas

Atriz: Fabiana Gugli

Ator convidado – voz do cisne: Marcos Azevedo

Manipulação do cisne e dublê de corpo: Isabela Carvalho

Sound design, operação de som e trilha original: Edson Secco

Cenografia: Isabela Carvalho

Figurino: Fabiana Gugli

Direção de filmagem e edição: Leon Barbero

Direção de fotografia: Luiz Maximiano

Assessoria de imprensa: Ney Motta

Fotos e Design Gráfico: Victor Hugo Cecatto

Produção executiva: Fabiana Gugli

Direção de produção: Isabela Carvalho

Realização: Com Creta Produções

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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