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Crítica

Nonsense em alta voltagem

14.5.2021  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Luiz Maximiano

A loucura merece novas camadas. Em 2006, quando Gerald Thomas estreou Terra em trânsito, George Bush era presidente dos Estados Unidos, o 11 de Setembro ainda ardia como uma ferida aberta e a pandemia da Covid-19 não existia nem como pesadelo. A retomada da peça, passados 15 anos, pode ser compreendida por várias questões de ordem prática – como a facilidade de se recriar a mise-en-scène para o formato digital. Revisitá-la, porém, continua sendo uma maneira oportuna de o diretor jogar luz sobre o absurdo vigente.

No lugar da estupidez algo apática de Bush, entra a maldade atrevida de Donald Trump e de seus seguidores, como o presidente brasileiro. Alterações que antes de enfraquecer o texto original, reforçam alguns de seus aspectos, como a menção ao nazismo e a uma ideia de nacionalismo ancorada em preconceitos raciais e culturais. Um longo discurso atribuído a Paulo Francis abria a montagem presencial. Na versão virtual, essa presença é amainada. Surge apenas como uma citação.

Mesmo assim, muitos dos personagens e dos comentários controversos mencionados na criação parecem estar em sintonia com o espírito polêmico do jornalista brasileiro – crítico de primeira hora do politicamente correto, observador arguto da sociedade brasileiro, mas também adepto das ideias mais conservadoras a partir dos anos 1980. As provocações trazidas pelo autor e diretor seguem nesse campo nebuloso, em que se misturam alfinetadas aos extremistas (“… em Strasbourg, você vai ter que enfrentar a crucificação, os Panteras Negras, os extremistas islâmicos, a Ku Klux Klan…”) e ao esnobismo de quem detém o discurso aparentemente progressista (“Não tem patê. Mas tem óleo de trufas! Uma raspinha de beluga e… Ah, nada melhor!”).

A distância entre cena e plateia, que invariavelmente enfraquece a experiência da recepção, soa, no caso de ‘Terra em trânsito’, como mais uma camada de dramaturgia. Trancada em seu camarim, a diva da ópera se enche de ansiolíticos e dialoga com um cisne, alimentado para ser morto. A referência ao bunker é textual e recorrente. Encerrados em casa, assistimos às mortes e aos espetáculos – nas redes sociais e nos reality shows – que nos entretêm enquanto vivemos nesse hiato-purgatório

A tática de Thomas para dar conta da insanidade atual é mergulhar nessas contradições aparentes e embaralhar as cartas. Não é possível identificar-se com a cantora lírica que alimenta um cisne antes de subir ao palco para uma encenação de Tristão e Isolda. Assim como não seria honesto rechaçar a propriedade com que manifesta seus questionamentos e espantos.

Nada disso é novidade para o diretor. Vivendo em Nova York, o artista se retira de quando em quando da cena artística: em 2009, chegou a assinar um manifesto em que dava por encerrada sua trajetória no teatro. Mas sempre retorna, revisitando os elementos que caracterizam sua obra há décadas. Os personagens algo desconjuntados e impossíveis de destrinchar sob qualquer abordagem psicologizante. Extremos – como o horror e o riso – que se confundem de tão próximos. A sua dramática pós-dramática que tenta dar conta do coma contemporâneo assumindo a esquizofrenia das ações e discursos em voga. As referências aos marcos culturais do século 20, sem perder de vista os onipresentes Haroldo de Campos e Samuel Beckett. O cruzamento de linguagens artísticas.

Para a atual Terra em trânsito, o ambiente do camarim foi adaptado e transportado para a sala da casa de Fabiana Gugli: parceira de longa data da Companhia de Ópera Seca, grupo criado pelo diretor em 1985, e intérprete da versão original. A direção ocorreu à distância e a fruição do espectador dá-se mediada pela tela. Essas transformações certamente impactam a recepção do trabalho. Parece ser, contudo, a tragédia que ocorre no entorno dos espectadores a responsável por redimensionar a obra e envolvê-la em uma moldura tão mais condizente com o “real”.

A distância entre cena e plateia, que invariavelmente enfraquece a experiência da recepção, soa, neste caso, como mais uma camada de dramaturgia. Trancada em seu camarim, a diva da ópera se enche de ansiolíticos e dialoga com um cisne, alimentado para ser morto. A referência ao bunker é textual e recorrente. Encerrados em casa, assistimos às mortes e aos espetáculos – nas redes sociais e nos reality shows – que nos entretêm enquanto vivemos nesse hiato-purgatório.

Luiz Maximiano A atriz Fabiana Gugli celebra parceria artística de mais de duas décadas com Gerald Thomas: “É através do espelho, no jogo de espelhos, que tudo acontece, agora dentro de uma tela”, diz ela no material de divulgação

Algumas passagens do texto foram substituídas para acentuar o diálogo com o presente. Caso das estátuas dos senhores de escravos sendo derrubadas de seus pedestais e dos manifestantes insuflados por Trump invadindo o Capitólio norte-americano. São alterações mínimas, porém, se considerado o grau de ressonância entre a peça e o contexto presente. Indo além: olhando-se para trás, para as circunstâncias de sua primeira montagem, a obra parece que já escancarava os nós insolúveis da dinâmica social contra os quais nos debatemos agora.

O patriotismo revisitado, seja nos Estados Unidos, seja no Brasil, deixa evidente sua carga de neofascismo. Sucedem-se as menções às florestas devastadas, às CPIs que não dão em nada, aos intelectuais convertidos em celebridades. Nem mesmo o esteio na ópera de Wagner, que já estava dado em 2006, passou incólume ao pesadelo que se instalou entre nós. A imagem de um ex-secretário especial da Cultura a emular o discurso de Goebbels ao som de Lohengrin, ópera romântica do compositor alemão, acentua ainda mais a voltagem do nonsense nacional.

Maria Eugênia de Menezes é jornalista e crítica teatral, colaboradora do site Teatrojornal – Leituras de Cena e dos jornais Valor Econômico e O Estado de S. Paulo, onde escreve desde 2010. Também foi repórter da Folha de S.Paulo. Atua como curadora de programas de artes cênicas, como o Circuito Cultural Paulista e o Festival Cultura Inglesa, e jurada de premiações como Bravo! de Cultura, APCA e Prêmio Governador do Estado de São Paulo. É autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo (Martins Fontes, 2014). Foi professora convidada em instituições como CPF-Sesc, USP e Faculdade Cásper Líbero.

.:. Leia a crítica de Valmir Santos a partir de Terra em trânsito.

Serviço:

Terra em trânsito

Disponível 24 horas por dia no canal da peça no YouTube. Até 31 de maio

Grátis

40 minutos

14 anos

Ficha técnica:

Direção e dramaturgia: Gerald Thomas

Atriz: Fabiana Gugli

Ator convidado – voz do cisne: Marcos Azevedo

Manipulação do cisne e dublê de corpo: Isabela Carvalho

Sound design, operação de som e trilha original: Edson Secco

Cenografia: Isabela Carvalho

Figurino: Fabiana Gugli

Direção de filmagem e edição: Leon Barbero

Direção de fotografia: Luiz Maximiano

Assessoria de imprensa: Ney Motta

Fotos e Design Gráfico: Victor Hugo Cecatto

Produção executiva: Fabiana Gugli

Direção de produção: Isabela Carvalho

Realização: Com Creta Produções

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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