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Crítica

A voz oceânica do pensamento

24.8.2021  |  por Valmir Santos

Foto de capa: zé luis ps

Qual o som do silenciamento? Essa pergunta ganha corpo e se torna cada vez mais incômoda na obra em torno da cantora lírica Maria d’Apparecida (1926-2017). A nossa ignorância a respeito da trajetória fulgurante dessa brasileira em solo europeu se agrava à medida que são expostos os níveis de preconceitos de raça e de gênero que circunstanciaram seus 91 anos de vida. A mulher negra, de pele clara, os enfrentou escudada em sua voz, seja interpretando ópera, no registro mezzosoprano, seja no repertório da canção popular ou do folclore de seu país, o mesmo que insistiu em asfixiá-la.

Na autodeclarada peça-filme Maria d’Apparecida: luz negra, a personalidade e o pensamento da artista harmonizam a força do canto, dos instrumentos musicais e dos corpos presentes. Por entre as margens do acervo documental e do lirismo travoso, escoam as águas fabulares de uma criadora sagaz, ciente da constante necessidade do aperfeiçoamento técnico e poético. E versada em sentir na pele o quanto o racismo à brasileira tentou cortar suas asas desde cedo.

Aos 7 anos, por volta da primeira comunhão, ouviu que crianças negras não eram bem-vindas como anjos, a mesma Igreja Católica à qual seguiu devota. Aos 23 anos, formada em canto pelo prestigiado Conservatório Brasileiro de Música, no Rio de Janeiro, soube pela boca de um maestro ítalo-brasileiro: “Você tem uma bela voz, mas você é negra, e negra não canta no Theatro Municipal”.

Talvez não seja por acaso que o recurso da fusão de imagens dos rostos ou de vozes de Dione Carlos e Maria d’Apparecida sejam constantes. E quando se dá o descolamento propriamente dito, no desfazimento das faixas de gaze na bandagem simbólica do corpo “esquecido” no IML cenografado, testemunhamos a catarse da atriz e da mulher negra a atualizar a dor daquela de quem segura firmemente as mãos, cenicamente irmanada na condição de milhões de mulheres submetidas a idênticos níveis de apagamento

Mas D’Apparecida deu ouvido mesmo foi à professora Graziela de Salerno, soprano e pianista que a encorajou a trilhar a música lírica. Venceu um concurso que a levou a récitas na Itália e não demorou a rumar para a França, onde se aprimorou e fez parte do elenco da Ópera de Paris. Ela já tinha assistido a apresentações de cantoras negras estadunidenses em turnê pelo Brasil, como a soprano Jessye Norman. Ficou indignada com a discriminação revestida de complexo de vira-lata. “Moralité: peguei minha valise, peguei meu dinheirinho e fui-me embora”, declarou, cerca de quatro décadas depois, nos anos 1980, em entrevista à Rádio MEC, sempre intercalando expressões da língua francesa – ela que na juventude também foi normalista e locutora de rádio, não tomando gosto para ser professora primária e elevando o trabalho de voz a outras notas.

O ponto culminante da carreira foi o papel-título em Carmen, de Bizet, substituindo Maria Callas, inclusive na temporada do Theatro Municipal do Rio, em setembro de 1965, 15 anos depois do autoexílio (empurrada pela intolerância racial). Além da história da cigana que radicou a liberdade no amor, em ação que se passa na Espanha do século XIX, a programação incluiu uma segunda ópera, Diálogos das Carmelitas, em que a brasileira cantou uma das 16 freiras que se recusaram a renunciar à vocação em plena Revolução Francesa, no século XVIII.

Para apreender a “profunda e sentida existência” da artista evocada, como canta no verso de Sermão, letra de Paulo César Pinheiro e composição do violinista Baden Powell – o mesmo do álbum Os afro-sambas (1966), parceria Vinicius de Moraes –, a dramaturga Dione Carlos foi inspirada pela sagacidade e decidiu não apenas restaurar o próprio trabalho de atriz, relegado a segundo plano na última década de produção textual, como se aproximar do desenho vocal da homenageada.

Vem da autora, numa das passagens intercaladas de bastidor e de performance, uma das guias para essa navegação: “Callas é fogo, Maria d’Apparecida’ é água, é oceânica, é Calunga Grande”, afirma Carlos, quase um cochicho, numa referência à imensidão do mar enquanto ensaiava a gravação de Habanera, como é conhecida a ária O amor é um pássaro rebelde. Nesse momento, fones nos ouvidos, microfone à frente, ela aparece no estúdio ao lado do ator e diretor musical Rodrigo Mercadante e da maestrina e preparadora vocal Ester Freire.

zé luis ps O ator e diretor musical Rodrigo Mercadante e a atriz e dramaturga Dione Carlos em ‘Maria d’Apparecida: luz negra’, que estreou em 11 de agosto no YouTube do Centro Cultural São Paulo e agora está disponível em plataforma própria

A expressão calunga vem do bantu, kalunga, e quer dizer “vazio” ou “espaço oco”. Nas religiões de matriz africana, a palavra também expressa o sentimento de quando algum parente morre, abrindo um espaço oco no lugar do peito. Esse aparecimento do luto também permeia a peça-filme. Afinal, agora sabemos que Maria d’Apparecida Marques, primeira afro-brasileira a interpretar a heroína trágica de Bizet na Ópera de Paris ou no Municipal tupiniquim, passou os últimos 20 anos reclusa. Sua cuidadora a encontrou morta na banheira do apartamento parisiense, em 4 de julho de 2017, e o corpo permaneceu dois meses no Instituto Médico-Legal por razões burocráticas: ela não era naturalizada. Não se casou, não teve filhos e passou a vida adulta sem que regularizasse a documentação que a permitiria usufruir direitos de cidadãos nativos. O enterro só aconteceu depois da mobilização de amigos, admiradores e desconhecidos.

O abandono e a solidão são traços delineadores do final de uma trajetória artisticamente vitoriosa. “Que energias a fez atravessar o Oceano, enfrentar o racismo, vencer as saudades? Que desejos a fez trabalhar para chegar ao ponto em que desejou? Quem é esta mulher cantora que tanto fez para a música brasileira na Europa e especialmente na França e que acabou esquecida nos seus últimos anos? Por que cantava? Como chegou até o sucesso na Ópera de Paris? Quem foram seus amores, o que a fez viver e vibrar?”, pergunta a biógrafa Mazé Torquato Chotil na introdução de Maria d’Apparecida negroluminosa voz (Alameda Editorial, 2020).

Lançado aqui e na França, o livro dessa jornalista e pesquisadora foi uma das principais fontes da pesquisa do diretor Luiz Fernando Marques e de Dione Carlos, contemplada na 11ª edição do Prêmio Zé Renato de Teatro para a Cidade de São Paulo.

A equipe evita o tom apologético e traz D’apparecida para a roda como uma parceira de proa, expoente da família das artes cênicas, a ópera, cujos códigos pediram à dramaturga e aos cocriadores do Grupo XIX de Teatro (Marques) e da Cia. do Tijolo (Mercadante) outras formas de abordagem diante de uma personagem real e das infinitas possibilidades de reinvenção e acionamento de dispositivos audiovisuais nessa altura do ano e meio de distanciamento físico.

Imbuída de uma escrita para a cena atravessada pela politização de temas da violência de gênero e raça na sociedade, ecoando insurgências de mulheres, povos indígenas e população negra por meio de mitologias afro-brasileiras ou bíblicas, Dione Carlos parece encontrar na crítica à invisibilização artística em vida e pós-morte da cantora lírica o grau de identificação parelho à espiral temática das peças dos últimos anos. A ponto de colocar-se por inteira, estendendo sua presença à atuação e ao canto.

Talvez não seja por acaso que o recurso da fusão de imagens dos rostos ou de vozes de Carlos e D’Apparecida sejam constantes. E quando se dá o descolamento propriamente dito, no desfazimento das faixas de gaze na bandagem simbólica do corpo “esquecido” no IML cenografado, testemunhamos a catarse da atriz e da mulher negra a atualizar a dor daquela de quem segura firmemente as mãos, cenicamente irmanada na condição de milhões de mulheres submetidas a idênticos níveis de apagamento.

Os cinco episódios são batizados com a devida marcação do gênero, mapeando um roteiro plausível para contar e cantar a estrangeiridade dessa brasileiríssima que foi A santa, A nômade, A sereia, A cigana e, por fim, A Maria. Essa compartimentação sugere certo esquematismo, mas seus movimentos acabam se justificando sob o princípio da autonomia vinculante, para emprestar um conceito jurídico.

Ao mesmo tempo que tais títulos enunciam o movimento narrativo a cada transmissão na internet, à maneira dos cartazes sugeridos em rubricas nas peças de Bertolt Brecht, elas delimitam um nicho em que Marques, Mercadante e demais pares vão sambar com liberdade e fúria. Estão lá as feridas incicatrizáveis do segregacionismo, rupturas surrealistas literárias e pictóricas, além de pontos de fuga e de reinvenções para incitar o espírito libertário de Maria d’Apparecida. A que exerceu amores incondicionais para com os outros, não na mesma proporcionalidade quando se tratava de si mesma.

Arquivo Binder A cantora lírica Maria d’Apparecida Marques morreu em 2017, aos 91 anos, e conviveu com artistas surrealistas amigos de seu amante Félix Labisse, entre eles o espanhol Salvador Dalí e o belga René Magritte: “Mas será que esses homens algum dia realmente conseguiram me ver?”

A ficcionalização das datas, horários e cidades em que se passam as ações constituem outro componente ativador. Presume-se que estamos a bordo de diferentes momentos do último dia de vida da cantora, o 4 de julho de 2017. Esse estado de recriação avança para a histórica entrevista dela ao radialista e produtor Lauro Gomes (1937-2021), da Rádio MEC. A dramaturgia extrai desse encontro atritos reveladores do abismo que separava a linha editorial do icônico programa voltado ao repertório clássico e suas formas, o Música e Músicos do Brasil, da realidade da artista filha deste solo e estrangeira em terras francesas, onde teve seu talento reconhecido por governantes como François Miterrand e Jacques Chirac.

“Você já quer que eu fale da impossibilidade de começar aqui, Lauro, quer?”, lança D’Apparecida/Carlos a Gomes/Mercadante, mais de uma vez, denotando o que se interdiz. O radialista é esquivo quando a entrevistada elabora sobre consciência antirracista e as aberrações enfrentadas na juventude ou mesmo em seu retorno que deveria ter sido triunfal, à frente do elenco da Ópera de Paris, mas acabou ofendida nos bastidores do Municipal carioca e, por acaso ou sincronia, esbarrou nas coxias com a ajuda e solidariedade de um técnico negro como ela. “Não se preocupe, cada máquina ronca de um jeito, a senhora canta muito bem”, lhe assoprou.

A reencenação do encontro radiofônico carrega intencionalmente na superficialidade da interação para, possivelmente, evidenciar a era da interação fugidia na internet. Como a desvelar mecanismos de desvio da atenção. De fato, o clima de conversa no sofá, mais para programa televisivo de auditório, é um caminho ambíguo, pois convida à dispersão dentro da própria plataforma online que veicula.

Por outro lado, há soluções pensadas que retratam o caráter devocional da equipe. Como no convívio de D’Apparecida com o pintor surrealista Félix Labisse (1905-1982), um amor em nada convencional; a guinada andaluza na narrativa para celebrar o canto e a poesia do espanhol Federico García Lorca em diálogo enternecedor com a matéria da utopia de que a mezzosoprano também fez uso (intuído aceno de Mercadante a seu mestre Ilo Krugli, do Teatro Ventoforte); e o entrecho dramático de velar o corpo insepulto, desde a frieza inóspita do IML, enquanto a voz insurgente reivindica um pai, um país.

Nos anos 1930, Lorca foi fuzilado por agentes a mando do ditador Franco. Durante a canção Anda jaleo, ou Ande, grite, Dione Carlos alude, oportunamente, ao brasileiro de mesma estirpe que ocupa o principal cargo público da nação. Vivesse em 2021, Maria d’Apparecida retroagiria ao mesmo raciocínio acerca das agruras do país: “Eu então modifiquei: Amo-o e deixo-o, e volto de vez em quando para visitar vocês”, ela declarou, já sob a ditadura civil-militar. No que a canção-alicerce do episódio de abertura, A volta, de Djalma Dias, imprime o ritmo bossa-novista da dobradinha Carlos-Mercadante e alinha com D’Apparecida e Powell na versão original: “Quando eu parti/ Tinha ao meu redor um país/ E uma solidão bem maior/ E eu pensava só em voltar”.

Reprodução A artista é tema da biografia ‘Maria d’Apparecida negroluminosa voz’, escrita pela brasileira Mazé Torquato Chotil, radicada em Paris, e que também inspirou a produção brasileira

De volta ao imaginário da Sevilha lorquiana, uma sequência de canções sob ritmos percussivos irrompe de maneira coletiva, abrindo um parêntese para associar as dores de quem, como Carmen, morreu “por dizer sim para si mesma”, tanto em Lorca como em D’Apparecida. É a partir deste nome, aliás, que a peça-filme também se embrenha na religiosidade, apropriando-se do manto barroco da padroeira a quem uma adolescente, engravidada por um dos donos da casa onde trabalhava como doméstica, decidiu recorrer, por fé, já despachada da morada burguesa de patrões paulistas para uma família de classe média suburbana (e branca) da zona norte do Rio de Janeiro.

“Meu nome é Maria D’Apparecida, eu sou uma cantora brasileira”, afirma a própria, em 1966, quando interpretou Tambatajá numa televisão francesa, acompanhada ao piano por Jack Dieval, conforme o vídeo preservado pelo Instituto Nacional do Audiovisual naquele país. Essa frase vai e volta no espetáculo que a adota poeticamente e restitui dignidade à dona da voz que Dione Carlos, em seu acolhimento, gosta de imaginar “diva, mágica e livre”.

Serviço:

Os cinco episódios estão disponíveis gratuitamente no canal do YouTube da peça, aqui.

Mais informações, aqui.

zé luis ps Dione Carlos na peça-filme evocativa da vida e da obra de Maria d’Apparecida: “Eu nunca sumi, são vocês que me esquecem”

Ficha técnica:

Dramaturgia: Dione Carlos

Com: Dione Carlos e Rodrigo Mercadante

Direção: Luiz Fernando Marques

Assistência de direção: Gabi Costa

Direção musical: Rodrigo Mercadante

Direção de fotografia e iluminação Cênica: Wagner Antônio

Edição: Evas Carretero e Luiz Fernando Marques

Preparação vocal: Ester Freire

Figurino: Su Martins

Assistência de iluminação: Dimitri Luppi

Câmera: Mayra Azzi

Captação de áudio direto e edição de som: Eramir Neto

Direção de arte e cenografia: Luiz Fernando Marques

Fotos: zé luis ps

Costureira: Judite de Lima

Assessoria de imprensa e redes sociais: ComunArte Comunicação e Cultura

Contrarregra: Luiz Roberto Oliveira

Músicos: Rayra Maciel (percussão), Rodrigo Mercadante (piano) e William Guedes (violão)

Aulas de dança cigana: Saphyra (Cris Wilson)

Gravação da trilha sonora: Fábio Yamamoto (Estúdio Ekord)

Cabelo e maquiagem: Erika Okada

Artista gráfico: Tom Vieira

Convidadas especiais (bate-papo e colaboração no processo): Ester Freire, Erika Muniz, Marly Montoni e Rosane Borges

Operação de plataforma digital: Açucena Rosa

Produção: Gabi Costa

Assistência de produção: Thaís Peixoto

Apoio: Centro Cultural São Paulo

Este projeto foi contemplado pela 11ª edição do Prêmio Zé Renato de Apoio à Produção e Desenvolvimento da Atividade Teatral para a Cidade de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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