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Entrevista

O teatro de operações captura a política

2.8.2021  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Exército Brasileiro – Departamento-Geral do Pessoal (DGP)

A 5ª edição do Glossário de termos e expressões para uso no Exército, de 2018, traz duas menções à arte milenar do teatro, não necessariamente honrosas. A primeira delas define “teatro de guerra” como “Espaço geográfico, terrestre, marítimo, aeroespacial e cibernético que seja ou possa ser diretamente envolvido nas operações militares de uma guerra”. Já o verbete “teatro de operações” é compreendido, por extensão, como a “condução de operações militares de grande vulto, para o cumprimento de determinada missão e para o consequente apoio logístico”. Na portaria anterior, de 2009, o Ministério da Defesa, o Exército Brasileiro e o Estado-Maior do Exército, organizadores desse manual de campanha, ainda não haviam acolhido em suas concepções, conceitos operativos e táticas o entendimento da cibernética, ciência que, diz o dicionário Houaiss, “tem por objeto o estudo comparativo dos sistemas e mecanismos de controle automático, regulação e comunicação nos seres vivos e nas máquinas”. Esses jargões invasores do campo das artes da cena poderiam ser a ponta do iceberg da empreitada do Tablado de Arruar, grupo de São Paulo que chega aos 20 anos disposto a decodificar o que está em jogo na subserviência das Forças Armadas ao bolsonarismo, ou vice-versa.

O Projeto VERDADE, gritado em maiúsculas, foca a militarização do poder, a captura da política por generais no governo do capitão reformado do Exército, que escalou a Presidência da República após cerca de três décadas como vereador no Rio de Janeiro e deputado federal pelo mesmo estado. Como se nota, a ambição artística não é pouca: estudar as estratégias contemporâneas utilizadas pelos oficiais da reserva ou da ativa e cada vez mais infiltradas nas polícias militar, civil, federal e rodoviária, embaralhando os diferentes papeis dessas corporações.

Atualmente, passam de 6 mil a quantidade de agentes em cargos/funções na esfera nacional. No mês passado, decreto assinado por Jair Messias Bolsonaro (sem partido) liberou integrantes da Aeronáutica, Exército e Marinha a atuarem por tempo indeterminado em postos do Ministério de Minas e Energia, no Supremo Tribunal Federal e em outros tribunais superiores.

O que estou dizendo não é no sentido de que ‘o PT precisa fazer a autocrítica’, e etc, mas sim no sentido de compreender como imaginar uma perspectiva diversa (e eu acho que isso é possível) sem perder o pé de que este é o país em que estamos. Onde hoje, por exemplo, se não me engano, cerca de 30% da população ainda apoia Bolsonaro. Como imaginar outros caminhos sem perder isso de vista, sem nos tornarmos, na nossa ‘bondade’, igualmente negacionistas e ficar fingindo que 15% da população assumidamente nazista vai simplesmente sumir ou resolver ficar quieta?

Alexandre Dal Farra, dramaturgo e diretor

Cerca de um ano após o início da pesquisa, o grupo vem a público com a primeira fase do projeto artístico-cultural apoiado pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, conhecido por Lei de Fomento, que também tem duas décadas e o contemplou oito vezes em sua trajetória. Desde 20 de julho acontece o ciclo Parece Guerra, Porque É Guerra, Só Não É a Guerra que Parece Ser – Militares e a Guerra Híbrida no Brasil Atual. Trata-se de jornada dividida em duas frentes, a de debates e a de leituras dramatizadas, com transmissões ao vivo às terças e quintas-feiras, às 20h, pelo YouTube do Tablado, até 13 de agosto. O conteúdo fica disponível.

Um dos méritos da equipe é trazer à tona depoimentos que generais prestaram à Comissão Nacional da Verdade, órgão vinculado à Presidência da República, então ocupada por Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores. Aliás, através de especialistas convidados, fica-se sabendo que a CNV não foi fruto exclusivamente da gestão do PT, mas demandada por julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2010, apêndice judicial autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), e tornada lei por meio do Congresso Nacional, sendo sancionada pelo governo de turno em 2011.

Pois a comissão funcionou de 2012 a 2014 com a finalidade de apurar graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Ou seja, compreendeu o período da ditadura civil-militar de 1964 a 1985. Seu relatório final listou 434 mortos ou desaparecimentos políticos, entre eles e elas dezenas de militantes de esquerda e de camponeses resistentes ao regime autoritário e atuantes no âmbito da Guerrilha do Araguaia (1972-1974), movimento armado ocorrido em terras do Pará, Maranhão e atual Tocantins.

O ciclo proposto pelo Tablado remete, indiretamente, ao exemplo do espetáculo AI-5: a peça (2016), concebido e dirigido por Paulo Maeda, com o ColetivE Ato de Resistência (SP), que impactou ao reconstituir cenicamente o áudio da reunião do Conselho de Segurança Nacional – leiam-se o presidente (e general) Arthur da Costa e Silva e os 23 ministros, nenhuma mulher, que votaram com ou sem ressalvas, exceto o vice-presidente Pedro Aleixo, endossando os artigos do Ato Institucional Número 5 na noite de 13 de dezembro de 1968. O decreto se revelou flagrante perseguição a quem se opusesse ao estado de exceção.

Quem não conhecia a gravação original ou já teve contato com ela abismou-se com as falas-chave de indivíduos que gestaram a ditadura. A soldo do Estado, agentes no front fecharam o Congresso, cassaram cargos no judiciário, forçaram a aposentadoria de professores universitários e ampliaram as restrições à liberdade de expressão e de reunião, além de suprimirem a garantia de habeas corpus, princípio universal de freio ao abuso de autoridade.

Jonas Tucci André Capuano e Vitor Vieira em cena externa e estilizada da peça ‘Abnegação’ (2014), primeira parte da Trilogia Abnegação, do grupo Tablado de Arruar, em atividade há 20 anos em São Paulo

Nesse sentido, ler a transcrição, ouvir o áudio (não foi publicizado o registro em vídeo do relato à CNV) ou acompanhar a leitura dramatizada do depoimento do general Álvaro de Souza Pinheiro, colhido em 2013, é deparar-se com a tradução mais que perfeita do reacionário rodriguiano, da estirpe que nem o próprio Nelson Rodrigues alcançara, ele que se dizia “um reacionário, de alto a baixo, da cabeça aos sapatos”, como anotou em suas confissões.

Morador do Rio de Janeiro, autodeclarado analista militar internacional, com tirocínio de quem estudou no exterior e conhece bem sobre a manipulação da linguagem, Pinheiro orgulha-se das ações que comandou nos anos de chumbo e lança mão de perguntas numa retórica esquiva às questões apresentadas pelos dois representantes da CNV, a assessora técnica Mariana Barreiras e o gerente de projeto Leonardo Hidaka. O depoente maldiz a comissão, acusa-a de “falsa”, cita Carlos Marighela, Che Guevara e Ernest Hemingway como quem acha que fez a lição de casa sobre ícones da esquerda nos tempos da Guerra Fria, sem esconder profunda admiração pelos Estados Unidos da América, onde se aperfeiçoou como estrategista militar.

Graças ao documento mantido no portal do Centro de Referência Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional, é possível perceber como Pinheiro destila ironia, repete o juramento que prestou quando declarado aspirante a oficial da infantaria, em 1967, no qual se lê no início: “Perante a Bandeira Nacional e pela minha honra, juro cumprir rigorosamente as ordens das autoridades a que estiver subordinado”.

É oportuno pontuar trecho do depoimento do homem autointitulado “um grosso, casca grossa” e que, na ocasião, se fez acompanhar por 13 militares da reserva ou da ativa, em franca tentativa de intimidar “o simpático  casal” que o inquiria:

Leonardo  Hidaka  (CNV) – General,  o  senhor  poderia  explicar como mais de 70 pessoas desapareceram no contexto da repressão da Guerrilha do Araguaia?

Álvaro de Souza Pinheiro – Como é que eu vou explicar uma coisa dessa, meu Deus (risos)?

Hidaka – É uma pergunta meio de conclusão, na verdade.

Pinheiro  – Você  está  querendo que eu diga para você que essas pessoas foram eliminadas sumariamente? Isso acontece no regime stalinista, isso acontece na China de Mao, na Coreia do Norte, é ou não é verdade? Mas aqui, no Brasil, duvido que isso aconteça.

A leitura dramatizada da fala de Pinheiro aconteceu quinta-feira (22), pelos atuantes Clayton Mariano e Gabriela Elias, sob direção do também dramaturgo Alexandre Dal Farra. Na próxima quinta, 5 de agosto, 20h, será a vez do depoimento do coronel da reserva Paulo Malhães (1938-2014), ouvido na CNV na condição de ex-agente do Centro de Informações do Exército (CIE), na década de 1970, e autodeclarado, a título de anedota, que se tornara nos últimos anos um estudioso das orquídeas.

Reprodução Imagem de ‘Inserções em circuitos ideológicos – Projeto Cédula’ (1975), do artista multimídia Cildo Meireles, no portal Memórias da Ditadura

Ao contrário de Pinheiro, Malhães mostrou-se (como documentado inclusive em vídeo) mais diligente quanto aos fatos, ainda que sonegue boa parte das informações. Reconheceu, por exemplo, a prática sistemática da tortura naquela que foi conhecida como “casa da morte”, então um local clandestino em Petrópolis (RJ).

O diálogo do coronel com membros da Comissão Nacional da Verdade, o advogado criminalista José Carlos Dias e a professora e advogada Rosa Maria Cardoso, decalca o drama do sujeito como que em crise de consciência. Ele reconhece a participação em sessões de tortura, assassinato e ocultação de cadáveres, por vezes lançados em rios ou dilacerados. Diz que sumiu com a ossada do deputado federal Rubens Paiva (1929-1971), pai do escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva, mas volta atrás em questão de minutos, sustentando não saber quem se encarregou do desaparecimento dos restos mortais do político que foi sequestrado e torturado até a morte por órgãos da repressão. “Eu só disse que fui eu porque eu acho uma história muito triste quando a família leva 38 anos dizendo que quer saber o paradeiro do… Eu não sou sentimental, não, mas tenho as minhas crises”. O cinismo, como se sabe, é traço de verdugos.

Aqui um segmento dissecado do depoimento do militar que afirma não se arrepender de nenhuma das mortes que causou:

Paulo  Malhães – Quando  o  senhor  vai  se  desfazer  de  um  corpo…  Naquela  época  não existia DNA, concorda comigo?

José Carlos Dias – Sim.

Malhães – Então, quando você vai se desfazer de um corpo, quais são as partes que, se acharem o corpo, podem determinar quem é a pessoa? Quais são as partes?

Rosa Maria Cardoso – As digitais.

Dias – Eu quero que o senhor me diga.

Malhães – A arcada dentária e digitais, só.

Dias – Então, mas cortava a cabeça ou quebrava os dentes?

Malhães – Quebrava os dentes.

Dias – Cortava as mãos?

Malhães – As mãos não.

Dias – Ué, e as digitais?

Malhães – Digital é daqui para cima [mostra no próprio dedo].

Coronel Malhães foi assassinado em 2014, exato um mês depois da oitiva, em seu sítio, na Baixada Fluminense (RJ). A suspeita inicial de queima de arquivo teria sido suplantada pelo inquérito da Policial Civil, por meio da Divisão de Homicídios, que concluiu que foi roubo seguido de morte – foram levadas três pastas de documentos e o disco rígido de um dos dois computadores do coronel –, prendendo o caseiro, seus dois irmãos e dois cunhados. O laudo preliminar do Instituto Médico-Legal apontou morte por infarto, o que a investigação concluiu decorrido de asfixia. Perguntado na CNV se havia recebido algum tipo de ameaça, respondeu: “Até agora não. Espero que não receba. Mas devo receber”.

E indagado por um assertivo Dias sobre quantas pessoas torturou, tentou desconversar, defendeu o procedimento de infligir dor violenta ao outro/à outra e cometeu platitudes de gênero:

Paulo Malhães – É difícil dizer a quantidade.

José Carlos Dias – Mas foram muitos?

Malhães – Foi uma quantidade razoável.

Dias – Homens e mulheres?

Malhães – Não, mulher não. O senhor quer saber por quê?

Dias – Quero.

Malhães – Porque há uma diferença muito grande entre o senhor interrogar um homem e uma mulher. A mulher, se o senhor perguntar a ela pelo marido dela, o amante dela, a pessoa que ela ama… Ela vai morrer e não vai lhe entregar. E o homem em duas ou três horas, ele entrega qualquer um. Até o filho dele.

Dias – O homem é mais fraco?

Malhães – É. E a questão do homossexual, também é a mesma coisa. O sentimento é o mesmo. Então, é difícil… O senhor ganhar uma mulher, é uma coisa assim, do outro mundo.

Dias – Violências sexuais na tortura, o senhor nunca praticou?

Malhães – Não.

Dias – Teve conhecimento da existência de muitas violências sexuais em mulheres e em homens? Ou homossexuais?

Malhães – Não. Eu acho o seguinte que…

Dias – Que o senhor teve conhecimento… Não estou dizendo que o senhor tenha praticado.

Malhães – Eu acho que mulher subversiva, para mim é homem. Eu não modifico o tratamento porque ela é mulher.

Dias – Uai, o senhor disse que não tortura mulher?

Malhães – Pois é, não torturo. Mas não modifico meu tratamento.

Dias – Não entendi.

Malhães – Eu não trato mal as mulheres.

Dias – O senhor não trata mal as mulheres? Mas se ela é igual a homem…

Malhães – Mas… Está fora da minha alçada. Já foram presas mulheres lindas. Conheci.

Dias – E?

Malhães – E nunca me atraíram a atenção ou coisa parecida. Eu considerava ela um inimigo.

Dias – Então, se era um inimigo, senhor torturava?

Malhães – Não, porque não me interessava nada dela. Tinha gente para extrair dados. Que gostava.

Dias – Por que essa pessoa gostava? Porque gostava de praticar violências sexuais também?

Malhães – Não. Essa questão de violência sexual, se existiu, existiu um caso ou dois. Não mais do que isso. Porque não tem cabimento.

Dias – E a tortura tem cabimento?

Malhães – Tem.

Dias – O senhor acha?

Malhães – Acho.

Dias – Defenda a tortura. Justifique a tortura.

Malhães – A tortura é um meio. O senhor quer obter uma verdade.

Dias – Não. Eu quero a sua verdade.

Malhães – Tá. Mas eu estou exemplificando. O senhor quer saber uma verdade. O senhor tem que me apertar para eu contar, senão eu não conto. Muito claro e simplesmente. Então, a tortura em elemento de grande periculosidade, vamos dizer assim, é válida.

Annelize Tozetto/Clix Lígia Oliveira e André Capuano em ‘Abnegação II – O começo do fim’ (2015); na peça, planos ficcionais se tensionam mutuamente ao exporem com violência a trajetória contraditória de um partido de esquerda que, em um momento de ampliação de seu alcance, ao mesmo tempo em que galga novas posições e amplia o seu horizonte político, cede mais e mais à dinâmica criminosa e cínica que organiza e estrutura o poder no capitalismo em geral, e de forma ainda mais clara na sua versão marginal e periférica

Em agosto de 2014, a jornalista Míriam Leitão, do Grupo Globo, relatou ao jornalista Luiz Cláudio Cunha, do portal Observatório da Imprensa, que Malhães, tratado por subordinados pelo codinome “Dr. Pablo”, era um dos seus torturadores, aquele que ordenou trancá-la por horas numa sala escura com uma jiboia. Foram três meses de prisão, entre dezembro de 1972 e fevereiro de 1973, no quartel do 38º Batalhão de Infantaria do Exército em Vila Velha (ES). Ela tinha 19 anos e estava grávida de um mês, então militante da base estudantil do Partido Comunista do Brasil, o PCdoB. Seu suplício incluía tapas, chutes, golpes que abriram a sua cabeça e o constrangimento de ficar nua na frente de dez soldados e três agentes da repressão. Leitão foi vítima da tortura assim como seu companheiro à época, Marcelo Netto, estudante de medicina. A jornalista trabalhava na redação da rádio Espírito Santo. Quarenta e dois anos depois ela tornou pública a experiência traumática.

Portanto, é esse o porão da história brasileira que o Tablado de Arruar está a revolver, um emaranhado que passa pela ascensão da milícia, como são conhecidos os grupos armados de pessoas geralmente com formação militar, paramilitar ou policial, atuantes à margem da lei em comunidades desassistidas pelo Estado e avançando para bairros de classe média em diferentes metrópoles, pretensamente para combater o crime.

Esse mote é objeto do debate Milícias e Militares no Brasil Atual, na terça-feira (3 de agosto, 20h), com dois jornalistas expoentes na cobertura do assunto: Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, autor do A república das milícias – dos esquadrões da morte à era Bolsonaro (Todavia, 2020), e Chico Otavio, repórter de O Globo, professor de Jornalismo na PUC-Rio e autor de Mataram Marielle (Intrínseca, 2020), sobre a cobertura do fuzilamento da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes.

As mesas seguintes, sempre às terças, às 20h, tratam de Militares na Política (10 de agosto), com o coronel da reserva do Exército Marcelo Jorge Pimentel, que foi chefe do Estado-Maior da 7ª Região Militar (Recife-PE), e o professor sênior João Roberto Martins Filho, da UFSCar, autor de O palácio e a caserna: a dinâmica militar das crises políticas na ditadura (1964-1969) (Alameda, 2ª edição 2019) e organizador da coletânea Os militares e a crise brasileira (Alameda, 2021); e, por fim, o debate A Esquerda Brasileira e o Alto Comando (13 de agosto) recebe o político José Genoíno, eleito cinco vezes deputado federal pelo Estado de São Paulo e ex-presidente do Partido dos Trabalhadores. Ele atuou por dois anos como combatente na Guerrilha do Araguaia, sendo capturado em 1972 e permanecendo preso por cinco anos.

Como dito linhas atrás, todos os encontros são disponibilizados no YouTube do grupo, vide as duas primeiras jornadas reflexivas que abordaram Gestão da Barbárie e os Militares no Brasil, com o filósofo Marildo Menegat, professor associado do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH), da UFRJ, autor de A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe: o giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto (Consequência, 2019); e A Comissão Nacional da Verdade e seus Desdobramentos, com a procuradora Eugênia Gonzaga Fávero, coautora das primeiras iniciativas de responsabilização judicial de agentes da ditadura e ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, órgão federal criado em 1995, e o advogado e professor titular Pedro Dallari, da USP, último coordenador da CNV.

As noites de quinta-feira, sempre às 20h, são dedicadas às leituras dramatizadas. Como dito, para 5 de agosto está programado o depoimento transcrito do coronel Paulo Malhães à CNV.  E no dia 12 de agosto, trechos das peças Stuff happens (2004), do inglês David Hare, como que uma resposta à Guerra do Iraque a partir de diferentes pontos de vista, a favor ou contra o conflito, recriando discursos oficiais, reuniões de gabinete, entrevistas coletivas e registros entre autoridades estadunidenses, inglesas, francesas e outras; e As nações unidas (1968), do romancista, dramaturgo e cineasta paulista José Agrippino de Paula (1937-2007), drama cômico definido pelo autor como “uma grande feira do povo”, conjugando recursos de jornal, rádio, pintura, cinema, TV e quadrinhos em meio a figuras como Napoleão Bonaparte, Hitler, Pato Donald, Getúlio Vargas e Marilyn Monroe.

Denise Mazocco Trabalho da exposição ‘Crash’, da artista multimídia Regina Silveira, realizada em 2015 no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba

O depoimento do general Álvaro de Souza Pinheiro à CNV e a peça Villa, do dramaturgo e diretor chileno Guillermo Calderón, foram lidos nas duas primeiras semanas do ciclo e podem ser experienciadas no canal de vídeo do Tablado, com atuações em revezamento de Alexandra Tavares, André Capuano, Clayton Mariano, Gabriela Elias e Lígia Oliveira, sob direção de Alexandre Dal Farra.

O acercamento do Tablado à Comissão Nacional da Verdade lembra a postura de criadores como o Grupo Cultural Yuyachkani, do Peru, que mantém em repertório peças relacionadas à equivalente prospecção institucional da memória realizada no país por meio da Comisión de la Verdad y Reconciliación (2001-2003), desdobrando encenações ou performances ao ar livre dirigidas por Miguel Rubio Zapata. Assim como o artista plástico sul-africano William Kentridge, que recriou o clássico do francês Alfred Jarry, Ubu rei (1888), a partir de interrogatórios da Comissão de Verdade e Reconciliação de seu país, desembocando em Ubu e a comissão da verdade. Na peça, um policial entende tortura, assassinato, sexo e comida como variações de um singular apetite grosseiro.

Na entrevista a seguir, feita por e-mail, o dramaturgo e diretor Alexandre Dal Farra, o ator e diretor Clayton Mariano e a atriz Lígia Oliveira, trio nuclear do Tablado hoje, respondem a questões relativas ao Projeto VERDADE, que no site do grupo é estampado com a fisionomia do general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, devidamente fardado, demitido da Secretaria de Governo em 2019, das muitas dissidências do atual comando no Planalto.

Dentre os tópicos da conversa, são abordados conceitos norteadores da investigação em curso e a influência do teatro alemão contemporâneo sobre o grupo fundado em 2001.

Dal Farra comenta a propósito da experiência com o audiovisual em Reconciliação (2021), parceria à parte com a dramaturga portuguesa Patrícia Portela. Adianta que o título provisório de seu segundo romance é Deserção, escrito durante a pandemia. E detalha a elaboração da tese a ser defendida no próximo ano e que tratará do período 2016-2018 como um momento de “fechamento” de diversas aberturas que o lulismo teria possibilitado em distintos planos da sociedade brasileira (“incluindo aí a própria crítica dele, como era o meu caso e de outros artistas”). Para tanto, analisará obras como os filmes O som ao redor (2012) e Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho, e a montagem de Leite derramado (2016), por Roberto Alvim, endereçada ao público “de esquerda”, mas cujo diretor “pulou para o outro lado” até ser exonerado da Secretaria Especial da Cultura, em 2020, após copiar frases de um discurso nazista em um pronunciamento oficial da pasta federal.

Ano grávido do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, do bicentenário da Independência do Brasil (1822), da eleição Presidencial e da encenação do Projeto VERDADE, 2022 será inevitavelmente atravessado pela retórica do ódio, teorias conspiratórias e realidades paralelas que ainda contaminam a saúde mental do país e de sua gente.

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Teatrojornal – Em dramaturgias recentes que acompanhamos, como a Trilogia Abnegação (2014-2016), Branco: o cheiro do lírio e do formol (2017), Refúgio (2018) e Pornoteobrasil (2019), mesmo quando em projetos paralelos ao Tablado de Arruar, fica patente uma proposição analítica cada vez mais rente às realidades brasileiras. É como se essas criações revolvessem nosso éthos diante das contradições que ardem em brasa. Como autoanalisa esses textos em perspectiva?

Alexandre Dal Farra – Concordo muito com essa imagem de tentar entrar em contato com esse tipo de núcleo tenso das contradições brasileiras. É com certeza uma vontade. Creio que todas essas peças, de alguma forma, quiseram partir de elementos da realidade política nacional, para realizar obras que movimentassem os discursos consensuais desses ambientes. Pela minha própria característica, a política sempre me moveu, como ponto de partida para a criação. Mas nunca como ponto de chegada. Nunca me interessou pensar em uma arte politicamente colocada, que se expresse com clareza sobre o momento e se coloque no lugar certo. Muito pelo contrário, me interessa uma arte que movimente tais camadas. A maneira como essa movimentação se dá varia ao longo das obras.

Por exemplo, na Trilogia Abnegação, partimos de fatos reais, ligados à trajetória do PT, para chegar a obras por vezes explicitamente ligadas a esses fatos (Abnegação 2 – O começo do fim), ou em obras que se estruturavam a partir do contato com esse tipo de questão (Abnegação), até o caso de Abnegação 3 – Restos, em que procurei como que fazer um panorama mais amplo do que seria aquele território a um só tempo unitário e absolutamente instável da ideologia lulista nos seus últimos momentos (mas ainda nesse caso, não se tratava de simplesmente tentar reproduzir o mundo, mas, sim, de procurar, por meio de uma espécie de discurso que se disseminava em todas as direções, buscar as fendas naquele mundo, as fissuras por onde a água já estava invadindo o navio fazia tempo).

No caso do Branco: o cheiro do lírio e do formol, assim como em Abnegação 2, tratou-se de partir de um discurso polêmico para, desde esse tal lugar, abrir camadas desconhecidas, e ignoradas, dentro daquele próprio território que a polêmica visava. Aqui, é necessário apontar que penso em polêmica nos termos de Bakhtin [Mikhail Bakhtin (1895-1975), filósofo e pensador russo], como uma das formas de dialogismo. A polêmica pressupõe estruturalmente o discurso do outro, e esse discurso (com o qual ela polemiza) está concretamente presente na polêmica, justamente como aquilo que dá forma ao discurso polêmico, inteiramente moldado pela voz com que ele polemiza.

Dessa forma, tanto em Branco, como em Abnegação 2, tratou-se de, a partir desse tipo específico de dialogismo, criar fissuras no território polemizado, para acessar outras camadas, que ficam escamoteadas dentro desse mesmo terreno. No caso de Abnegação 2, o “alvo” éramos nós mesmos, nos nossos discursos políticos de esquerda. No caso do Branco, o “alvo” também éramos nós mesmos, os brancos de esquerda, nos nossos discursos voluntariosos e 100% corretos, que só faziam nos imiscuir do racismo que seguia estruturando as nossas vidas.

Nos dois casos, em proporções diferentes, houve resposta à provocação. E nos dois casos, em proporções diferentes, houve dificuldade em ler as outras camadas que a provocação buscava abrir. Mas também nos dois casos houve uma ampla gama de pessoas que foi capaz de ler as duas coisas: a polêmica como possibilidade de mover, e como diálogo, e também as camadas submersas acessadas a partir da tensão. Nos dois casos, em proporções diferentes, houve também pessoas que claramente se utilizaram das peças como oportunidade para disseminar as suas posições “corretas” e tentar justamente ampliar o alcance e a força do consenso que os trabalhos queriam movimentar.

Creio que todas essas reações são possíveis, falam do nosso mundo e, de certa forma, fazem parte dos trabalhos também. O caso de Refúgio, por outro lado, é um pouco diferente. Assim como em Mateus, 10 (2012), há, em Refúgio, uma aposta em um certo adensamento da linguagem, um aumento da mediação. Ou seja, nesse caso, “a realidade” é retirada de cena, não há camada documental, não há nenhum diálogo com o território do ready-made [quando o artefato comum é tirado de seu contexto e exibido como objeto de arte, segundo a estética preconizada pelo artista francês Marcel Duchamp (1887-1968)]. Isso em uma obra que apostava na linguagem, na estrutura da peça como linguagem, quando o território ideológico, a realidade, estava clivada demais para ser movimentada. Era como se estivéssemos tão defendidos dentro da nossa trincheira, que fosse impossível, naquele momento, dizer qualquer coisa que não afirmasse apenas sempre o mesmo.

Refúgio, nesse sentido, foi a um só tempo de fato um refúgio disso tudo, na linguagem, mas também uma peça que falava sobre isso. Ou seja, a peça falava de fato sobre esse território capturado, em que o preço que a linguagem paga para poder continuar tendo alguma liberdade é se distanciar mais e mais do mundo, e ir se tornando uma espécie de ajuntamento de palavras sem sentido. Assim, em Refúgio, a aposta foi a de que, naquele momento, a maneira mais contundente e possível de tocar o Real, ou seja, de encontrar as fissuras na realidade (que sempre é o que busco) era por meio de um distanciamento em relação à realidade diretamente colocada em cena. Era uma nova aposta na mediação, a camada ficcional se quisermos chamar assim, como caminho para tocar o real naquilo que ele não é simbolizado.

Por fim, em Pornoteobrasil, creio que houve uma tentativa de voltar a tocar no mundo, de voltar a entrar em contato com as forças discursivas “reais” presentes, os vetores todos (e naquele tempo, sobretudo a eleição de Bolsonaro), mas não acho que a obra tenha sido capaz de ultrapassar uma primeira camada – não que ela não seja também um retrato disso (e acho que ela é exatamente isso): um tipo de autorretrato da esquerda no momento do pânico. Como autorretrato, penso que ela não movimenta, apenas fixa uma imagem. Das obras citadas, me parece a que menos consegue justamente acessar outras camadas da realidade, porque, acho, não tivemos ali os instrumentos para conseguir ultrapassar essa primeira impressão em relação ao que estava acontecendo.

Jennifer Glass André Capuano em ‘Pornoteobrasil’ (2019), cuja ação se passa no Brasil contemporâneo, no cenário de um acidente ou atentado – não é possível afirmar ao certo. Para a situação traumática, quiçá catastrófica, a dramaturgia fragmentária dispõe três perspectivas que se complementam para criar uma espécie de espasmo que localiza o espectador no presente

Teatrojornal – O Projeto VERDADE, por sua vez, sugere uma abordagem documental mais veemente. As referências trazidas da Comissão Nacional da Verdade explicitam como a mentalidade da ditadura civil-militar rege o grupo político que está no poder e logo se espalha por diferentes instâncias policiais. O factual vai prefigurar o ficcional assim como os fatos e discursos explicitam os mecanismos bolsonaristas?

Dal Farra – Este projeto, assim como na Trilogia Abnegação, por exemplo, parte de um material político para criar uma obra que – espero – consiga mover as estruturas de algumas das ideologias hegemônicas do momento, e sempre na direção de cavar espaços desconhecidos, ambíguos, fendas na realidade que não delimitamos a partir dos nossos conceitos. Se em Abnegação 2 e Branco, esse tipo de busca se deu a partir de um discurso polêmico, que portanto pressupunha uma estrutura hegemônica de discurso em um determinado território, que se tratava de provocar, creio que em VERDADE esse território foi clivado, e a hegemonia ideológica se dividiu em duas.

O antropólogo Piero Leirner [professor titular da Universidade Federal de São Carlos], em seu livro sobre a guerra híbrida no país [Brasil no espectro de uma guerra híbrida: Militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica (Alameda, 2020)], escreve um capítulo chamado “Cismogênese Dilma”. A “cismogênese” é um conceito retirado do antropólogo britânico Gregory Bateson, que descreve uma dinâmica que se dá em estruturas de relação (seja em uma tribo, seja em uma relação de casal por exemplo) em que há um “processo de diferenciação”. Ou seja, uma cisão muito contundente, e uma divisão entre dois campos que se diferenciam mutuamente, e que, quando operam em cismogênese, passam a repetir o seu lugar de diferenciação, em desdobramentos dessa mesma dinâmica que, segundo Bateson, não tem como se interromper, a não ser que algo interfira, de fora da dinâmica. Leirner dirá que a partir de 2016 se instaurou uma dinâmica de cismogênese no Brasil. Isso significa não só dizer que houve uma polarização, mas que ambos os lados dessa polarização, mesmo quando não estão em disputa direta, passam a agir para sustentar essa mesma diferença (mesmo quando têm a sensação de estarem apenas se defendendo do outro lado – aqui já é a minha interpretação).

Em VERDADE, o que pretendo é voltar a constituir uma obra que, assim como em Branco ou Abnegação 2, haja um gesto de polêmica dialógica com os consensos hegemônicos do momento. No entanto, o que este processo me permitiu entender é que tal processo, hoje, precisa ser feito simultaneamente em duas direções. Como vivemos em um mundo clivado, é necessário que o discurso polêmico seja assimilado para dentro da obra, e seja sempre colocado em contato com um outro discurso, igualmente polêmico, dirigido na direção inversa. Do contrário, tudo o que for dito – que pretenda transpor o âmbito das questões puramente privadas – será sempre lido dentro da cismogênese, ou seja, será lido como ataque ao outro lado (e portanto aliado). Ou então como ataque a este lado (e portanto inimigo).

Nesse sentido, a polêmica precisa agora se construir em vetores no mínimo bidirecionais, o que eu considero também um desafio artístico de extrema importância. Neste momento, não basta, digamos, apontar o conteúdo de mentira dentro das nossas verdades, e tentar escavar outras camadas a partir desse tipo de discurso polêmico (como era o caso de Abnegação 2, por exemplo). Não, agora é necessário, de maneira simultânea, apontar a falsidade do nosso lado, e também, apontar a VERDADE do lado de lá. É um tipo de ponto de partida mais complexo de crítica da ideologia, que se move a partir das falsidades contidas dentro das nossas “verdades”, mas, ao mesmo tempo, parte das “verdades” contidas nas falsidades “deles”.

Em relação à questão documento/ficção, eu tenho muita vontade de estruturar a obra a partir de duas frentes. Uma delas, mais colada ao aspecto documental, digamos, do “teatro do real”, para usar a ideia da Silvia Fernandes [professora-pesquisadora da USP), mas cuja função é apenas a de uma “moldura” para o que efetivamente me interessa, que é a construção de uma camada de linguagem onde as estruturas possam se mover na própria linguagem – e aqui, trata-se de aprofundar um caminho que já está em Abnegação 2, em Branco e em outras peças. Uma relação entre duas camadas, uma delas, que se conecta ao documento, e que portanto se aproxima da realidade, e uma outra camada que não tem absolutamente nada de documental, é distante da realidade, mas se aproxima do real, pensando aqui no “real” justamente como aquelas fissuras, aquelas falhas da realidade, em que algo de faltante ou de excessivo nos faz entrar em contato com o que não sabemos e não temos como saber sobre o mundo. Tudo isso, todos esses movimentos, são feitos no sentido de reencontrar, no mundo, aquilo que não entendemos sobre ele. Porque um dos efeitos da nossa situação atual, acho, é o de que temos a sensação de que já entendemos tudo.

Clayton Mariano – Acho que o interessante nesse caso é perceber, também, o quanto o factual se comporta como linguagem, tornando quase impossível dissociar a realidade da forma que a medeia. É particularmente notável como, por exemplo, essa cismogênese a que o Alexandre se refere coincide com o momento em que a internet, e sobretudo as redes sociais, passam a configurar uma espécie de simulacro do espaço público de debate, em especial do debate político.

É claro que esse meio (a internet), como qualquer outro, aponta para o surgimento de uma linguagem própria, como muitas pessoas já notaram. Assim como acaba desenvolvendo uma ética particular. Ao que parece, surge uma estética correspondente a essa ética. Nesse sentido, os discursos de Bolsonaro são exemplos bem evidentes. Você não dissocia o conteúdo de suas falas da forma com que ele “opera” esses discursos. Seja numa live com cenário capenga, com um sanfoneiro atrás dele, por exemplo, seja com um excesso de insultos em um discurso ou através de mensagens criptografadas em um tuíte, há toda uma linguagem sendo articulada que se destina a se comunicar com seus apoiadores ou até mesmo a gerar confusão na imprensa, etc.

Olhando um pouquinho mais de perto, boa parte dessa linguagem que vai surgindo parece mesmo arquitetada para causar os efeitos que causam. É como se fosse possível prever a reação pública que elas vão gerar e, assim, ficaria fácil controlar ou prever essa reação. Acredito que esse seja um ponto que nos interessa também, complementando um pouco tudo o que já disse o Alexandre. Até porque, há mais de um indício de que essa linguagem seja de fato parte de um sistema de estratégias, pensando no sentido militar do termo, e que, como acho que o Alexandre ainda vai falar mais sobre, trata-se de operações psicológicas, estudadas em academias militares, as tais PSYOPs, criadas para o controle de “corações e mentes”, como disse o general Álvaro Pinheiro.

Muitas vezes a gente até percebe essas operações, principalmente quando elas agem no sentido de tirar o foco do assunto principal. Há muitas falas que funcionam como “cortina de fumaça”, etc. O que talvez não fique tão claro é que esse tipo de operação está presente em diversos outros aspectos da nossa realidade atual e que fazem parte de um amplo sistema que está agindo em basicamente quase tudo que participa da construção da opinião pública.

Trata-se mesmo de uma guerra, invisível e permanente. A gente até sente como sendo uma guerra, mas somos levados a acreditar que se trata de um modelo de embate “nós contra eles”. Por isso um dos títulos que pensamos para esse ciclo de leituras e debates era: “Parece guerra, porque é guerra, só não é a guerra que parece ser” – porque esse sentimento do “nós contra eles”, no qual muitas vezes nos aprisionamos, é parte também da estratégia da verdadeira guerra que está sendo travada e que não vemos.

Existem outras diversas estratégias, não só as “cortinas de fumaça” que percebemos de vez em quando. Segundo essa hipótese, com a qual estamos trabalhando agora, haveria diferentes formas de “bombas de fragmentação semiótica”, criadas propositalmente para gerar dissonância cognitiva, como se diz nos manuais militares e como também está apontado no livro do Leirner que o Alexandre citou. Enfim, acho que é possível encarar essa espécie de estética das estratégias militares (se é que podemos chamar assim) como artifícios de linguagem que poderão estar em nossa peça de forma mais ou menos evidente.

Como já dissemos algumas vezes, a gente nunca parte de uma forma prévia, nossas peças não se esforçam para ter um “estilo” próprio, ainda que a gente identifique características comuns que se desdobram em vários espetáculos. Nossa busca, no entanto, é a de que a forma final reflita o material com que estamos trabalhando. Assim, parece fazer sentido uma linguagem que se constitua a partir de uma lógica de operações de guerra. Para além disso, sinto que raciocinar a partir dessas estratégias militares pode ser um aprendizado para se pensar novas maneiras de resistência e de luta contra a nossa atual situação política. De fato, a sensação é bastante libertadora, pois nos permite pensar de forma contra estratégica. Aliás, pela primeira vez nos últimos anos, senti que era possível escapar de uma certa tautologia que esta cismogênese nos coloca. Ainda que todas essas hipóteses possam ser um pouco paranoicas, o fato de haver UMA nova hipótese, que não seja repetir o óbvio, como #bolsonarogenocida, #elenão, etc, já é libertador.

[Sobre a geração do teatro de grupo em São Paulo, após 20 anos de Lei de Fomento] Eu não tenho nenhuma solução, obviamente, para essas questões, mas suspeito que para isso voltar a vigorar seria necessário retomar algumas ideias meio velhas, talvez, o que passa pela criação de uma base comum, política, algo que o Reinaldo Maia [1952-2009, ator e dramaturgo cofundador do Grupo Folias d’Arte] chamava de ‘afeto político’, que não é condescendência de Comunidade Eclesial de Base, mas sim aquilo que nos identifica como iguais, como indivíduos que se aliam por estarem do mesmo lado da trincheira

Clayton Mariano, ator e diretor

Teatrojornal – Que singularidades nota nos depoimentos dos generais Álvaro de Souza Pinheiro (2013) e Paulo Malhães (2014) à Comissão Nacional da Verdade? Algumas passagens do diálogo de Pinheiro com os responsáveis da secretaria executiva do órgão são como que talhadas para a cena, tamanha a performatividade da fala desse agente.

Dal Farra – Exatamente como você disse, acho que o depoimento do Álvaro Pinheiro nos permite entrar em contato com um oficial “exemplar” (segundo os vídeos que circulam na internet, nos meios militares). Exemplar, aqui, não pelo que ele é ou fez, mas, segundo entendo, porque ele soube exercer a sua função ali de maneira exemplar. Ou seja, ele foi um militar extremamente capaz de atuar em uma “operação psicológica”, que é certamente como eles caracterizariam a situação do depoimento à CNV. Desde o fato de que ele chega ao depoimento acompanhado de mais 13 oficiais do Exército, que permanecem o tempo inteiro presentes, e calados, até sobretudo à maneira como ele consegue se negar sucessivamente a responder a todas as perguntas dos entrevistadores, mas principalmente a maneira como se utiliza de cada uma delas como uma oportunidade para colocar as suas versões de absolutamente todos os fatos (que, se percebe, ele tinha como uma espécie de tarefa muito claramente estruturada – falar sobre Marighella, falar sobre o apoio dos camponeses aos militares, etc). Ele consegue, então, transformar (e com toda a simpatia possível) o seu depoimento em um palanque para os militares, a partir de técnicas de operação psicológica, ensinadas nos manuais militares, que ele soube executar muito bem. Por isso, trata-se de um oficial exemplar.

Por outro lado, Paulo Malhães pode ser olhado como o exato oposto em tudo. Malhães é o antimilitar que não seguiu nenhuma das suas tarefas, não só não colocou o ponto de vista do Exército, como revelou diversas coisas que não poderia revelar – e de forma absolutamente confusa, desestruturada. Ele é o antípoda do Álvaro Pinheiro, o seu oposto complementar. Creio que as Forças Armadas brasileiras são feitas dessas duas falas. Malhães balbucia, quase não responde nada, fala por “parábolas”, é confuso, perdido. No entanto, no meio dessa sua confusão, deixa passar algumas concretudes que dizem muito sobre a verdade da ditadura. Ele é a face de que o Exército não se orgulha – não à toa, foi morto um mês depois do depoimento.

Mariano – Impressiona mesmo como parecem dramaturgias prontas para o teatro. Particularmente, acredito que tenham esse efeito porque, de fato, o são! Obviamente, não para o nosso teatro, talvez, mas para o que os militares chamam de “teatro de operações”, que é um termo comum nos manuais de PSYOPs. O depoimento do general Álvaro Pinheiro, sobretudo, é quase explícito, como já disse o Alexandre. O militar está o tempo todo agindo no sentido de “operar” a entrevistadora, de manipulá-la para responder apenas o que lhe interessa.

Chama atenção ainda a forma como ele é bem treinado para isso: desde o início se recusa a responder a qualquer questão, de maneira sempre muito simpática e estratégica, e aproveita as questões da entrevistadora para pautar uma série de assuntos que são do interesse dele e da família militar.

Na verdade, se trata sempre da mesma série de “clichês” que eles repetem há anos contra a luta armada, em defesa da ditadura, uma ladainha que muitos de nós já ouvimos antes. O discurso em si nem é tão surpreendente, o que impressiona, mesmo, é que ele consegue passar praticamente por todas essas pautas, como se precisasse cumprir um checklist. É interessante ver como existe um método nisso. Um método que, aliás, como disse o Alexandre, foi muito bem treinado para ser posto em prática em diversas situações, inclusive sob pressão e em contextos adversos (ele chega a fazer uma “brincadeira” dizendo que era capaz de operar este método mesmo após beber uma garrafa de whisky, não é?).

Agora, acredito que seria ingênuo de nossa parte considerar isso apenas uma petulância militar, como muitas vezes a gente tende a fazer, ridicularizando seus emissores. A credibilidade de que goza as Forças Armadas, conforme ele mesmo cita, foi construída justamente sustentando narrativas revisionistas como essas que ele faz questão de reafirmar. Por mais absurdas que pareçam (como no caso de se poder chamar ou não de guerrilha o movimento no Araguaia), elas surtem efeito na população, sobretudo no consenso da opinião pública.

Não à toa, eles são tão preocupados com a imagem que o Exército tem para fora da caserna. Sabem que muito do prestígio de que gozam advém dessa imagem e não do poder bélico pura e simplesmente.

Talvez até discordando um pouco do Alexandre, mas não muito, só no sentido de ele ser o antimilitar, acredito que, no caso do coronel Malhães, pela própria condição dele, já velho e debilitado [então com 76 anos], o que eu sinto é que ele tenta a mesma tática do general Álvaro, mas já não tem a mesma capacidade de “operar” os entrevistadores. Ele se desarticula, se confunde, tenta construir parábolas para despistar, mas se atrapalha, e acaba confessando coisas. Ainda assim, acho que é possível que, na cabeça dele, a estratégia fosse a mesma: “Eu sou treinado para isso, não caio em armadilhas”, etc.

Por outro lado, também seria possível pensar que o coronel Malhães estivesse um pouco mais ressentido com as próprias Forças Armadas do que o general Álvaro, e que por isso decidiu jogar lenha na fogueira. Particularmente, eu acredito menos nessa hipótese, acho que ele se atrapalhou e acabou confessando o que não devia, mas deduzo que na cabeça dele estava fazendo um “teatro de operações” também, só que não conseguiu sustentar e acabou quebrando o código de ética dos seus companheiros e, coincidência ou não, foi assassinado logo depois.

Otávio Dantas Vitor Vieira em ‘Mateus, 10’ (2012), acerca de pastor em ascensão que entra em crise com sua atividade, quando se apega de forma quase obsessiva a uma passagem da Bíblia em que Jesus renega sua família, mãe e irmãos, em função dos seguidores e discípulos; no segundo ato, ele vai a um churrasco, tenta confessar seu crime, o que não é aceito pelos outros e acaba expulso da igreja sem que, no entanto, nenhuma nova ordem se instaure

Teatrojornal – Militares da ativa e da reserva já ocupam mais de 6 mil cargos/funções no governo federal. Como esse “partido dos militares”, conforme alguns analistas têm chamado, se conecta a alguns dos conceitos que o Tablado acessa na atual pesquisa, como acerca das operações psicológicas (PSYOPs), da guerra híbrida e da cismogênese? Pode contextualizá-los?

Dal Farra – Creio que uma das ideias fundamentais que nos ajudam a entender exatamente essa questão é a ideia de que a guerra híbrida é uma guerra que se faz “por procuração”. Ou seja, quem está lutando não é realmente quem faz a guerra, de tal forma que aquele que ataca fica camuflado, ou criptografado, por trás das ações, que não são realizadas diretamente por ele. Esse modelo de guerra é, ao que parece, um desdobramento de diversas técnicas criadas pelos exércitos dos Estados Unidos, Israel, Rússia e outros, para lidar com situações de guerra não-convencional, ou seja, nas guerras contra o “terrorismo”, a exemplo da guerra de Israel contra a Palestina.

Segundo esse tipo de pensamento, como indica ainda o mesmo Piero Leirner, há uma compreensão de que tudo pode fazer parte da guerra. Dessa forma, a caracterização que conhecemos de guerra, a decorrente de Clausewitz [o general prussiano Carl Von Clausewitz (1780-1831), considerado mestre maior da arte da guerra pelas lições de tática e estratégia legadas no tratado póstumo Da guerra], em que a política se diferencia da guerra, e em que a paz é justamente quando se consegue evitar a guerra por meio da política, tudo isso fica para trás, e o território político, assim como o território judiciário, a imprensa, etc, potencialmente todos os territórios são territórios de guerra.

Ao que parece, o Exército brasileiro esteve se informando ao longo das últimas décadas e foi atualizando – sobretudo na sua atuação no Haiti [a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti, a Minustah, comandada pela força nacional por 13 anos, de 2004 a 2017] – seus manuais a partir de um pensamento que inclui todos os conceitos da guerra híbrida para dentro deles (cismogênese é o único desses conceitos que não consta do vocabulário dos manuais, é uma categoria analítica). E talvez o Brasil seja o primeiro caso de um experimento em que as Forças Armadas de um país efetuaram uma verdadeira manobra de guerra (híbrida) para dentro, ou seja, seguindo a tradição das Forças Armadas brasileiras, desde sempre, voltaram as técnicas de guerra desenvolvidas em disputas exteriores para uma guerra contra a sua própria população. Em tudo isso, apenas reproduzo os argumentos do Piero Leirner.

Dentro dessa análise (que é largamente documentada), Bolsonaro é projeto dos militares desde o começo (em novembro de 2014 ele já fazia campanha na AMAN [a Academia Militar das Agulhas Negras, escola do Exército fundada em 1792 e atualmente sediada em Resende (RJ)], o que só seria permitido se esse fosse o caso), e ele é justamente um desses agentes que realizam a guerra por procuração, mas quem de fato a exerce, de maneira criptografada (e tentando passar mais ou menos desapercebido) é o Exército. Dentro disso, essa independência real entre os diversos agentes da guerra em curso faz com que eles sejam vistos por nós como se não fossem partes de uma mesma estratégia – e assim, de repente, estamos quase torcendo para que os militares nos salvem do Bolsonaro (criado por eles próprios). É esse tipo de situação que essas novas técnicas de guerra criam.

Teatrojornal – Aliás, a noção de partido político como organização social de cidadãos em torno de interesses comuns, e que se propõe a alcançar o poder, também se aproxima etimologicamente de facção, referente a grupos que rivalizam entre si, bandos insurretos, enfim, dissidências que no retrato da violência urbana das últimas décadas são associadas a disputas territoriais do tráfico de drogas, ao crime organizado, inclusive paramilitares, no caso das milícias. Como vê essa corrupção do entendimento de partido, inclusive a partir da experiência da Trilogia Abnegação? E lembrando, como sabemos, que a Guerrilha do Araguaia foi um movimento armado articulada pelo PCdoB, entre os anos 1960 e 1970, e reprimido por operações militares que assassinaram e desapareceram com os corpos de cerca de 70 militantes ou camponeses solidários à luta contra a ditadura.

Dal Farra – Acho muito interessante de fato essa aproximação etimológica, que fala, para mim, de uma outra aproximação da qual vim me dando conta nos últimos tempos. A ação das milícias no Rio é uma coisa muito impressionante. O livro do Bruno Paes Manso, um dos nossos entrevistados, República das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, é uma descrição pormenorizada e muitíssimo bem escrita do que acontece ali. Em uma de suas lives recentes, [o filósofo] Paulo Arantes [professor sênior do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP] comenta que a própria origem do Estado, como um todo, é de certa forma “miliciana” – quando o Estado surge ele se estrutura justamente assim, como uma espécie de instância que oferece ordem, segurança e alguns outros serviços (que depois vão se alterando, e crescendo, etc), em troca de um imposto. As milícias fazem o mesmo. Mas, há uma diferença: na atualidade do Rio de Janeiro, por exemplo (e este é o modelo de ação também do governo federal), é como se estivéssemos no meio de vários estados, que disputam entre si a nossa governança.

Não sei se estou correto, mas em São Paulo provavelmente esse espaço foi ocupado pelo PCC [o Primeiro Comando da Capital, organização criminosa em atividade desde 1993], de maneira quase hegemônica, de forma que não há tanto espaço para as milícias. Creio que o PT de fato disputou em algum momento esse espaço de ser não quem ocupa o lugar do Estado, mas aquele que garante que o Estado ocupe o seu lugar – ou seja, como uma espécie de mediador entre rincões mais inacessíveis da sociedade e o Estado que simplesmente não chegava lá. No entanto, obviamente, essa penetração não foi feita de maneira suficiente. E quando o partido se institucionalizou, ele como que delegou – ou fechou os olhos para isso – regiões inteiras à sua própria “autogestão” (leiam-se: milícias e crime organizado).

Isso efetivamente ocorreu, e é patente a incapacidade do PT e dos partidos de esquerda em geral de fazer uma discussão séria sobre a questão da “segurança”. Porque o PT nunca fez uma discussão real sobre isso. Também nesse assunto ele se portou como em tantos outros: ao mesmo tempo que disseminava a sua ideologia hegemônica antiviolência, defesa da educação como panaceia geral para resolver todos os problemas, etc, tudo isso que foi sempre dito de maneira mais ou menos constante, sabe-se que houve uma aceleração significativa no crescimento da população carcerária do Brasil sob o lulismo. Essa é uma questão que parece ser necessário encarar, e não sei em que medida isso está sendo feito – a nossa conversa com o José Genoíno será também uma oportunidade de perguntar para ele sobre isso. Obviamente que isso também se liga à questão “militares”.

Mariano – Acompanhando o raciocínio do Alexandre, o [jornalista] Chico Otavio, que é outro de nossos convidados que estudou as milícias, demonstra em detalhes como essa relação dos militares com os milicianos, desde o início, se deu de modo quase que indissociável. No livro dele com o Aloy Jupiara [Os porões da contravenção – jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado, Record, 2015], ambos reconstroem justamente esse caminho que passa pelos porões da ditadura, esquadrões da morte, jogo do bicho e a contravenção até alcançar sua forma mais organizada e profissional que são as milícias. Impressiona como a relação entre os eventos é direta, muitos dos pré-milicianos (se é que podemos chamá-los assim) são ex-militares que atuavam diretamente na repressão e que tinham toda essa a expertise dos torturadores, incluindo o serviço de inteligência que tudo isso envolvia. Hoje, é claro, as milícias já têm uma estrutura quase empresarial, na verdade mais do que empresarial, estatal, contudo sua origem é militar.

Cacá Bernardes Cena de ‘Abnegação 3 – Restos’ (2016): cinco cenas paralelas se passam em casas de diferentes extratos sociais, no mesmo dia, e tudo que se narra possui conexão com forças que se ligam, direta ou indiretamente, ao Partido dos Trabalhadores, seja no contexto de sua fundação, seja no seu momento histórico àquela altura

Quanto à aproximação com a Trilogia, eu acredito que faça sentido, sobretudo porque, de certa forma, o Projeto VERDADE mantém o mesmo ponto que nos interessava lá: estamos lidando com a estrutura de poder da atualidade. Na época, era a estrutura petista (e as alianças, etc), hoje é a estrutura militar. No fundo, penso que se trata disso, de uma tentativa de se aproximar dos núcleos obscuros de quem está com o poder político da vez. Acredito que a tentativa é de tocar em algumas das vigas escondidas que sustentam esse poder. Nesse sentido, inclusive, tanto os partidos quanto as milícias ou os militares parecem, de certa forma, estarem apoiados sobre as mesmas forças invisíveis. Todos são obrigados a atender aos mesmos interesses, mais ou menos obscuros. Alguns partidos conseguem administrar essas demandas de forma menos violenta, através de políticas sociais, por exemplo, agindo na contenção do caos. Já, dependo da crise, outros partem para o uso da força mais explícita. Foi o que demonstrou o [filósofo] Marildo Menegat na conversa que teve com a gente. No fundo, todos continuam na gestão da mesma barbárie. Mas dizer isso, que é fundamental, me dá a sensação de que não saímos do lugar, afinal é o que qualquer pessoa minimamente de esquerda já sabe. Por isso, a aproximação com os operadores desse estrutura é tão fascinante. Por que eles [notadamente os militares] acabam nos mostrando de que forma se constrói uma gestão do colapso, como tudo isso é operado, e, por consequência, como poderíamos eventualmente reagir a isso.
 

Teatrojornal – Sobre a pesquisa e criação artística da Trilogia Abnegação, o Tablado correu o risco de ser confundido com a onda antipetista que ganhou força nas eleições de 2018? ? Sofreu algum tipo de patrulhamento nesse sentido?

Dal Farra – Como indiquei no início da entrevista, acho que sim. Dentro da dinâmica de cismogênese, fomos incluídos diversas vezes no papel de “inimigos”, porque a dinâmica cismogênese é burra por definição, e não sabe ver contradições. Ou se está contra, ou se está a favor. Isso aconteceu de diversas formas, sobretudo em Abnegação 2. Houve, por exemplo, uma crítica a essa peça, escrita na ocasião de nossa participação no FIT de São José do Rio Preto (SP), em 2017, que sugeria ao festival que revisse as suas escolhas, que eventos desse tipo deveriam pensar melhor em que tipo de trabalhos chamavam para se apresentar em suas grades, por conta da “imagem de país” que eles pretendiam disseminar. Ou seja, a crítica dizia mesmo diretamente: vocês não deveriam ter convidado essa peça, porque ela mostra um Brasil que não é o Brasil que “nós” queremos mostrar. O que eu acho que ela não percebia, e muitos não percebiam, é que a dinâmica (já naquela época) de guerra que vivíamos operava de maneiras bastante sutis e, muitas vezes, nós atuamos para sustentá-la justamente quando achávamos que estávamos tentando evitá-la.

Explico-me: a tal cismogênese é útil, sobretudo por se tratar de uma maneira extremamente efetiva de manter a situação 100% previsível. Essas pessoas, então, achando que estão se protegendo, estão na verdade contribuindo justamente com essa manutenção da previsibilidade total. Muitas pessoas tomaram para si essa função, de se voltarem para dentro, exercendo mesmo essa espécie de patrulha, e se sentindo como que “os grandes militantes do momento”, aqueles que sabiam perfeitamente das melhores estratégias a serem tomadas, afinal “estávamos em guerra”, e “não era hora” de sermos críticos em relação ao PT, etc, etc. Por tudo isso, as pessoas se sentiam no direito de simplesmente opinar que uma peça não deveria ser apresentada, por conta da imagem de país que ela disseminava. Mas essas pessoas, que de repente tinham se tornado os “corajosos defensores” do nosso território, na verdade não sabiam, mas estavam o tempo inteiro agindo, de maneira e de fato contundente, justamente para que nos mantivéssemos perfeitamente parados – e, portanto, muito mais fáceis de atacar. Quando se está em um processo como o que estamos vivendo, aqueles que acham que estão tendo a estratégia perfeita de defesa, impedindo críticas ao “nosso lado”, essas pessoas é que são os operadores mais eficientes da guerra híbrida para dentro da nossa trincheira. Mesmo sem o saber, agem como infiltradas. 

Teatrojornal – Na nota final do texto A dramaturgia do estranho, publicado em Dramaturgias 1 (Sesc São Paulo, 2019), Dal Farra afirma que “nós não somos o que queremos ser apenas”, observando o resultado das urnas em outubro de 2018. “O país que está elegendo o Bolsonaro também é o nosso país. Não estou dizendo que o Bolsonaro é culpa da esquerda. Eu não acho isso. Mas acho que a barbárie que ainda funda a sociedade brasileira precisa ser reconhecida como nossa também. Não há como ser livre em um país que não é livre. Não há como não ser autoritário em um país que o é, em todos os seus mínimos vínculos sociais. É preciso lidar com os nossos próprios fantasmas, porque senão eles ficam assustadores demais”. Passados dois anos e meio de governo, como percebe o grau da barbárie? Quando você escreveu ainda não era possível precificar a pandemia…

Dal Farra – Eu na verdade continuo tendo uma posição semelhante, especificamente em relação a isso. Acho que em um país que é fundado na violência, e que se estrutura continuamente a partir da violência constante e brutal contra populações inteiras, não dá para querer achar que nós estamos ilesos. Creio que esse tipo de estrutura social nos perpassa, e não adianta querer achar que estamos livres disso porque somos “bons”, porque somos legais. De alguma forma essa estrutura nos toca também, e o único caminho para nos posicionarmos de maneira ativa e crítica de fato perante esse mundo é entender que essa estrutura é uma e única – que o aspecto regressivo do Brasil convive e estrutura o seu aspecto “progressista”, que esses dois lados se retroalimentam e são parte de um mesmo todo. Ou seja, não adianta ficar pensando com essa cabeça dualista, que parece sonhar com um momento em que o lado regressivo do país vai simplesmente sumir. Precisamos voltar a entender as dualidades do país como contradições (partes de um mesmo todo), que precisam ser, portanto, superadas a partir dessa consciência, e só isso nos retirará do lugar estagnado em que estamos. O que estou dizendo não é no sentido de que “o PT precisa fazer a autocrítica”, e etc, mas sim no sentido de compreender como imaginar uma perspectiva diversa (e eu acho que isso é possível) sem perder o pé de que este é o país em que estamos. Onde hoje, por exemplo, se não me engano, cerca de 30% da população ainda apoia Bolsonaro. Como imaginar outros caminhos sem perder isso de vista, sem nos tornarmos, na nossa “bondade”, igualmente negacionistas e ficar fingindo que 15% da população assumidamente nazista vai simplesmente sumir ou resolver ficar quieta?

Teatrojornal – Em termos de estrutura formal ou mesmo de abordagem, acredita que há reflexos candentes no exercício da função de diretor em seus processos dramatúrgicos? Quais direções ou codireções assinou?

Dal Farra – Sim, eu vim aceitando isso mais e mais com o tempo. Eu sou antes de tudo um dramaturgo, passei a dirigir a partir do texto, mas venho dirigindo os meus textos há bastante tempo já. No começo eram mais codireções, a maioria delas com o Clayton Mariano. No entanto, depois eu fui percebendo que estar no lugar do diretor me permitia aprofundar a escrita também no processo de direção, e as duas coisas passaram a se permear de maneira mais assumida (já o faziam desde antes, mas um pouco por acidente). Eu codirigi Mateus, 10 (com o João Otávio, que foi um parceiro incrível que faleceu naquele ano, o que foi mesmo uma tristeza e um trauma para nós); depois, a Trilogia Abnegação inteira dirigi com o Clayton; Conversas com meu pai  [2014] e Branco eu dirigi com a Janaina Leite, e todas essas peças eu escrevi também, claro. No entanto, a partir do Refúgio [2018], eu passei a dirigir sozinho. Floresta (2020), eu dirigi sozinho também, e agora o VERDADE eu também vou dirigir só. Creio que isso, embora aumente a minha tensão, é algo que radicaliza as escolhas, e faz com que o próprio texto se beneficie da direção também (o que já acontecia, o processo sempre foi esse, a escrita entra na sala de ensaio um pouco, mas torna-se agora mais estrutural).

Teatrojornal – Como situa a primeira década do grupo em relação à segunda, a partir de 2011, quando a rubrica política se tornou indissociável das criações derivadas de uma leitura da realidade mais imediata? Olhando a linha de tempo, isso foi sincrônico aos intercâmbio com encenadores e dramaturgos alemães. Em que medida os processos criativos foram influenciados por essas estéticas? Se reconhecidas, pode nomeá-las?

Mariano – Da forma como eu vejo, “os grupos de teatro” ou “O teatro de grupo” são, por si só, uma ideia que esteve (e está) permanentemente em disputa. Se a gente olhar um pouco mais de perto, aliás, é uma espécie muito particular de modelo de criação artística. Acho curioso, inclusive, como o nosso principal modelo de grupo de teatro, aquele que era estimulado na época em que surgimos (em 2001), de certa forma retrata um certo espírito de sua época. Algo que poderíamos chamar de um certo espírito lulista, no qual a base da criação artística é a tentativa de conciliação das diferenças, na qual a forma de criação pressupõe uma certa negociação das diferentes posições pessoais dos artistas do grupo. Mesmo as funções de cada artista passam a ser negociadas/conciliadas. Surgem hibridismos curiosos como o ator-dramaturgo, a direção coletiva, o artista-produtor, etc. Isso tudo que de certa forma estava expresso na própria ideia do processo colaborativo que norteou a maioria dos grupos daquela época.

Divulgação Atores do Tablado de Arruar no espetáculo de rua ‘Helena pede perdão e é esbofeteada’ (2010), que traz referências de melodrama e telenovela, pitadas de filmes de Pedro Almodóvar e Rainer Werner Fassbinder, passando pelo dramaturgo Bertolt Brecht; peça concebida no âmbito do projeto Atentados, em que o Tablado teve como base a busca por uma linguagem violenta e destrutiva, à altura do dia a dia de uma metrópole como São Paulo

Bom, soma-se a isso a própria criação da Lei de Fomento, que com certeza mudou o panorama do teatro em São Paulo e jogou ainda mais foco nesse modelo de grupo, enfatizando sua forma específica de produção artística.

Mas a questão, para mim, é que o “teatro de grupo” não é de fato uma forma, nem estética, nem políticatalvez seja mais uma falta de opção – como já disse o Moreira anos atrás [o diretor e dramaturgo Luiz Carlos Moreira, do grupo Engenho Teatral, de São Paulo] – diante da precariedade em que o teatro vivia até o início dos anos 2000. Parece que o que fizemos com todo esse movimento que começa no Arte contra a Barbárie [articulação de artistas e pensadores no fim dos anos 1990 contrários à visão da arte como mercadoria] equivaleu a “fazer do limão uma limonada”, ou algo assim. O fato é que todo esse movimento, que nasceu de constatação de nossa precariedade, a partir do momento em que começa ter algumas conquistas, começa também a operar como uma ideologia, dominante, sobretudo, nos grupos de esquerda da nossa geração.

Nós passamos por tudo isso e tudo isso nos moldou também. Acontece que nós, lá pelos anos de 2009, 2010, tivemos muitas mudanças internas no grupo, desde membros com os quais estávamos juntos havia quase dez anos e que optaram por sair, até experiências transformadoras, como esse projeto em parceria com os artistas alemães que você citou, a nossa própria ida para Berlim, para se apresentar no Maxim Gorki Theater, o contato direto com outras formas de produção e de criação. Tudo isso se deu no mesmo período.

Também foi a primeira vez que eu, o Alexandre e a Lígia fizemos uma peça sem assinar o nome do grupo (que poderia ser do grupo, mas não era, porque só tínhamos nós três e não todos os membros do grupo). Houve ainda a aproximação de um artista plástico, mais experiente, como o Eduardo Climachauska, de outra geração. Enfim, tudo isso, pessoalmente, acho que faz parte de um grande contexto de transformação do grupo e que, no limite, também questionava a própria ideia (ou ideologia) do teatro de grupo que estava em vigor até então.

Acho que as questões estéticas e políticas dos nossos trabalhos passaram por questionamentos semelhantes. Ainda que não fosse totalmente consciente, nem necessariamente uma coisa vinculada à outra. A política de esquerda, por exemplo, sempre esteve no grupo, desde a primeira peça [A farsa do monumento, de 2001, espetáculo de rua]. Mas nesses seis, sete primeiros anos ainda era muito vinculada a certas tendências e referências (estéticas e políticas) que de certa forma acompanhavam uma longa tradição, de um certo tipo de teatro de militância, de uma certa arte engajada, algo que se pensava como continuidade histórica de certos parâmetros estéticos que vinham desde o CPC [Centro Popular de Cultura, constituído em 1962, no Rio de Janeiro, pela União Nacional dos Estudantes, a UNE], do Teatro de Arena [1953-1972], etc. A partir desse momento que citei, que envolveu toda essa reestruturação interna do grupo, foi quase inevitável, também, não mudar nosso olhar sobre essas questões políticas e estéticas.

Não se tratava de negar as premissas com as quais praticamente fomos formados. Tratava-se de percebê-las, também, como parte de uma ideologia, na qual supomos que estávamos mergulhados. Daí nos parecia razoável que nosso teatro não deveria se esquivar desses questionamentos. Paralelamente, havia também uma vontade de encarar questões mais urgentes, mais contemporâneas. Questões que não tratassem pura e simplesmente de repor a luta de classes como eixo central dos dilemas políticos que vivíamos, ainda que na origem o fossem. Penso que a real politik de nossas peças entra aí, nesse contexto. Mas também entram aí o pastor evangélico, as possibilidades de encarar o lulismo como um período histórico, com suas contradições, etc.

E acho que, sobretudo, a vontade de elaborar uma linguagem que fosse própria desse momento, que atendesse a essa urgência. Os alemães continuaram nos influenciando, com certeza, mas talvez não só o Brecht, como era até então, sobretudo aquele Brecht do “jeito certo”, de que se falava muito. Passamos a considerar também a forma como um diretor como o Castorf [Frank Castorf, ex-diretor artístico do Volksbühne] olhava para o Brecht, a forma como o Gotschef [Dimiter Gotscheff (1943-2013), diretor de origem belga e radicado na Alemanha] olhava para o Heiner Müller, ou como o Pollesch [dramaturgo René Pollesch] lidava com todas essas referências sem contudo reproduzi-las. Entram aí o Schlingensief [o diretor Christoph Schlingensief (1960-2010)], recentemente a Susanne Kennedy [diretora alemã que compõe a equipe de gestão artística do Volksbühne] ou a Jelinek [Elfriede Jelinek, dramaturga austríaca].

Claro que sempre como referência, mas contando também com nossas divergências. E nem de longe essas referências foram ou são apenas do teatro alemão. Acredito que tivemos e ainda temos muito diálogo com a nossa própria tradição artística, o Cinema Marginal, por exemplo, do Sganzerla [diretor Rogério Sganzerla], do Agrippino [José Agrippino de Paula], do Bressane [Júlio Bressane], as obra do Nuno Ramos, na literatura e nas artes visuais, ou do próprio Clima [Climachauska], com quem trabalhamos, só para citar alguns contemporâneos, tudo isso faz parte de nossas criações, de um modo ou de outro.

Lígia Oliveira – Eu penso que a primeira década do trabalho do grupo foi marcada por peças que ainda resultavam de uma formação e um conceito amarrados à ideia de que o nosso trabalho estava constantemente em experimentação das suas formas de produção e também dos seus resultados estéticos, o que fez que cada a peça tivesse uma contribuição de diretores diversos e processos muito distintos de criação, mesmo que grande parte delas tenha sido feita na rua.

A partir de 2009, o grupo amadureceu principalmente na relação entre as funções internas e se destacou justamente porque aprofundou-se o trabalho de dramaturgia com o Alexandre, consolidando um olhar também para a direção com o João Otavio, que infelizmente não foi continuado por conta do seu falecimento [em 2012].

O grupo percebeu um caminho de pesquisa tanto na dramaturgia com o Alexandre como no trabalho de ator e nas direções que se seguiram. Penso que a experiência de intercâmbio com a Alemanha nos permitiu abrir ainda mais as possibilidades de organização e produção artística devido à grande diferença de estrutura entre os dois países.

Teatrojornal – No trabalho continuado da escrita para a cena, as suas inquietudes formais e temáticas são mais afeitas a Bertolt Brecht ou a Heiner Müller?

Dal Farra – Esta é uma pergunta que para mim é bastante importante, e se situa no território que de alguma forma pretendo abordar no meu doutorado. Creio que eu estou muito mais diretamente conectado ao pensamento de Heiner Müller quando, por exemplo, ele critica uma certa tendência “classicizante” de Brecht, e defende a metáfora (Fatzer por exemplo) [referência à obra O declínio do egoísta Johann Fatzer, seleção e organização Müller para as mais de 400 páginas do que se conhece como Material Fatzer, conjunto de fragmentos teatrais produzidos por Brecht entre 1927 e 1929, período de predomínio das peças didática], contra as peças de Brecht que se colocam mais como parábolas (A resistível ascensão de Arturo Ui ou O círculo de giz caucasiano), porque a metáfora abre perspectivas estéticas que o próprio autor não imaginaria, “a metáfora sabe mais do que autor, o autor sabe mais do que a parábola”… Com isso eu concordo muito.

Vitor Vieira Vitor Vieira, Lígia Oliveira, Alexandra Tavares (ao fundo) e Clayton Mariano em ‘Quem vem lá’ (2008), livre transcriação de ‘Hamlet’, primeiro espetáculo em espaço coberto e quarta montagem do grupo paulistano após ‘A farsa do monumento’ (2001), ‘Movimentos para atravessar a rua’ (2003) e ‘A rua é um rio’ (2005)

No entanto, entendo que, como aponta o José Antonio Pasta no seu livro sobre Brecht [Trabalho de Brecht: breve introdução ao estudo de uma classicidade contemporânea, (Duas Cidades e Editora 34, 2010], o tal movimento “classicizante” foi também uma forma de Brecht lidar com uma cisão real (isso Müller também aponta), mas que se tratava de um movimento de “assimilação” da imediaticidade que se impôs sobre a sua obra a partir daquele momento (na década de 1930, ascensão do nazismo, exílio, etc). Penso que esse movimento, que é trabalhoso, e extremamente desafiador, tem algum paralelo com o que estamos vivendo (obviamente na sua versão rebaixada, “fora do lugar” e com um alcance muito mais reduzido). O momento histórico pelo qual estamos passando exige um esforço semelhante de “organização” interna, e de assimilação das impossibilidades para dentro da obra. É uma tarefa extremamente difícil, e estudar a maneira como o Brecht realizou isso é uma forma de tentar se inspirar, ainda que não haja nada em comum em termos diretos.

Teatrojornal – O Tablado tem a idade do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. A partir do percurso do grupo e de outros pares, que exercício de autocrítica seria possível a essa geração paulistana?

Mariano – Acho que boa parte dessa pergunta já respondi lá atrás. Bom, eu acrescentaria que, pela própria pergunta, já se antevê que se trata de uma geração que parece ter passado, não? E talvez com ela, parece ter passado também toda uma forma de se pensar a criação e a produção do teatro, em especial do teatro de grupo. De novo, penso na coincidência com o fim do lulismo. Tudo indica que algo se esgotou, de alguma forma. Os jovens que estão começando agora, formando agora seus grupos, dão sinais claros desse esgotamento, na minha opinião. Sem demérito, aliás, pelo contrário, é possível que algo novo surja exatamente dessa condição.

A questão, para mim, é o que fazer com tudo isso que se acumulou nos últimos 20 anos e que ainda permanece por aí. Há quem diga, já há algum tempo, que o sucesso da Lei de Fomento é sua própria pá de cal, dada a insuficiência da lei frente à demanda dos novos grupos e da persistência ainda dos grupos mais velhos. As dificuldades que o Movimento de Teatro de Grupo enfrenta hoje para se reorganizar parece ser um indicativo disso.

Particularmente, não estou convencido de que seja apenas isso. Na verdade, me preocupa talvez até mais a possibilidade de, numa eventual volta do Lula, por exemplo (que eu também torço muito para que aconteça), queiramos simplesmente voltar ao que “éramos antes”. Aliás, esse é um comportamento que realmente deveria ser estudado no campo da esquerda: a capacidade de se jogar todos os problemas para debaixo do tapete em nome do futuro que melhor virá.

Um pouco na contramão disso, acredito que seja necessário aproveitar esse momento trágico que vivemos para avançar. Encarar os dilemas que se apresentam, como a compreensão de que a luta por políticas públicas não deve ser a nossa única pauta (ainda que elas sejam estruturantes e fundamentais) e que, portanto, não deveriam ser a única razão de nos mobilizarmos. Acredito que deveríamos repor o debate sobre questões estéticas que ficaram perdidas lá por 2007, 2008 e que, no fundo, acabam sempre renegadas a um segundo plano. Isso porque essas questões parecem refletir muito as próprias dificuldades políticas que nos travam na disputa pelo orçamento público.

Poderíamos pensar nos modismos que tomam conta de determinados períodos do teatro. Por exemplo, o que significa essa avalanche de peças autobiográficas, autoficcionais e derivados, que tomou conta da cena contemporânea? O que isso reflete da e para a nossa luta no teatro de grupo atualmente? Com que imaginário político estamos lidando quando praticamente transformamos  o “real em cena” em sinônimo de teatro contemporâneo? Eu não penso só nas questões acadêmicas que envolvem esse debate, que eu sei que são muitas, etc. Mas o próprio fato desses assuntos voltarem a ficar confinados, cada vez mais, apenas à academia, isso já quer dizer algo.

Agora, entre nós, na nossa própria luta política, que é obviamente indissociável de nossas criações estéticas, o que isso tudo implica? Como isso tudo se relaciona aos 48.000 inscritos do último edital do ProAC [Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo]? Vamos esperar alguém se dispor a escrever uma tese de doutorado sobre o assunto para começar a elaborar essas questões?

Houve um momento em que esboçamos esses debates, chegamos mesmo a avançar, sei lá, há uns 15 anos mais ou menos. Obviamente não avançamos o suficiente, o que não significa que devamos enterrar por completo essas tentativas. Eu vejo muito que a justificativa para essa nossa desarticulação passa sempre pela catástrofe política que estamos vivendo, mas daí eu penso justamente nisso: se não for quando estamos diante da morte, será quando?

Eu não tenho nenhuma solução, obviamente, para essas questões, mas suspeito que para isso voltar a vigorar seria necessário retomar algumas ideias meio velhas, talvez, o que passa pela criação de uma base comum, política, algo que o Reinaldo Maia [1952-2009, ator e dramaturgo cofundador do Grupo Folias d’Arte] chamava de afeto político, que não é condescendência de Comunidade Eclesial de Base, mas sim aquilo que nos identifica como iguais, como indivíduos que se aliam por estarem do mesmo lado da trincheira.

[Entre as questões do doutorado] Analisarei como ‘Leite derramado’  foi, de maneira gritantemente evidente, uma obra endereçada ao público ‘de esquerda’, feita para ‘ser a peça do ano’, e como isso funcionou e foi prontamente aceita por toda a intelectualidade do momento. (…) Depois, como sabemos, Alvim ‘pulou para o outro lado’, o que foi também um gesto calculado, e que surtiu também o efeito esperado – ou seja, ele foi um dos únicos que conseguiu ocupar os dois lados da trincheira, e penso que ele seja uma das provas cabais de como nos tornamos previsíveis e manobráveis. O que Alvim fez, desse ponto de vista, é quase que uma piada cínica em cima da nossa situação

Dal Farra

Sem isso, acredito que vai ser impossível avançar em qualquer uma das lutas. E acho mesmo que é justamente porque tudo parece estar em vias de ruir que deveríamos radicalizar essa postura. Obviamente, sem ser infantil, cheio de bravatas e entregar de mãos beijadas nossas conquistas do passado para qualquer larápio, amiguinho do prefeito, que apareça… Não se trata disso. Não se trata simplesmente de sair acabando com tudo, destruindo o que restou. Envolve construção também, estratégia, pensamento crítico, etc. Aliás, essa lógica estratégica-militar, de que estamos falando talvez tenha até algo a nos ensinar. Mas precisaríamos, antes de tudo, nos reconhecermos como estando do mesmo lado da trincheira, pelo menos em parte.

Oliveira – Penso que junto com a consciência de que somos um grupo que praticamente talvez não existiria se não tivéssemos o Programa Municipal de Fomento ao Teatro por vários motivos – e um deles por sermos necessariamente políticos e isso quer dizer que a nossa continuidade depende claramente de recursos –, temos a responsabilidade de conceber formas de atuar e existir alternativas para que a nossa arte não seja refém de nenhum momento político ou molde de qualquer ideologia.

Teatrojornal – Fale sobre sua formação política. Teve influências familiares, participou de movimento estudantil?

Mariano – Durante muitos anos eu fui filiado ao PT, não iniciei no movimento estudantil, só depois, na faculdade, na USP, é que tive mais contato com a galera do movimento estudantil. Eu já tinha uma militância na minha cidade, em Osasco. Com o pessoal da cultura e sobretudo da educação, dos professores, foi aí de fato por onde comecei. Mas nessa época ainda tinha muita referência que vinha da igreja católica (das comunidades eclesiais) e do movimento operário, era tudo bem misturado. Depois eu até cheguei a trabalhar em uma gestão do PT lá em Osasco, na Secretaria de Cultura, com o Roque Aparecido da Silva, figura histórica do partido e da cidade, egresso da luta armada. Também  ajudei na implantação do orçamento participativo na cidade. Projetos típicos do PT daquela época. Era a mesma em que estava surgindo o PSOL, mas mesmo com divergência no partido não quis me filiar ao PSOL e acabou que alguns anos depois apenas saí do PT.

Foi bastante por conta do teatro, sobretudo do Arte contra a Barbárie, que me engajei de novo sem vínculos partidários direto. Acompanhei o Arte e depois o Redemoinho [ou Rede Brasileira de Espaços de Criação, Compartilhamento e Pesquisa Teatral, criada em 2004], que foi uma das experiências mais curtas e instigantes de militância que já tive (e dos vários momentos de  criações e rachas dos movimentos de teatro aqui de São Paulo por meio dos quais fui me formando]. O próprio Tablado me aproximou da luta dos movimentos por moradia lá pelos anos de 2003 a 2006, mais ou menos (o MTST, MMRC, MSTC, etc). Agora, já faz muitos anos que não estou no PT, e em nenhum outro partido, mas ainda conservo amizades muito fortes tanto lá quanto no PSOL e com alguns movimentos como o de professores.

Oliveira – A minha formação política se deu principalmente no teatro, na atuação nas ruas e no contato direto que tive, por meio do Tablado de Arruar, com movimentos por moradia. Apesar de sempre ter votado no PT nunca tive uma relação direta com nenhum partido.

Dal Farra – A minha formação política se deu na sua maior parte durante a época de estudante, e também por influência familiar de alguma forma. Sempre tive um interesse bastante forte em questões políticas, mas não fui um militante muito atuante. Estive sempre por perto de movimentos que considero importantes, mas nunca atuei de maneira disciplinada como vários dos meus amigos na época.

No colegial por exemplo os meus amigos todos eram realmente muito ativos politicamente, inclusive um deles era o Guilherme Boulos [professor e membro da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto] – mas ele não era o único que dava essa importância fundamental à questão da militância, já naquela época. Tínhamos 15, 16 anos de idade, e boa parte das tardes era passada na sede do PCB [Partido Comunista Brasileiro], na rua do Carmo [região central], tomando decisões sobre ações, etc. Eu estive presente em algumas dessas reuniões, até não tão poucas assim, mas nada comparado a todos os meus amigos que levavam aquilo mais a sério do que eu – e muito menos comparando ao Boulos, que desde então já tinha isso como interesse de fato central.

Depois, quando entrei na faculdade de filosofia (cursei três anos, e abandonei o curso para estudar música), esses mesmos amigos estavam fortemente envolvidos com o DCE [Diretório Central dos Estudantes], em um momento em que houve greves importantes, entre 2000 e 2002. Sempre estive presente, de maneira no entanto mais ou menos inconstante.

Na sequência, me distanciei do movimento estudantil e me aproximei dos movimentos ligados ao teatro paulistano, onde também sempre tive um papel que nunca chegou a ser central – mas também estive presente em muitos dos importantes momentos ao longo daqueles anos (e, creio, até hoje). A questão política, no entanto, sempre foi para mim de importância central, em termos de questão mesmo, para além da militância em si. E isso talvez tenha a ver com algo ligado à minha família – são assuntos que estiveram e estão sempre presentes. Creio que a política, para além de ser uma prática que eu tenha realizado com a constância necessária ao longo da minha vida, foi na verdade algo que estruturou a minha relação com o mundo, e com a arte também.

Teatrojornal – As realidades brasileiras se tornaram mais abissais com a pandemia. Como o Tablado sentiu o movimento das placas tectônicas nos últimos 16 meses? E no plano pessoal?

Mariano – Estamos na espera, não é? De certa forma foi o que nos restou. Acreditamos que até a estreia desse projeto poderemos estar de volta aos palcos, seria de fato o melhor cenário. Pessoalmente, a preocupação foi se manter. O cinema e as séries, que muitas vezes salvaram o orçamento, parou por completo. Mais uma vez, foram as políticas públicas que amenizaram um pouco a situação. Sem elas, não sei o que seria. Fiz peças e outros projetos como ator convidado, essas versões online – e tudo isso também está sendo uma experiência, sobretudo de linguagem, de limites, etc.

Acredito que o ciclo de debates e leituras que estamos realizando é uma maneira de lidar com isso. Afinal, trata-se de um tipo de trabalho que se adequa bem a esses formatos online. Já a criação de uma peça, me parece um assunto bem mais complicado, a sensação é de que tudo fica fora do lugar: o audiovisual, o teatro, a atuação, tudo… Mas talvez algo novo esteja nascendo, formatos novos: YouTube-teatro, podcast-teatro, etc, não dá para ter dimensão ainda. Eu pessoalmente só busquei não enlouquecer de vez.

Oliveira – Acho que como todo o setor cultural, o grupo ficou por um período suspenso, tentando se entender dentro da situação da pandemia e das impossibilidades que ela trouxe, mas eu particularmente fico muito contente de que estamos conseguindo realizar este Projeto VERDADE e acho que ele cumpre um papel importante de nos trazer para a realidade e tentar nos fazer mover quando parece que estamos soterrados já. Eu pessoalmente tive que mudar temporariamente de país e estou lidando com todas as dificuldades em conseguir me manter ativa artisticamente e ainda poder participar à distância deste projeto do Tablado de Arruar.

Teatrojornal – Na orelha de seu romance, Manual da destruição (2012), o psicanalista Tales Ab’Saber discorre sobre a “guerra contra tudo e contra si mesmo” do narrador, que ele lê como “o olhar, o sujeito ou a coisa que conta a história”. A escala das “pequenas grandezas ideológicas” daqueles “mínimos teatros danificados do cotidiano”, sempre segundo Ab’Saber, ganharam tons mais cruéis e brutais no cenário do mundo de agora. Aquela voz tonitruante parece reverberar num dos quadros do ensaio audiovisual Reconciliação (2021), parceria com a dramaturga portuguesa Patrícia Portela, o monólogo rasgado atuado por Clayton Mariano. As vociferações emanadas dessas artes correlatas constituem uma extensão de sua escrita para a cena? Pensa em abrir outros flancos nesses tempos ensurdecedores?

Dal Farra – Essa orelha me parece expressar muito bem o que aquele livro estava colocando em movimento, e penso que há aí uma espécie de estrutura de linguagem, o tal “bisturi do mal”, que segue me interessando, e que se dissemina para outras obras e para outros territórios. Com certeza no imenso monólogo do Reconciliação essa linguagem estava operando também, sim. O audiovisual começou a me interessar como possível território de criação recentemente, um pouco antes da pandemia. O teatro feito em ambiente online não me interessou tanto, tive dificuldade de me colocar criativamente ali, acho. No entanto, esse filme, ou vídeo-arte, que fizemos foi um primeiro teste nesse terreno, acho, e eu fiquei extremamente animado com as possibilidades que deu para investigar ali. Em VERDADE, certamente utilizaremos também a linguagem do cinema, e parte do resultado será algo que se aproxima da linguagem dos filmes (ainda que a peça já possa ser presencial ou semipresencial).

Além disso, passei praticamente todo o tempo da pandemia trabalhando em meu novo romance, Deserção (título provisório). Eu acho que esse fluxo do “olhar, sujeito ou coisa” que o Tales menciona ainda está presente e é uma matéria minha. No entanto, nesse momento, eu acho que o grande trabalho que tenho tido, em todas as áreas, vai no sentido de assimilar esse tipo de olhar para dentro da obra, e ampliar o escopo desta, de maneira que ela englobe esse impulso, que antes aparecia de maneira direta.

Em Manual da destruição, por exemplo, há uma falta intencional de curva. A estrutura em “bloco” do livro é uma maneira de como que colocar esse discurso a nu. Me interesse agora investigar como esse tipo de fluxo (ou outros fluxos semelhantes) podem se incluir em estruturas maiores, e mais capazes de ampliar a obra, de tal forma que caibam nela mais de um, possivelmente vários “olhares, sujeitos, coisas”.

Divulgação Obra da exposição ‘Fim do poço’ (2013), do artista plástico Eduardo Climachauska, colaborador do Tablado de Arruar

Teatrojornal – Quais problemas tratou em seus estudos na pós-graduação? Derivaram de ou incidiram em seus escritos?

Dal Farra – Como coloquei acima, sim, e muito. Eu ainda estou finalizando o doutorado, que entrego em fevereiro de 2022. Neste momento estou na escrita da tese. Nela, pretendo tratar justamente desse momento, entre 2016 e 2018, um pouco antes e um pouco depois, que foi quando houve a “virada” determinante, que penso como um momento de “fechamento” de diversas aberturas que o lulismo tinha possibilitado (incluindo aí a própria crítica dele, como era o meu caso e de outros artistas).

Pretendo analisar a forma como esse fechamento se deu, sobretudo no teatro, mas também no cinema em parte. Nesse caso, analisarei por exemplo a diferença entre filmes como O som ao redor, de 2012, que me parece uma obra aberta, “dialógica” nos termos de Bakhtin, e Aquarius, de 2016, que é claramente uma obra fechada, ou “monológica” [ambas direções de Kleber Mendonça Filho]. Creio que essa diferença expressa o fechamento por que passamos, que Piero Leirner nomeou como cismogênese  – e que teve consequências diretas na arte, acho.

Pretendo analisar também o “caso Alvim” [referência ao diretor teatral Roberto Alvim, cofundador do grupo Club Noir (São Paulo, 2006) e ex-secretário especial da Cultura, no Ministério do Turismo, exonerado em 2020 após copiar frases de um discurso nazista em um pronunciamento oficial da pasta], que foi justamente, talvez, o único que entendeu a dinâmica e, principalmente, foi cínico e psicopata o bastante para levá-la até as últimas consequências.

Analisarei como Leite derramado [versão do romance de Chico Buarque estreada em 2016 com música original criada pelo filósofo Vladimir Safatle] foi, de maneira gritantemente evidente, uma obra endereçada ao público “de esquerda”, feita para “ser a peça do ano”, e como isso funcionou e foi prontamente aceita por toda a intelectualidade do momento, que na estreia já estava concluindo que se tratava de fato do melhor espetáculo de 2016.

Depois, como sabemos, Alvim “pulou para o outro lado”, o que foi também um gesto calculado, e que surtiu também o efeito esperado – ou seja, se concordarmos com Piero Leirner, ele foi um dos únicos que conseguiu ocupar os dois lados da trincheira, e penso que ele seja uma das provas cabais de como nos tornamos previsíveis e manobráveis. O que Alvim fez, desse ponto de vista, é quase que uma piada cínica em cima da nossa situação. E obviamente se beneficiou cinicamente em cada uma dessas suas “viradas” construídas.

Mas o foco do doutorado no fundo não é esse. Sendo sincero, acho que o foco do doutoramento no fundo sempre foi justamente o de tentar entender como encontrar, nesse território clivado, extremamente previsível, e potencialmente paranoide, uma maneira de me movimentar novamente – porque me percebi mesmo estagnado, a partir do momento em que o tipo de discurso crítico, polêmico, que nós realizávamos ficou sem lugar, fiquei sem chão. O doutorado (assim como tudo o que venho fazendo) é uma tentativa de reencontrar o chão, e entender um pouco onde estamos pisando.

.:. Leia mais sobre o Projeto VERDADE no site do Tablado de Arruar

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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