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Crítica

Ao despertar de sonhos intranquilos

11.9.2021  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Alexandre Rezende

Mesmo de olhos bem fechados, não deixamos de ver o horror. O impacto da pandemia de Covid-19 no sono dos brasileiros tem sido estudado: até 50% da população relata insônia nos últimos meses. Mas, ainda entre aqueles que conseguem vencer a ansiedade e adormecer, sentem-se os efeitos. Os temores e lutos do novo cotidiano transformaram-se em matéria para os sonhos – ou pesadelos. 

Para a construção do espetáculo Sonhos de uma noite com o Galpão partiu-se declaradamente desse fenômeno. Na dramaturgia assinada por Pedro Brício, relatos oníricos coletados entre cerca de 150 pessoas servem de base. Costurados, os sonhos são narrados ou encenados durante a peça do tradicional grupo mineiro Galpão.

Apresentada na internet, a obra integra um projeto maior. Está entre as iniciativas da proposta Dramaturgias – Cinco Passagens para Agora, que contempla cinco criações cênicas concebidas para as redes sociais. Nessa primeira realização, inserções ao vivo integram-se a cenas que foram gravadas previamente no teatro. As interpretações solo são majoritárias. E o espectador, ainda que distanciado pelo suporte das telas, experimenta uma curiosa proximidade, ocupando a posição de interlocutor ou confidente de quem fala.

Em um restaurante, um homem faz ao garçom um pedido simples, trivial. Quer comer um pedaço de frango e levar o restante do prato pra casa. Mas não é compreendido. As palavras não servem mais para nos comunicarmos com quem só acredita nas próprias versões dos fatos. Em uma festa de aniversário, uma mulher confidencia à amiga um sonho erótico – nem mesmo esse território está a salvo dos horrores da política. O falso puritanismo que ocupa o poder quer interditar tudo

O aspecto de intimidade instaurado pela montagem dialoga abertamente com a herança do Galpão. Com origem no teatro de rua, a companhia sempre prezou pela comunicação direta com a plateia. A inspiração no circo e na tradição popular gestou uma teatralidade clara, potente; espaço em que a profundidade da pesquisa não resvala nunca em afetação ou barreira ao entendimento.

Sonhos de uma noite com o Galpão é resultado da primeira parceria entre o grupo e Pedro Brício, que responde também pela direção. Uma direção que foi realizada à distância, nos moldes impostos pelo isolamento social, com cada um dos intérpretes ensaiando na própria casa. Romper a aparente frieza sugerida pela distância física entre a cena e o público certamente pode ser visto como um crédito do coletivo de atores, pelas razões anteriormente citadas, mas encontra respaldo nas proposições do encenador. O uso de elementos simples de cenografia – como a opção pela cor azul – ajudam a criar uma unidade para o que se vê. Sem que haja interação física entre os atores, eles conseguem apresentar uma cena tecida a muitas mãos: o desenho de um relaciona-se à fala do outro, o gesto de um intérprete completa o movimento do colega na tela ao lado.

As narrativas que compõem a dramaturgia trazem alguns sonhos de caráter quase coletivo, tantos são os relatos coincidentes durante o período de quarentena. Em artigo publicado no periódico da American Psychological Association, a psicóloga Deirdre Barrett apresenta uma série de sonhos que coletou no último ano, com a recorrência de algumas situações, como a ausência do uso da máscara, a perseguição por criaturas monstruosas e a imagem da própria morte. Na criação do Galpão, Teuda Bara traz humor à situação de descobrir-se sem proteção facial em meio a uma multidão. Em toada oposta, Eduardo Moreira procura o próprio corpo em um cemitério. Dispostos como se fossem túmulos estão os baús da companhia, menção indireta às viagens e turnês que o Galpão está impedido de fazer no momento.

Alexandre Rezende Eduardo Moreira interpreta as agruras de um ator em ‘Sonhos de uma noite com o Galpão’, dramaturgia e direção de Pedro Brício

Situação particularmente feliz na proposta é ida do grupo a uma feira livre, onde os integrantes empunham placas pedindo o relato de sonhos e reforçando o laço forte com sua raiz popular. A cena faz lembrar ainda os bastidores dos documentários de Eduardo Coutinho, em que a relação com o entrevistado é não apenas exposta, mas a razão para própria existência de um determinado projeto. Trata-se de uma pequena amostra de pessoas, reunidas em uma cidade e situação específicas, mas o suficiente pra lembrar em que país estamos. O país do qual nos esquecemos.

Se os sonhos com a morte e a insegurança se tornaram recorrentes em diferentes lugares do mundo, a crise local extrapola os limites da emergência sanitária e traduz-se em outra natureza de pesadelos. O cerceamento vivenciado não diz respeito apenas a medidas de isolamento: toda uma ideia de Brasil desvaneceu-se. É uma sensação de exílio dentro das próprias fronteiras – às vezes, dentro do próprio corpo.

Em um restaurante, um homem faz ao garçom um pedido simples, trivial. Quer comer um pedaço de frango e levar o restante do prato pra casa. Mas não é compreendido. As palavras não servem mais para nos comunicarmos com quem só acredita nas próprias versões dos fatos. Em uma festa de aniversário, uma mulher confidencia à amiga um sonho erótico – nem mesmo esse território está a salvo dos horrores da política. O falso puritanismo que ocupa o poder quer interditar tudo.

Enquanto sonhamos, trazemos tudo ao caldeirão da psique: as percepções, as lembranças, os raciocínios. Apenas suspendemos um pouco o juízo, como se a lógica e suas limitações pudessem ser postas de lado. De repente, tudo é permitido. Mas o absurdo, hoje, não é mais privilégio de quem sonha. Onde está a racionalidade quando tudo o que conhecíamos como verdade e como valor foi vilipendiado?

Serviço:

Sonhos de uma noite com o Galpão

Sábado e domingo, 20h. De 21 de agosto a 12 de setembro de 2021

Ingressos gratuitos em https://www.sympla.com.br/grupogalpao

10 anos

70 minutos

Site do Grupo Galpão

Alexandre Rezende Num dos episódios, Teuda Bara narra a angústia de uma pessoa que, em plena pandemia, se deparou com passageiros descendo de um ônibus, todos sem máscaras

Ficha técnica:

Dramaturgia e direção: Pedro Brício

Com: Antonio Edson, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara

Sonhadores: Adyr Assumpção, Amanda Palma, Beatriz Radicchi, Benjamin Brício, Bruna Mitrano, Cássia Lima, Clarissa Tomasi, Elisa A. Werdet e Ignacio Aldunate, Evandro Costa, Fernando Chagas, Gil Milagres, Gil Amancio e Dani Adil, Inês Peixoto, João Santos, Juliana Martins, Kayete, Kdu dos Anjos, Letícia Castilho, Lica Del Picchia, Marina Pêgo, Nil César, Pedro Brício, Raquel Carneiro, Raysner de Paula, Sávio Leite, Suely Machado, Tadeu Fernandes, Tati Mateus, Théda Mara, Titina Medeiros, Valéria Alvim, Vanessa Machado e Vera Casanova (O Grupo Galpão agradece a estes e a outros sonhadores, que abriram sua intimidade para compartilhar seus sonhos. A peça foi inspirada nesses relatos)

Direção de arte: André Cortez

Trilha sonora: Domenico Lancelotti

Iluminação: Rodrigo Marçal

Assistência de dramaturgia e direção: Ana Abbott

Edição de vídeo e assistência de direção: Luli Carvalho

Assistência de direção de arte: Paulo André

Impressões corporais para vídeo: Dani Lima

Técnico de transmissão: Thiago Sacramento

Técnico de operação de áudio: Rodrigo Marçal

Contrarregra: Admar Fernandes e João Santos

Comunicação: Fernando Dornas e Letícia Leiva

Assessoria de imprensa: Polliane Eliziário – Personal Press

Identidade visual: Carolina Moraes Santana e Délio Faleiro

Imagens: Alexandre Baxter, Bruno Magalhães e Luiz Felipe Fernandes

Captação áudio externo: Vinícius Alves

Edição de imagens: Alexandre Baxter, Luiz Felipe Fernandes e Luli Carvalho

Animações de vídeo: Matheus Gepeto

Fotos de divulgação: Alexandre Rezende

Assistência de produção: Lica Del Picchia

Produção executiva: Beatriz Radicchi

Direção de produção: Gilma Oliveira

Produção: Grupo Galpão

Grupo Galpão:

Atores –

Antonio Edson, Arildo de Barros, Beto Franco, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André, Simone Ordones e Teuda Bara

Equipe –

Gerente executivo: Fernando Lara

Coordenadora de produção: Gilma Oliveira

Coordenador de comunicação: Fernando Dornas

Coordenadora Administrativa: Wanilda D’Artagnan

Coordenadora de planejamento: Alba Martinez

Coordenador técnico: Rodrigo Marçal

Produtora executiva: Beatriz Radicchi

Comunicação online: Letícia Leiva

Assessoria de imprensa: Polliane Eliziário – Personal Press

Assistência de produção: Lica Del Picchia

Assistente financeiro: Cláudio Augusto

Serviços gerais: Danielle Rodrigues

Gestor financeiro de projetos: Artmanagers

Lei Federal de Incentivo à Cultura | Patrocínio máster: Instituto Cultural Vale | Patrocínio: AngloGold Ashanti, banco BV | Realização: Secretaria Especial de Cultura, Ministério do Turismo, Governo Federal

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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