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Crítica

Uma cena para velar o breu

6.10.2021  |  por Luiz Fernando Ramos

Foto de capa: Cristiano Prim

Matéria escura do Cena 11. Cena expandida. Já não mais estritamente presencial, necessariamente remota, mas presente enquanto campo aberto de forças, imantando visões, sensações, movimentos, internos e aparentes ou externos aos corpos, mas sistematicamente incomensuráveis e singulares. Pingos, pios, amplificados e estendidos como gritos, como estridências crescentes, como deformações ritmadas, dançantes, mas na contradança surpreendente, sempre, de não ser dança, de virar verso e ser ostensão de vida.

O Cena 11 não quer mais só dançar, morrer, acabar. Nunca quis. Mas, agora, a extinção é tema e é luta corrente. Ainda estão lá as quedas, gramática de um dispositivo dominante, mas elas aparecem dispersas, desorganizadas na mixagem de línguas e sintaxes. Na montagem vídeo-gráfica com pluralidade de sentidos, mesclando as fusões fílmicas com as palavras em liberdade na prosódia incessantemente variante da tela, o Cena 11 se reinventa de todos os modos e, particularmente, sinaliza uma via pós-pandêmica de expressão cênica, simultaneamente midiática e presencial.

O escuro não engole o mundo. Atravessa o deserto no sol a pino e inunda o mar de verdor anímico. O branco e preto, salpicado de rubro e rosa, organiza a superfície da imagem. O ritmo que pinga agudo a perfura e adensa. A vida importuna, não acaba mais. Extinguir parece impossível, pois tudo se move afinal, nada cessa enfim

Agora, nessa hora de horror e de suspensão de esperanças, cabe sem dúvida dançar, e, como nunca, o Grupo Cena 11 dança, mas o faz tanto em coreografias explícitas como nessa deriva imagética e poética, combinando pontuações visuais e palavras ao vento. Nessa configuração espetacular e performativa, de uma cena híbrida de imagens gravadas e imediatamente captadas, as atuantes já não propriamente caem, mas despencam, como todo o projeto do grupo, que se lança à frente, para além da extinção. O Cena 11 se atira ao futuro, arriscando reconstituir-se como presença virtual, ao mesmo tempo em que resgata sua origem, de experimentação radical e aventura.

Cristiano Prim As artistas Kitty Katt (à esquerda) e Aline Blasius em ‘Matéria escura’, criação do Grupo Cena 11 (SC), estreada em setembro e apresentada em transmissões ao vivo em festivais

Os diálogos se abrem em várias coordenadas. Há o resgate de uma história própria, a sintonia com o tempo de agora e suas escuridões, a exploração das regiões fílmicas e pictóricas, as escritas instáveis e o desvendamento de todo o processo em camadas de reverberações e repetições trançadas. Cada uma destas vertentes em que a linguagem fluída, plástica e musical, torrente de tonalidades pulsantes passeia, sugere conexões a referentes outros, da dança, do teatro, do cinema e das artes vivas. O Cena 11 se expande e enfrenta órbitas insuspeitas, impossibilidades dissipadas, matérias ostensivas da contemporaneidade que alcança visitar.   

Corpo invisível que aparece em outros corpos e instaura uma materialidade no limiar da visibilidade, coreografia de transbordamentos, essa “matéria escura” captada por sensores multidirecionais projeta uma sintaxe de assimetrias. Em “exílio ativo” a companhia revê processos e reinventa procedimentos, abre os arquivos e descobre novas memórias. “Caos caption” sintetiza o modo operador, que soma vozes e sons maquinais às inscrições legíveis, legendas lendárias que soam como urgências incontornáveis: a aparência do fim e o fim tornado obra, epílogo de cena, filme sobre o “futuro fantasma”.

Todo um ecossistema de presenças transitórias, físicas ou digitais, traçando entremeios de tempos cruzados. O escuro não engole o mundo. Atravessa o deserto no sol a pino e inunda o mar de verdor anímico. O branco e preto, salpicado de rubro e rosa, organiza a superfície da imagem. O ritmo que pinga agudo a perfura e adensa. A vida importuna, não acaba mais. Extinguir parece impossível, pois tudo se move afinal, nada cessa enfim.

.:. O espetáculo Matéria escura teve apresentações no PANORAMA RAFT, em 17 de setembro de 2021, e na Bienal Sesc de Dança, em 2 de outubro de 2021.

Cristiano Prim Natascha Zacheo na obra agendada para abril do ano passado em Frankfurt, mas a pandemia mudou tudo para o grupo de Florianópolis que atua desde 1993 e teve de reinventar seu modo de trabalhar e, por consequência, a própria peça coreográfica

Ficha técnica:

Criação, coreografia e performance: Alejandro Ahmed, Aline Blasius, Bianca Vieira, João Peralta, Karin Serafin, Kitty Katt, Luana Leite, Malu Rabelo e Natascha Zacheo

Operação e criações em vídeo e som: Alejandro Ahmed e João Peralta

Direção técnica: Grupo Cena 11

Interlocução para iluminação: Irani Apolinário e Rafael Luiz Apolinário

Técnico de som e transmissão: Eduardo Serafin

Direção de produção: Karin Serafin

Assistência de produção: Malu Rabelo

Assistência de direção de movimento: Aline Blasius

Assistência cenotécnica: Adilso Machado

Equipe de produção, mídias sociais e projeto: Aline Blasius, Bianca Vieira, Kitty Katt, Luana Leite e Natascha Zacheo

Peças gráficas: Luana Leite

Fotografias: Cristiano Prim e Karin Serafin

Tradução: Kitty Katt

Preparação técnica: Aline Blasius, Kitty Katt e Alejandro Ahmed

Desenvolvimento técnico-artístico para Matéria escura 2019/2020 e teaser para Futuro fantasma 2020: Hedra Rockenback

Criação e programação de objetos, instrumentos e mecanismos para Matéria escura: Diego de los Campos 

Fúrias: 5 estruturas feitas com galhos de árvores. animadas por motores, vibram se deslocando ruidosamente pelo chão

Água nervosa: Uma válvula solenoide controlada por Arduino instalada na base de um recipiente de vidro faz uma gota cair sobre um captador de som 

Besta: Sintetizador feito com Arduino usando a biblioteca Mozzi, que tem 5 potenciômetros que regulam a frequência de dois osciladores, pitch, nota e ruído

Sampler: Arquivos de áudio de frases usadas no espetáculo são controladas em sua duração, velocidade de reprodução (pitch), começo e final

Baixolata: Uma lata de tinta de 3,6 litros funciona como caixa de ressonância de um baixo de uma corda só

Plantas para cenografia: Karin Serafin

Textos: Grupo Cena 11

Interlocução técnico-artística para criação de vídeos em Matéria escura: PACT-UFSC (João Peralta, Rodrigo Garcez e Thiago R. Passos) 

Operação de câmera em Matéria escura: Karin Serafin e João Peralta

Operações de drone: Alex Costa

Coprodução: Mousonturm, Tanzhaus NRW, PANORAMA RAFT, Instituto Goethe, Gabi Gonçalves, Corpo Rastreado – São Paulo e Something Great – Berlin

Apoio: Prêmio Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura (SC) ⁄ Edição 2019

Sede e preparação técnica: Jurerê Sports Center (JUSC).

Concepção, direção e coreografia:  Alejandro Ahmed

Agradecimentos: Adélia Aurora, Ana Lucia Rodrigues, Andrea Druck, Aurora Khan, Aya Nishimuta, Bartolomeu, Batman, Binha, Breu K. Katt, Bruno Bez, Cassiana Kerber, Caio Matienzo, Candy, Cecília Blasius, Chewie, Cristina Schmitt, Eveline Orth, Fabiana Dultra Britto, Florentina, Francisco J. Peralta, Gatite, Gianca Piccolotto, Gizely Cesconetto, Héctor Lamela, Hedra Rockenbach, Íris, Jamile de Souza Santos, Khaninanas Cobras, Ludovico, Luiz Falcão, Maki, Marcos Klann, Marcos Morgado, Mateus Ramos de Melo, Maurício Pires Marin, Muha, Murilo Brogim Leal, Neltair Piccolotto, Nina, Norma Adó, Pedro Mello e Cruz, Rodrigo Garcez, Theo Gomes, Thiago R. Passos e Vanderlúcio Cunha. 

Professor titular de história e teoria do teatro da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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