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Crítica

Uma ativista fadada a transformar

6.11.2021  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Ale Catan

Por que sobrevivem os contos de fadas? Quando os irmãos Grimm lançaram, no início do século 19, os volumes de seus Contos maravilhosos infantis e domésticos, pensavam em documentar e resguardar do esquecimento as histórias da tradição oral que circulavam pela Alemanha. Era uma espécie de ato de resistência ao tempo, que visava legar às gerações futuras as narrativas que foram diligentemente recolhidas por eles, entre camponeses e artesãos. Dificilmente, porém, os Grimm poderiam ter imaginado que essas histórias – de crianças, princesas e oprimidos em apuros – pudessem não apenas sobreviver, mas permanecer como fonte inesgotável de fascínio e investigação.

Em Brenda Lee e o palácio das princesas, musical do Núcleo Experimental atualmente em cartaz no canal YouTube da companhia, os contos de fadas aparecem como inspiração declarada no título e também nos nomes de algumas das personagens: Blanche de Niège, Ariela del Mare, Isabelle LaBete etc. Mas uma mirada mais detida da criação torna evidente que a vinculação com as fábulas fantásticas vai além.

Em ‘Brenda Lee e o palácio das princesas’, espetáculo do Núcleo Experimental sob dramaturgia e direção musical de Fernanda Maia e direção de Zé Henrique de Paula, destaca-se a opção por um modelo narrativo facilmente assimilável por qualquer público – ultrapassando o que poderia ser uma produção de nicho alternativo. A progressão uniforme do conflito, o estilo de interpretação e o suporte dos contos de fadas, aliados ao formato já assimilado do musical, permitem ao espetáculo uma comunicação direta e frutífera com o espectador (ainda que estejamos falando de uma peça que se desenrola apenas no suporte fílmico, sem a presença física da plateia)

Na dramaturgia assinada por Fernanda Maia – também responsável pela direção musical e pelas letras das canções –, a protagonista assume o lugar de heroína e, tal qual ocorre nas histórias infantis, os eventos extraordinários se dão de maneira completamente natural. Assim como as abóboras podem se tornar carruagens e as princesas podem despertar da morte com um beijo, uma travesti pode, a despeito de todos os preconceitos e violências, salvar vidas, tornar-se exemplo de luta e ditar o rumo de políticas públicas de saúde.

As histórias que começam com “Era uma vez…” trazem, geralmente, as proezas de personagens desfavorecidos e perseguidos. Seres frágeis que conseguem driblar adversários terríveis e, invariavelmente, mais poderosos: João e Maria enganam a bruxa, o Gato de Botas transforma seu dono camponês em protegido do rei, a pobre filha do moleiro é capaz de vencer uma aposta com o diabo. O fato de a saga de Brenda Lee ser verídica só acentua seu caráter fantástico.

No Brasil e em Portugal, as histórias infantis desse gênero foram conhecidas, até o século 20, como Contos da Carochinha. Carochinha (considerando-se carocha como uma derivação do espanhol cucaracha) é uma menção à personagem Dona Baratinha, noiva que perde o marido no dia do casamento e cujo maior consolo é justamente contar o que lhe aconteceu. Ela é, portanto, o arquétipo da contadora de histórias.  

Brenda Lee e o palácio das princesas está organizado em três eixos narrativos, que se sucedem com oportuna agilidade graças ao formato audiovisual. Primeiramente, em números musicais, as personagens coadjuvantes narram como superaram seu passado de dificuldades e os obstáculos que lhe foram impostos. Em uma estrutura cronológica e calcada em diálogos, mostra-se a transformação da casa: do sonhado palácio à casa de apoio aos infectados com HIV. Por fim, Brenda aparece em excertos semelhantes a uma entrevista, trazendo a própria trajetória em primeira pessoa.

Capturados e adaptados ao status quo, os contos de fadas costumam nos chegar em propostas edulcoradas. Mas, se nos lembrarmos de sua origem – ou mesmo das versões que nos legaram os irmãos Grimm e Charles Perrault – encontraremos narrativas repletas de violência: estupros, assassinatos, desejos incestuosos. E por quê? Para Jung (Carl Gustav Jung 1875-1961), os contos de fada são um meio para a expressão do pensamento mítico. É por meio deles que vivenciamos muitos dos arquétipos do inconsciente coletivo. E podemos sonhar a liberdade, a superação, a mudança.

Se os contos de fadas alicerçam boa parte da dramaturgia em questão, a tradição de musicais também oferece seu suporte – especialmente à encenação. A personagem Cinthia Minelli, uma antagonista de Brenda que logo buscará abrigo no palácio, deixa expressa a influência de Cabaret. O sobrenome faz menção à Liza Minelli, estrela do filme de 1972, inspirado no musical da Broadway. Também cabe à Cinthia o papel de um apresentador em muito semelhante ao mestre de cerimônias de Cabaret.

Ale Catan ‘Brenda Lee e o palácio das princesas’, do Núcleo Experimental, focaliza a militante transexual que lhe dá nome, referência nos direitos da população LGBTQIA+ assassinada em 1996, auge do trabalho da casa de apoio às pessoas com HIV e prevenção ao vírus, aberta em 1984, bem como norteadora da luta das travestis, a escassez de oportunidades que as impele à prostituição. Atuam Verónica Valenttino, Olivia Lopes, Marina Mathey, Tyller Antunes, Ambrosia, June Weimar e Fabio Redkowicz

Ambientado na São Paulo do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, o enredo situa os números musicais no palco da boate Medieval – ponto histórico da noite gay paulistana. Na rua Augusta, o clube emulava o estilo dos castelos medievais e sediava shows de transformistas e travestis aos quais compareciam não apenas o público LGBTQIA+, como também os colunáveis e celebridades da época. A esse período de efervescência, seguiu-se a epidemia de Aids, espalhando o pânico e trazendo a decadência das casas noturnas do gênero.

Todo esse fundo histórico aparece de maneira sutil, sem a necessidade de apartes para qualquer tipo de contextualização. O único movimento nesse sentido se dá com a entrada do personagem do médico em cena. Os diálogos entre ele e Brenda tentam dar conta da precariedade do atendimento aos doentes de Aids nos primeiros anos da doença, do preconceito e desconhecimento que cercavam o vírus, assim como da mudança trazida pela abertura da casa de apoio. A pretensão didática dá uma esmorecida no ritmo, mas sem abalar o conjunto.

Em 2011, Nelson Baskerville e a Cia. Mugunzá de Teatro conquistaram as atenções com a peça Luís Antônio – Gabriela. Também com fundo documental, a obra dava conta da biografia do irmão do diretor, que se mudou do Brasil para a Espanha e assumiu a identidade de Gabriela. Nesse período de dez anos, as questões de representatividade foram extensa e intensamente debatidas. A presença de um homem cis interpretando uma travesti – situação que a própria encenação de Luís Antônio – Gabriela reviu ao longo de suas temporadas – seria impensável hoje.

A encenação do diretor Zé Henrique de Paula traz seis intérpretes travestis e leva adiante a proposta do Núcleo Experimental de trabalhar o formato musical em chaves distintas da programação comercial da cidade. Em Brenda Lee… destaca-se a opção por um modelo narrativo facilmente assimilável por qualquer público – ultrapassando o que poderia ser uma produção de nicho alternativo. A progressão uniforme do conflito, o estilo de interpretação e o suporte dos contos de fadas, aliados ao formato já assimilado do musical, permitem ao espetáculo uma comunicação direta e frutífera com o espectador (ainda que estejamos falando de uma peça que se desenrola apenas no suporte fílmico, sem a presença física da plateia).

Serviço:  

Brenda Lee e o palácio das princesas

Sessões diárias, às 21h, pelo canal do Núcleo Experimental no YouTube. Até 19 de novembro.

Grátis.

Classificação indicativa: 12 anos

Duração: 100 minutos.

Ficha técnica:  

Dramaturgia, letras e direção musical: Fernanda Maia

Direção e figurinos: Zé Henrique de Paula

Elenco: Verónica Valenttino, Olivia Lopes, Marina Mathey, Tyller Antunes, Ambrosia, June Weimar e Fabio Redkowicz

Música original e preparação vocal: Rafa Miranda

Músicos: Rafa Miranda (piano), João Baracho (bases), Pedro Macedo (baixo), Abner Paul (bateria) e Leandro Nonato (violão)

Preparação de atores: Inês Aranha

Coreografia: Gabriel Malo

Assistente de direção (teatro): Rodrigo Caetano

Iluminação: Fran Barros

Cenografia: Bruno Anselmo

Visagismo (cabelos e maquiagem): Diego D’urso

Assistente de figurino: Paula Martins

Direção audiovisual: Laerte Késsimos

Assistente de direção (audiovisual): Lucas Romano

Câmera: Marco Lomiller

Som: Alexandre Gomes

Coordenação de produção: Zé Henrique de Paula e Claudia Miranda

Produção executiva: Laura Sciulli

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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