Crítica
17.3.2022 | por Mariana Queen Nwabasili
Foto de capa: Matheus José Maria
Ser brasileira e sentir-se estrangeira em seu próprio país, dentro de sua própria língua, mais precisamente na plateia de um teatro. São dois os motivos para essa experiência de estranhamento ao assistir ao início de Língua brasileira, peça de Felipe Hirsch e do coletivo Ultralíricos, que teve primeira temporada no Teatro Sesc Anchieta do Sesc Consolação, entre janeiro e março deste ano.
Primeiro: voltar a ser espectadora em um dos mais tradicionais espaços teatrais da cidade de São Paulo após dois anos de distanciamento social devido à pandemia de Covid-19; reaprender a estar ali, presente, durante cerca de 160 minutos de um espetáculo dividido em dois atos e que teve sua estreia adiada, em 2020, em decorrência da primeira fase de confinamentos. Segundo: encarar, por ao menos 30 minutos das cenas iniciais, textos ditos pelos atores em outras línguas que não o português brasileiro, sem o auxílio, na maior parte do tempo, de legendas como tradução.
Em meio à latência das revisões críticas no centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, gera ruído em ‘Língua brasileira’ a ausência de qualquer ator ou atriz indígenas no elenco; artistas que também poderiam ter sido dirigidos de maneira fluída, complexa e não estigmatizante numa peça – praticamente um musical – que tem a matriz-motriz indígena como pilar. Os indígenas estão em cena por meio das representações pictóricas, das línguas mbya-guarani e tupi em textos falados pelos atores e projetados na parede e até em um áudio ao final do espetáculo. Porém, não aparecem corporificados em uma arte que tem como potência a representação/atuação dada pela presença
Assistir ao elenco composto por Amanda Lyra, Danilo Grangheia, Georgette Fadel, Laís Lacôrte, Pascoal da Conceição e Rodrigo Bolzan falando as línguas matrizes-motrizes de nosso português, como o tupi antigo dos povos originários daqui e o iorubá africano trazido pelos escravizados negros, não deveria ser, de fato, um total estranhamento. Porém, em um país que foi colonizado e vive reflexos cotidianos da chamada colonialidade – que pode ser brevemente definida como formas de domínio e subalternização cultural e racial que transcendem os colonialismos históricos, mas são herdeiras deles –, familiarizar-se com os diferentes “portugueses” apresentados na peça e desconhecer o tupi e o iorubá, por exemplo, é uma lamentável regra, não uma exceção.
Somos, ao mesmo tempo, apropriados e estrangeiros de nossa própria cultura e da inteireza de nossa própria língua, lapidada a partir da mescla e da paradoxal, mas politicamente arquitetada, invisibilização de tantas outras. Como escreveu a socióloga mineira Lélia Gonzalez (1934-1994), no Brasil, falamos “pretuguês”, mas nossa neurose racista quanto à possibilidade de nos reconhecermos intrinsecamente afrodescendentes – e afroindígenas, acrescentaríamos – faz com que neguemos o nosso verdadeiro e cotidiano “mo’dizer”.
Falamos uma língua cheia que foi minguada, é o que parece sugerir Língua brasileira direta e indiretamente nas cenas faladas e naquelas cantadas a partir de composições de Tom Zé, músico baiano-paulistano e eterno tropicalista-modernista da década de 1960. O artista é autor do álbum Imprensa cantada (2003), no qual se encontra a canção homônima da peça que foi a principal inspiração para a montagem de Hirsch.
Forma de arco
Língua brasileira é composta por um compilado de cenas um tanto avulsas, que são, na verdade, interpretações das letras de Zé e de provérbios e textos históricos registrados em diferentes línguas. A estrutura aparentemente fragmentada, característica das montagens de Hirsch, constrói uma dramaturgia de coerência complexa, que segue um arco temporal histórico. Nele, reivindica-se, criticamente, as línguas indígenas como primeira base do português brasileiro.
Tal escolha se apresenta como contraposição ao senso comum sobre as influências linguísticas predominantes em nosso idioma e, somada à ausência de legendas traduzidas, inverte, mesmo que por alguns momentos, a hierarquia de poder e protagonismo das línguas de povos minorizados, como os africanos e os indígenas, no Brasil. Assim, faz destes espectadores possivelmente imaginados como centrais para a apreciação confortável de boa parte da peça.
Nesse sentido, destaca-se a cena de abertura, em que uma das personagens interpretadas por Fadel ao longo da dramaturgia atravessa sozinha o cenário ao escutar e, depois, parecer reproduzir, como numa espécie de diálogo interno em voz alta, frases de um mito indígena intitulado Ayvu rapyta (A fonte da fala).
Seguindo o mencionado arco histórico, é apenas nas cenas do segundo ato, a serem destacadas adiante, que passamos a ver o elenco fazendo menções mais diretas às línguas africanas e atuando, ou melhor, cantando totalmente em português brasileiro. Ou seja, somente após passarmos, como espectadores, por outras matrizes-motrizes linguísticas que compuseram o português nacional e o próprio português europeu ao longo da história, podemos ter o conforto, já desnaturalizado durante todo o primeiro ato, de escutar e entender cenas no idioma oficializado como nacional.
A densidade da pesquisa histórica para a construção da dramaturgia acaba por dar destaque às atuações. Afinal, decorar e atuar textos em diferentes línguas e ter embocadura técnica para dizê-las de forma fluída não é tarefa fácil. Além disso, exige do público, sobretudo nas cenas sem tradução legendada, uma “leitura intelectual” – valendo-nos, aqui, de um jogo referencial com os escritos do cineasta soviético Sergei Eisenstein (1898-1948) –, da fragmentação narrativa e da gestualidade dos atores como própria fala.
No primeiro ato, por exemplo, entre uma ou outra fala em grego, islandês antigo ou quimbundo, tentamos, como “estrangeiros internos” – forma como os indígenas são muitas vezes vistos e tratados em nosso país –, pinçar sílabas, pronuncias e significados familiares aos nossos ouvidos brasileiros “apretuguesados”. Recepção que exige e explicita a posição de espectador como necessariamente ativa, e não passiva.
Aliás, a profundidade da pesquisa histórica e das perspectivas críticas propostas em Língua brasileira se diferenciam das impressões de hermetismo e despreocupação com uma maior acessibilidade e alcance popular suscitadas em outras montagens e dramaturgias do diretor e do coletivo, a exemplo de Selvageria (2017). Mudanças na concepção cenográfica de Daniela Thomas, parceira de Hirsch há tempos e diretora de arte da peça junto a Felipe Tassara, e a potente exploração do lirismo tropicalista em Zé (ou seja, impuro e híbrido por princípio, uma discussão crucial da dramaturgia) parecem ser pontos importantes para essa sensação.
A forma da peça acompanha as dimensões experimental e contemporânea da trilha sonora, muito bem trabalhada sob a direção musical de Maria Beraldo e a preparação vocal de Yantó. As composições de Zé enaltecem o que é dito ou o que se quer dizer por meio de uma rítmica dada pela exploração da assonância (repetição de vogais) e da aliteração (repetição de consoantes) presente nas sílabas do português brasileiro e de suas matrizes-motrizes linguísticas. Essas sílabas se destacam, inclusive, de forma independente nos versos das músicas, ou seja, não estão necessariamente em meio às palavras que as utilizam. Uma desconstrução que valoriza a construção da língua e uma marca musical de Zé, que, por meio de Língua brasileira, volta a ser valorizado à altura de sua prodigiosidade artística, equiparável à de seus colegas tropicalistas e conterrâneos Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Caixa, terra e vestes pretas
A cortina que abre o palco para o início do espetáculo é, na verdade, uma obra do artista visual maranhense Thiago Martins de Melo: um tecido com pinturas abstratas feitas em cores fortes, como vermelho e amarelo, e desenhos de silhuetas sombrias em verde, azul e preto. No topo dessa longa bandeira viva, que literalmente balança ao ser recolhida verticalmente, estão representados, de forma um tanto sutil, corpos indígenas pintados em tons terrosos – novamente os povos originários como abertura fundante, agora, do espetáculo como um todo.
Mais abaixo no “quadro”, estão pinturas indefinidas que remetem a árvores e a homens brancos com armas de fogo que queimam uma floresta e símbolos capitalistas, como cifras de dinheiro e o rosto da nossa moeda nacional, o real, que, pela composição, pode ser entendida como ilusória das igualdades e da ausência de contradições e como desencadeadora das históricas, cotidianas e naturalizadas guerras e destruições contra os não brancos.
A cortina-quadro é um preâmbulo. Por meio das artes visuais, prepara o solo crítico para acessar à peça. Ao ser aberta, revela um cenário simples: a caixa preta do palco, em que o destaque é a parede escura do fundo do próprio teatro, usada como tela sobre a qual são projetadas pequenas letras brancas, emulando estrelas de um universo no qual atores-personagens penetram e que é digerido e regurgitado pelo poliglotismo dos próprios.
Também por meio das projeções, as legendas (ora traduções, ora reproduções dos versos das músicas e dos textos originais falados pelos atores) compõem o cenário. Uma escolha esteticamente mais atraente e confortável para quem acompanha do que as tarjas brancas com legendas comumente usadas para traduções projetadas ao vivo no cinema e no teatro, inclusive em outras das peças de Hirsch junto aos Ultralíricos.
Outro destaque da cenografia é o chão sobre o qual acontecem as atuações, uma espécie de arena quadrada preenchida por pequenos fragmentos de borracha preta – material cenográfico familiar para quem assistiu à suntuosa montagem de Mãe coragem, de Bertolt Brecht, feita por Thomas em 2019 no Sesc Pompeia, também em São Paulo. Diferentemente do que ocorria em A comédia latino-americana (2016) e Selvageria, por exemplo, nas quais uma materialidade impactante caracterizava as composições cenográficas (pilhas de grandes blocos de isopor e de sacos de lixo, respectivamente), em Língua brasileira entra em cena um minimalismo cenográfico que, literalmente, abre espaço para o protagonismo das palavras (faladas, cantadas e projetadas) e da terra preta (indígena, brasileira).
A densidade energética da cor preta – a absorção de todas as cores; o tom considerado versátil porque básico ou basilar para a vida cotidiana – transborda para os figurinos. Por vezes, as roupas são mobilizadas de forma a terem associadas a si elementos singelos conforme cada cena. Um bom exemplo disso é a vestimenta das personagens interpretadas por Lyra e Grangheia em uma verdadeira sessão de catequização satírica e, portanto, profana da qual a plateia é convidada a participar. Babados pretos, aparentemente de papel, são cirurgicamente somados aos “figurinos básicos” da dupla, remetendo, simultânea e criticamente, ao destaque dado às golas das indumentárias eclesiásticas e, sobretudo, a um dos principais símbolos das vestes dos bufões do teatro da Idade Média europeia.
Junto à projeção de um letreiro que informa a localização da cena no espaço-tempo – estamos no ano de 1539, século das chamadas grandes navegações realizadas para a colonização dos “novos mundos” –, a caracterização de Lyra e Grangheia, que, aliás, está extremamente desenvolto em sua atuação, anunciam a comicidade profana da cena. Remetendo aos jesuítas, os atores “catequizam” o público por meio de uma alfabetização oral que tem referência, provavelmente, na característica silábica do português europeu antigo e regional.
A representação satírica de um setor dominante, como a igreja católica, reforça a função bufônica das personagens e ganha mais graça devido ao alargamento da duração da cena. “Vra, vre, vri, vro, vru”, repetem, entre outras sequências de sílabas, os atores exaustivamente, às vezes de forma ironicamente séria e contida, às vezes à beira de uma síncope. A plateia é convocada a participar do ridículo, repetindo, sob a regência dos “palhaços” catequizadores e colonizadores, as sílabas aleatórias. A sessão culmina em um coro da reza católica Pai nosso em pleno teatro. Assim, como espectadores, experimentamos, novamente de forma desnaturalizada, o processo de inserção linguística e, portanto, ideológica no que se convencionou chamar de cultura civilizada.
Fim é começo
O segundo ato da peça é, sem dúvidas, o mais potente e intenso. Ele tem início com a talvez mais interessante música composta por Tom Zé para a montagem. Lacôrte, uma das marcantes vozes do musical Elza (estreado em 2018, com direção de Duda Maia e texto de Vinicius Calderoni, sendo este também um dos dramaturgos de Língua brasileira), é a responsável por sustentar e protagonizar vocalmente a primeira cena dessa parte, que é musical. A letra da canção faz, finalmente, referência mais explícita às línguas e culturas iorubá e fon, que africanizaram o português brasileiro.
Lacôrte e Conceição são as pessoas negras do elenco – as demais têm racialidade branca. Na cena em questão, o protagonismo dela agrega e faz muito sentido. Porém, é interessante perceber que, nos dois atos da peça, a atriz foi dirigida de forma inteligente: sem que fosse “confinada” à sua racialidade como representativa das línguas africanas, por exemplo. Interpreta em português, em línguas indígenas e tem seu potencial vocal destacado em diferentes canções.
Frente à instigadora direção de Lacôrte e em meio à latência das revisões críticas no centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, gera ruído a ausência de qualquer ator ou atriz indígenas no elenco; artistas que também poderiam ter sido dirigidos de maneira fluída, complexa e não estigmatizante numa peça – praticamente um musical – que tem a matriz-motriz indígena como pilar, conforme ressaltado anteriormente. Os indígenas estão em cena por meio das representações pictóricas, das línguas mbya-guarani e tupi em textos falados pelos atores e projetados na parede e até em um áudio ao final do espetáculo. Porém, não aparecem corporificados em uma arte que tem como potência a representação/atuação dada pela presença.
Infelizmente, essa parece uma incongruência não só artístico-política frente aos enfoques da peça, mas, também, de fato, estética. Afinal, corpo é signo e a apropriação que atores fazem de suas línguas maternas ganha força no palco – como já foi possível perceber em outras peças de Hirsch e dos Ultralíricos com artistas hispanohablantes no elenco.
É perceptível a complexidade alcançada em Língua brasileira ao fazer com que artistas não indígenas e falantes de nosso português habitem um outro lugar de (des)conforto ao atuarem em tupi, por exemplo. Afinal, as línguas indígenas são nossas, brasileiras. Porém, também é verdade que, na arte e na “vida real”, os povos originários são invisibilizados não “apenas” linguística e culturalmente, mas também territorial e fisicamente, o que acaba sendo reproduzido na peça de alguma forma.
Aqui, vale evidenciar outra estratégia da direção para representar a complexidade das composições linguísticas. Em diferentes cenas, vemos atores falando textos que se sobrepõem de forma coreografada. Ou seja, assistimos a jogos falados que se dão de maneira excessivamente organizada ao fazerem alusão à mescla de diferentes línguas ao longo da história: uma voz necessariamente baixa o tom para outra se sobressair. Ao mesmo tempo, é possível entender tal escolha como uma desconstrução dialógica dos duetos responsivos e simultâneos do gênero musical e talvez como uma crítica a um multiculturalismo que exalta as diversidades e misturas linguísticas, sem evidenciar que, como diz o teórico jamaicano Stuart Hall (1932-2014), todo hibridismo cultural se dá em condições hierárquicas de interação.
Outro destaque é o canto de Fadel, que chama atenção inclusive em momentos de atuação com Lacôrte. No segundo ato, a atriz interpreta um impactante e ritmado texto em espanhol. O jogo de palavras parece reivindicar essa língua, e possivelmente sua crioulização nas Américas, como a voz de uma classe: a dos trabalhadores, inclusive brasileiros nordestinos como liberdade poética, geralmente subalternizados nas metrópoles da América Latina, e, ao mesmo tempo, vitais para o funcionamento delas. A cena é seguida de um monólogo realizado por Conceição que também tem grande força crítica e interpretativa.
O caráter visceral das atuações e das cenas cantadas nesse ato parece, por vezes, levar a plateia a uma catarse realmente positiva, ofuscando um pouco o sugestivo amargor crítico da obra. Porém, outra crucial escolha da direção freia essa tendência. Ao invés de ser finalizada com uma cena musical enérgica, a peça caminha para seu encerramento fazendo-nos escutar um áudio no qual crianças indígenas traduzem palavras das suas línguas maternas para o português brasileiro. Depois, evoca-se a primeira cena do espetáculo de forma cirúrgica: vemos a personagem de Fadel entrar novamente no palco falando sozinha e nos damos conta de que as vozes e as apropriações da nova geração dos povos originários são as responsáveis por orientar o fim (dos tempos) como (re)começo.
.:. Correção: o texto informava que a atriz Laís Lacôrte era a única pessoa negra do elenco; o ator Pascoal da Conceição se autodeclara negro. Crítica atualizada em 18 de março de 2022.
.:. Língua brasileira fez temporada no Teatro Sesc Anchieta de 6 de janeiro a 6 de março de 2022.
Ficha técnica:
Língua brasileira
Uma peça do coletivo Ultralíricos e Tom Zé
Direção geral: Felipe Hirsch
Música e letras: Tom Zé
Com: Amanda Lyra, Danilo Grangheia, Georgette Fadel, Laís Lacôrte, Pascoal da Conceição e Rodrigo Bolzan
Direção musical: Maria Beraldo
Músicos: Fábio Sá, Fernando Sagawa, Luiza Brina e Thomas Harres
Músicos (em alternância): Cuca Ferreira, Gabriel Basile e Gustavo Sato
Diretora assistente: Juuar
Dramaturgia: Ultralíricos, Felipe Hirsch, Juuar e Vinicius Calderoni
Dramaturgista/consultor geral: Caetano Galindo
Direção de arte: Daniela Thomas e Felipe Tassara
Iluminação: Beto Bruel
Figurino: Cássio Brasil
Design de som: Tocko Michelazzo
Preparação vocal: Yantó
Design de vídeo: Henrique Martins
Difusão internacional: Ricardo Frayha
Assessoria de imprensa: Factoria Comunicação – Vanessa Cardoso
Direção de produção: Luís Henrique Luque Daltrozo
Jornalista e pesquisadora, doutoranda e mestre em meios e processos audiovisuais pela ECA-USP, onde se graduou em jornalismo. Estuda representações, identidades, recepções e relações de gênero, raça, classe e colonialidade no audiovisual. Por vezes, amplia essa perspectiva para tecer olhares acerca das artes da cena (teatro, performance e dança) e televisão. Atualmente, como bolsista do Projeto Paradiso, cursa master em curadoria cinematográfica na Elías Querejeta Zine Eskola, na Espanha.