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Reportagem

Alteridades flutuantes pelo Soleil

13.5.2022  |  por Neomisia Silvestre

Foto de capa: Michèle Laurent

Paris – “Isso não é uma fábula. A ilha do ouro realmente existe? Onde ela está? Desta vez está em águas japonesas. Sim, ela existe. Não é a primeira vez. Já existiu (e existirá novamente) mais de uma vez na longa crônica de nossos Astros e Desastres. Sempre que o mundo está perto da autodestruição, muitos defensores da esperança, nada loucos, lutam para encontrar a arca ou o navio. Vamos à Ilha, parece um exílio, é um refúgio e um recomeço.”

Assim escreve a poeta e dramaturga franco-argelina Hélène Cixous no texto Rápido, uma ilha!, como parte do programa de L’île d’or, Kanemu-Jima (A ilha do ouro, Kanemu-Jima), mais recente criação coletiva do Théâtre du Soleil, de Paris.

Encenada por Ariane Mnouchkine, fundadora e diretora do grupo há 58 anos, a montagem propõe uma continuação às aventuras de Cornélia (atuada por Hélène Cinque), personagem principal de Une chambre en Inde (Um quarto na Índia, 2016), em que assume a responsabilidade de criar o novo espetáculo de um grupo de teatro diante do desaparecimento de seu diretor, Constantin Lear (Duccio Bellugi-Vannuccini). O nome evoca o jovem artista Konstantin Treplev, um dos protagonsitas de A gaivota, do escritor russo Anton Tchékhov (1860-1904), desencorajado, sobretudo pela mãe, atriz veterana, a ousar novas formas dramatúrgicas, e o personagem-título de Rei Lear, tragédia do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616) em que o velho soberano testa as três filhas acerca de seu legado.

Desta vez, Cornélia acredita estar no Japão. Vestida com a mesma camisola branca, acamada e sob os cuidados do enfermeiro Gabriel (Sébastien Brottet-Michel), entre sonhos e alucinações, a personagem novamente assume o fio-condutor de uma narrativa que, por meio de um festival de teatro, tenta expressar algumas das problemáticas e opressões do mundo contemporâneo, como a ameaça à democracia e a crise sanitária desencadeada pelo coronavírus no início de 2020.

É, então, inspirada por essa ilha dourada e mítica que Ariane Mnouchkine, 83 anos, se deixa navegar rumo ao espetáculo ‘L’île d’or, Kanemu-Jima’ (‘A ilha do ouro, Kanemu-Jima’). Amparada pela cocriação de Hélène Cixous, 84, e do compositor e multi-instrumentista Jean-Jacques Lemêtre, 70, dupla fundamental na criação de diversos outros trabalhos da companhia, ela sublinha sua admiração pelas tradições culturais japonesas, sua arte, seu povo e seu espírito, tão referenciados no repertório do Soleil desde a primeira visita dela ao país, em 1963. Memória que revisita e partilha no discurso de 40 minutos redigido para a cerimônia de recepção do Prêmio Kyoto, em novembro de 2019, condecorada nas categorias artes e filosofia

No enredo, uma família de promotores imobiliários é contra a realização do evento na pequena Kanemu-Jima, lugar de todas as possibilidades e onde fenômenos sociais e políticos se intensificam com a chegada dos artistas e grupos participantes: Troupe des Marionnettistes (Trupe de Marionetistas); Notre Dame du Théâtre Socialiste Brésilien (Nossa Senhora do Teatro Socialista Brasileiro); Paradise Today (Paraíso Hoje); Grand Théâtre de la Paix (Grande Teatro da Paz); e Lanternes Démocratiques (Lanternas Democráticas).

Os nomes das companhias aludem àqueles e àquelas que lutam e lutaram pela defesa das liberdades, a exemplo da trupe La Démocratie Notre Désir de Hong Kong (Democracia Nosso Desejo de Hong Kong), que homenageia a memória de Liu Xiaobo (1955-2017), poeta chinês, crítico literário, escritor, professor, ativista pelos direitos humanos e Prêmio Nobel da Paz (2010). Com 4,20 metros de altura, La Chaise Vide de la Liberté (A Cadeira Vazia da Liberdade) foi criada pelo escultor e artista visual chinês Wang Keping e inaugurada no Théâtre du Soleil em outubro de 2020. Desde então, permanece exposta no jardim da sede do grupo, a Cartoucherie de Vincennes, uma antiga fábrica de armamentos e pólvoras, situada no 12º distrito de Paris. Na montagem, uma versão em bambu é utilizada simbolicamente em uma das passagens da trupe de Hong Kong.

Também chama a atenção a trupe La Diaspora des Abricots (A Diáspora dos Damascos), por sensibilizar acerca da questão dos refugiados afegãos. A abordagem já compunha a dramaturgia antes da notícia de retomada ao poder por parte do grupo fundamentalista extremista Talibã, em agosto de 2021. E mesmo pela presença da prefeita de Kanemu-Jima, Yamamura Mayumi, interpretada pela atriz indiana Nirupama Nityanandan, ao lidar com posturas machistas e corruptas de seus adversários.

Em temporada desde 3 de novembro de 2021, de quarta a domingo, a obra faz referência à Sado, ilha do mar aberto do Japão, a leste da cidade de Niigata, onde intelectuais e artistas contrários ao imperador foram exilados durante o período feudal (1185-1868). Segundo o histórico local, o primeiro a ser banido foi o poeta Hozumi no Asomi Oyu, em 722 d.C. Sete séculos depois, foi a vez do ator, diretor e dançarino Zeami Motokiyo (1363-1443). Teórico e dramaturgo, o artista é considerado o criador do teatro Nô, importante modalidade do drama clássico japonês que combina canto, pantomima, música e poesia.

Michèle Laurent ‘‘L’île d’or, Kanemu-Jima’ (‘A ilha do ouro, Kanemu-Jima’) é o espetáculo mais recente do Théâtre du Soleil, sob direção de Ariane Mnouchkine. Da esquerda para a direita, personagens Anjyu (atuação de Juliana Carneiro da Cunha), Kaito (Omid Rawendah), Yamamura Mayumi (Nirupama Nityanandan), prefeita de Kanemu-Jima; e Saburo (Reza Rajabi), empoleirado no mastro

Os primeiros indícios de ouro e prata na região foram encontrados na virada do século XVII. E, em quase 400 anos de história da mineração, a Mina de Sado, a maior do país, produziu 78 toneladas de ouro e 2.300 de prata.

É, então, inspirada por essa ilha dourada e mítica que Mnouchkine, 83 anos, se deixa navegar. Amparada pela cocriação de Cixous, 84, e do compositor e multi-instrumentista Jean-Jacques Lemêtre, 70, dupla fundamental na criação de diversos outros trabalhos da companhia, ela sublinha sua admiração pelas tradições culturais japonesas, sua arte, seu povo e seu espírito, tão referenciados no repertório do Soleil desde a primeira visita dela ao país, em 1963. Memória que revisita e partilha no discurso de 40 minutos redigido para a cerimônia de recepção do Prêmio Kyoto, em novembro de 2019, condecorada nas categorias artes e filosofia.

Idealizado em 1985 por Kazuo Inamori, 90, a fim de reconhecer trabalhos inovadores também nos campos da ciência e da tecnologia, a distinção equivale ao internacional Prêmio Nobel. Criadores como o diretor britânico de teatro e cinema Peter Brook, 97, e a coreógrafa e dançarina alemã Pina Bausch (1940-2009) já receberam o mérito em 1991 e 2007, respectivamente.

“Otaru, Morinoki Hostel, 6 de setembro

Esta é minha passagem Marselha-Yokohama. No cargueiro misto Le Cambodge, da empresa Messageries Maritimes. Partida em 30 de abril de 1963, da plataforma n°… está ilegível. Primeira parada em Port-Saïd, a entrada do Canal de Suez. Sim, pegamos o Canal de Suez. Os três grandes lagos que o conectam ainda estavam, na época, repletos de destroços de navios bombardeados durante a catastrófica e idiota expedição colonialista liderada pela França e a Grã-Bretanha, com a ajuda de Israel, para tentar recuperar o Canal que Gamal Abdel Nasser teve a audácia de nacionalizar em nome do povo egípcio. Eu estava passando pela história. Escala em Áden, depois em Bombaim [atual Mumbai]. O barco entra no porto. Uma onda de odor de manga e merda chegam até mim do mercado próximo. O sol está nascendo. Os corvos pareciam querer atacar o barco. Pela primeira vez pus os pés em solo indiano. Estou no mito e na lenda. Durante esta parada, só verei a magnificência. O lado obscuro, só viverei no meu retorno. O grande amor com este país-continente vou vivê-lo mais tarde. Colombo. Cingapura. Saigon, em plena Guerra do Vietnã. Hong Kong, Kobe. Chegada a Yokohama em… A passagem não prometia nada. Mas a viagem levou 30 dias, então provavelmente chegamos em 1º de junho de 1963.”

Filha do produtor cinematográfico de origem russa Alexandre Mnouchkine (1908-1993) e da atriz britânica June Hannen (1918-2003), a jovem Ariane, então com 24 anos, desejava conhecer a China, mas, diante da recusa do visto, embarcou para o Japão e lá permaneceu por cinco meses e meio. Após seu retorno, fundou o Théâtre du Soleil junto a colegas da Universidade Sorbonne, onde já havia criado a Associação Teatral de Estudantes de Paris (Atep), em outubro de 1959, e encenado Genghis Khan (1961), do psicanalista belga Henry Bauchau (1913-2012), apresentado em um dos anfiteatros das Arenas de Lutécia, construídas no século I, situadas próximo ao Panteão de Paris.

“Eu estava vagando, desesperada e sozinha neste Japão que ainda não parecia com meus sonhos. Cheguei com meu grande guia turístico encharcado na mão, que me disse que ele e eu provavelmente havíamos chegado, por acaso, ao templo de Senso-ji, em Asakusa. Havia de fato um enorme templo na minha frente. Mas meu mau humor fez-me ignorá-lo e continuei a caminhar por ruelas que, apesar da chuva, estavam muito animadas. Inconscientemente, deixei-me guiar por uma música que parecia me chamar. Num beco, a minúscula e colorida entrada do que só poderia ser um teatro (…)

Uma vez lá dentro, vi apenas um jovem ator. O que ia, por si só, dar sentido ao meu desespero japonês, à minha solidão, à chuva, ao dilúvio, à toda a minha jornada. Oh! Por que não posso lhe dar um nome, agradecer e compartilhar o Prêmio Kyoto. Em uma tarde, esse menino me abriu as terríveis portas do reino dos atores. Foi naquele dia, naquela sala minúscula, meio cheia de velhinhas atenciosas e apaixonadas, e alguns velhos senhores inescrutáveis, que compreendi para sempre o que era um verdadeiro ator. (…) Não entendi nada, mas vi tudo.

Fundação Inamori Mnouchkine ao lado de Satoshi Miyagi, Shintaro Fujii e Patrick De Vos durante mesa-redonda organizada pela Universidade de Waseda, Tóquio, em novembro de 2019

Seu olhar em pânico me fez ver os olhos igualmente em pânico dos cavalos espumando sob os chicotes e seus cascos levantando poeira ou rasgando o prado, enviando torrões pretos voando como bombas. (…) Ele era o príncipe Hal, ele era Hotspur, ele era Falstaff, Macbeth antes da floresta ambulante, Henrique V, ele era Shakespeare. Naquele dia, para a jovem viajante ignorante que eu era, neste quartinho miserável de nada em Asakusa, graças a um humilde ator japonês, não havia Japão nem Ocidente. Lá estava o Teatro. Universal. Humano e grandioso.

(…) Chamei-o de pequeno Kabuki e só muito, muito mais tarde, aliás muito recentemente, enquanto assistia a uma atuação da trupe de Daigoro Tachibana, soube que este estilo se chamava Taishu Engeki, que em francês se traduziria como teatro para o povo. Teatro popular!”

Mnouchkine encerra seu discurso revelando quem realmente será premiado: “Senhoras e senhores, permitam-me apresentá-los àqueles a quem vocês concederam o Prêmio Kyoto para as artes e filosofia de 2019, o Théâtre du Soleil”. Além da medalha, a distinção conferida incluiu uma quantia de 800 mil euros (soma de pouco mais de 4 milhões de reais, se convertidos). Parte do valor financiou a realização do espetáculo.O subsídio cobriria principalmente a viagem – prevista para setembro de 2020 – e a permanência de dois meses do elenco na ilha de Sado, para que o processo criativo fosse iniciado com mestres japoneses.

Surpreendidos pela pandemia e as medidas sanitárias ainda em vigor, o grupo decidiu que seria imprudente fazer o deslocamento.

Convidada, Kinué Oshima, mestra de teatro Nô, veio ao encontro dos artistas para a primeira oficina na Cartoucherie, a que inaugura oficialmente a produção da obra. Dias depois, o presidente Emmanuel Macron anunciou um lockdown em nível nacional. Era 16 de março de 2020. Os ensaios previstos para aquele mês foram adiados e retomados 90 dias depois.

“O filho de um dos atores pegou Covid na escola. Então Ariane mandou todos para a casa até a segunda ordem. Dois dias depois, veio o primeiro confinamento. E foi uma grande sorte que estávamos começando a ensaiar e não em cartaz porque, se estivéssemos, seria uma catástrofe. A partir de então, todo mundo se reunia por Zoom. Depois começamos a ensaiar com mesas distantes, só quatro pessoas em cada uma, gel, máscaras. Mudou toda a maneira de a gente se servir na hora do almoço, nas filas ninguém se encontrava, havia distanciamento. Como aqui tem muito espaço [1.600 m2], então isso foi possível. A gente ensaiou em condições realmente perfeitas. Começamos a criar a dramaturgia e esse foi um momento muito longo de improvisação, de propor textos para a Ariane”, conta a atriz e dançarina Juliana Carneiro da Cunha, 73 anos, integrante do Soleil desde os anos 1990 e esposa de Mnouchkine.

Michèle Laurent Na cama, Cornélia (Hélène Cinque) e Jean-Philippe Dupont-Smith (Martial Jacques). De pé, Marietta (Juliana Carneiro da Cunha), diretora do grupo Notre Dame du Théâtre Socialiste Brésilien (Nossa Senhora do Teatro Socialista Brasileiro), ao lado de sua assistente Rosa (Júlia Marini)

Durante o processo, os atores e atrizes se dividiram em “brigadas internacionais” encarregadas de observar as rotas de mentiras fomentadas pelo vírus ; por exemplo, no Brasil e nos Estados Unidos. A partir dessas investigações, expressavam suas visões, desenhavam os cenários e propunham diálogos para serem apresentados à diretora.

A atriz figura numa das cenas mais tocantes do espetáculo ao representar um momento vivido por grande parte da população mundial durante o inédito período de isolamento social: o reencontro virtual entre Cornélia (Hélène Cinque) e sua mãe, Madame Miette (Juliana Carneiro da Cunha), idosa e debilitada, acompanhada da enfermeira Zélita (Eve Doe Bruce).

A passagem foi escrita por Cunha e Cixous, colaboradora do Soleil desde A terrível mas inacabada história de Norodom Sihanouk (1985). Pioneira nos estudos de gênero na Europa, é autora de O riso da medusa (1975), ensaio referencial para o feminismo moderno por questionar a ausência de mulheres na literatura, na teoria e na crítica. No Brasil, o livro foi lançado em janeiro pela Bazar do Tempo (116 páginas, R$ 58), com tradução de Natália Guerellus e Raísa França Bastos.

As primeiras indicações de Mnouchkine em conexão com a cultura japonesa foram repassadas aos integrantes em janeiro de 2017. À época, a peça seria inspirada em La manga, conjunto de 15 volumes com mais de mil desenhos do pintor e gravurista Katsushika Hokusaï (1760-1849), abarcando temas como cotidiano, fauna, flora, paisagens e facetas do imaginário japonês do início do século XIX; aliás, ele foi precursor do mangá em seu país, versão de histórias em quadrinhos; e também em Bas-fonds (O submundo), peça de 1902 do romancista e dramaturgo russo Máximo Gorki (1868-1936), que retrata personagens vivendo na pobreza.

Nesse mesmo ano, Mnouchkine recebeu o Prêmio Goethe na Alemanha – um dos mais importantes da literatura mundial – pelo conjunto de sua obra. E foi a partir de Sado que elaborou o discurso de aceitação.

Em 2018, a jovem geração de músicos do Kodo, grupo icônico na percussão tradicional dos tambores taiko, fundado em 1981, aportou no Théâtre du Soleil para um intercâmbio. Ex-integrante, Hayato Otsuka foi convidado à Cartoucherie em setembro de 2020 para transmitir essa arte aos 35 atores durante um mês, ao ritmo disciplinado de duas horas e meia por dia. Ao final de cada apresentação, do alto de duas sacadas no hall do teatro, sete artistas do elenco contemplam o público com uma breve apresentação dos tambores japoneses. 

Sob orientação de Moi Teycheney-Takashiro, que trabalha a cultura nipônica ao lado da encenadora, vieram também os treinamentos com Tadashi Ogasawara nas técnicas de kyôgen, a forma cômica de teatro japonês tradicional; e kabuki, caracterizada pelo uso do drama e maquiagem, com os professores Hiromi Yokozawa, Kôtaro Nakajima, Einojô Hayase e Ai Hirasawa; além de aulas de japonês com Miho Kato, e hebreu, com Ido Shaked.

Michèle Laurent No primeiro plano, deitada, a personagem Cornélia (Hélène Cinque); atrás e sobre o suporte móvel que compõe boa parte da cenografia, da esquerda para a direita: Kieki (Juliana Carneiro da Cunha), irmã mais velha de Daigoro, o mestre das marionetes; e os pescadores Sachiko (Nirupama Nytianandan) e Shinichiro (Agustin Letelier)

A equipe criativa inclui nomes como o do renomado designer de máscaras, escultor e cenógrafo suíço Erhard Stiefel, 81, que mantém seu próprio ateliê no complexo Cartoucherie; as figurinistas Marie-Hélène Bouvet, colaboradora desde La nuit des rois (Noite de reis, 1982), versão do coletivo para a peça de Shakespeare, e Nathalie Thomas, presente desde a produção do filme Molière ou la vie d’un honnête homme (Molière ou a vida de um homem honesto, 1978); a pintora e grafista Noriko Koma, responsável pela caligrafia de painéis e lanternas penduradas no hall do teatro; e o trio David Buizard, Kaveh Kishipour e Martin Claude, responsável pela cenografia móvel composta por carrinhos de 1,80 m por 0,90 cm, em madeira, montados dinamicamente em cena para composição das passarelas e do palco Nô.

“A ideia original da Ariane era que a peça fosse falada em japonês por todos. Então, antes de começar o processo criativo, passamos a estudar o idioma, a fazer aulas com professor particular. Depois percebemos que seria muito difícil. Não seria assim, durante o trabalho, que a gente conseguiria. Então foi criada uma língua invertida [naispoja,  japonês escrito ao contrário, em francês]. Uma assistente japonesa reescreveu todo o texto com essa língua imaginária e todos passaram a ensaiar esse idioma invertido, que teria uma sonoridade japonesa, mas que seria uma língua inexistente, e com legendas em francês”, explica a atriz e professora de teatro Aline Borsari.

Mestra pelo Instituto Teatral da Sorbonne e formada em licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo, Borsari integra o Soleil desde 2008. Após participar de um estágio no grupo, permaneceu e atuou em todo o repertório de peças e filmes desde então. Em A ilha do ouro, Kanemu-Jima interpreta a diretora de palco Sayaka. Ela detalha que, para aprendizado do texto, a estrutura incluia: o significado em francês, a tradução em japonês, o japonês invertido e o que significava palavra por palavra. “Quando a gente leu essa tradução literal, deu essa língua que é falada no espetáculo. É a mesma gramática japonesa, mas traduzida em francês. Por isso que ficou um francês invertido.” A exemplo, na grafia francesa: C’est parti! (Vamos!). Na configuração proposta, tornou-se Parti c’est!

Além Cunha e Borsari, outras cinco pessoas brasileiras integram o Théâtre du Soleil, composto atualmente por 70 membros de 23 nacionalidades diferentes. Os irmãos Miguel e Tomaz Nogueira da Gama, do Rio de Janeiro, são filhos da atriz e diretora Fabianna de Mello e Souza, que também atuou na trupe parisiense, entre 1997 e 2006. No Brasil, fundou a Cia dos Bondrés, em 2008. Antes, trabalhou no Grupo Tapa (1986-1997) e fundou o Grupo Maktub, em 1993, sempre em território fluminense.

Amanda Tedesco, também do Rio, chegou à França em agosto de 2019. Interessada em conhecer o modo de criação do Soleil, permaneceu e, em novembro, passou a trabalhar como assistente de Mnouchkine, gravando as improvisações ao longo da criação. Durante a temporada, fez algumas entradas e saídas de cenário e colaborou nas frequentes substituições de elenco devido à pandemia. Seu posto é o de lançar as legendas em cena quando o idioma não é o francês. Árabe, inglês, português, japonês e hebreu estão entre as línguas faladas.

Júlia Marini, de Três Rios (RJ), chegou em fevereiro de 2020. Foi uma das 20 atrizes de As comadres, primeira peça dirigida por Mnouchkine fora do Théâtre du Soleil. Produzida por Juliana Carneiro da Cunha, a versão brasileira da comédia dramática Les belles-sœurs (1965), do romancista e dramaturgo franco-canadense Michel Tremblay, estreou no Festival de Curitiba em 2019 e cumpriu temporadas nos teatros Sesc Ginástico (RJ) e Sesc Anchieta (SP), respectivamente.

“Quando eu quis vir para cá, quis vir para sempre. Mas acho que esse para sempre vai mudando com o tempo, como tudo na vida. Contudo, se tem uma coisa que eu acho que tem a ver com o Théâtre du Soleil é essa sensação de que se entra num espaço de continuidade; como pegar o barco no meio da viagem, em movimento”, diz Marini.

Com mais de 15 anos de trajetória profissional, incluindo teatro (Beije minha lápide, texto de Jô Bilac), cinema (Ninguém ama ninguém por mais de dois anos, direção de Clovis Mello) e televisão (Rock story, novela de Maria Helena Nascimento), a artista é fundadora da Cia Teatro Independente (2006), cujo repertório inclui Cachorro! (2007), indicado ao Prêmio Shell de melhor direção, Rebú (2009) e Cucaracha (2012).

Em A ilha do ouro, Kanemu-Jima, quando o enfermeiro e anjo-guardião Gabriel não consegue mais conter o surto da personagem Cornélia, apenas a voz de Marini intervém com Índio, canção de 1977, de Caetano Veloso: “Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante/ De uma estrela que virá numa velocidade estonteante/ E pousará no coração do Hemisfério Sul/ Na América, num claro instante/ Depois de exterminada a última nação indígena/ E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida/ Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”. Para os que compreendem o idioma, a passagem faz alusão à condição de desprezo do atual governo brasileiro para com as reservas indígenas e o incentivo a garimpeiros extraírem todo tipo de minério de suas terras.

Coletivo Clap Cena de ‘As comadres’, espetáculo musical dirigido por Mnouchkine fora do Théâtre du Soleil e produzido pela atriz e dançarina Juliana Carneiro da Cunha; das 20 brasileiras que compõem o elenco, Ariane Hime e Júlia Marini foram convidadas a integrar o grupo

“O primeiro espetáculo a que assisti do Soleil foi Une chambre en Inde. Já conhecia a história do grupo, já tinha estudado na Escola de Teatro Martins Penna, onde me formei no Rio de Janeiro, e tinha assistido aos espetáculos em vídeo. Quando entrei por aquela porta e comi a comida da Índia e senti os cheiros e vi a peça, fiquei tão encantada, de uma maneira tão excepcional que não tinha outra vontade que não a de estar aqui e fazer parte desse encantamento, dessa manipulação do tempo, que é a coisa mais bonita que o teatro faz. Você entra e não sabe quanto tempo passou. Não importa. Os atores e a encenação manipulam o tempo de uma maneira tão mágica que é isso que te faz viajar e querer participar dessa magia, dessa bruxaria que a gente faz junto”, partilha a atriz em entrevista ao Teatrojornal após uma das sessões de um domingo de março, excepcionalmente ensolarado.

A conversa na Cartoucherie reuniu outros seis brasileiros da trupe e foi realizada em uma das mesas do restaurante japonês ambientado para acolher espectadores, que ali podiam experimentar um keïhan, canja de galinha acompanhada de arroz, cogumelos, ovos, cebolinha e gengibre a 10 euros (53 reais) e/ou um mugi cha, bebida de trigo torrado a 1 euro, dentre as opções do cardápio. As expressões do lema « Liberdade, Igualdade e Fraternidade » contornam o arco da entrada principal do espaço. Nela, a própria Mnouchkine é quem recolhe os ingressos e recepciona o público, composto majoritariamente por franceses na faixa etária dos 45-65 anos, alguns estrangeiros e famílias com adolescentes. Naquele dia, ela justificou que não daria entrevista por estar « muito cansada » e que, assim, não agregaria nada de interessante. Segundo Cunha, muitas substituições em função da Covid-19 têm marcado a temporada e demandado maior energia da encenadora.

Por fim, Ariane Hime, de Volta Redonda (RJ), fez assistência de produção executiva na temporada brasileira do musical As comadres e conta que, nos últimos dias em cartaz, faltava uma atriz. Foi quando Mnouchkine lhe fez o convite para atuar. “Depois disso, entrei mesmo. E quando viemos para a temporada francesa, um dia, almoçando aqui numa sala toda pintada de cem budas, eu ia dormir e tinha um teatro para pedir a benção aos deuses. Eu pensei: ‘Acho que não quero ir embora não’. Então, pedi para ficar e a Ariane me perguntou por quanto tempo. Eu disse para sempre”, relata.

“[A experiência no Soleil] é muito como um teatro-escola. Tem muitos que chegam ‘verdes’, como a gente chama, tendo pouco conhecimento e vão crescendo e se profissionalizando. Todos que estão aqui têm essa sensação de sonho realizado. Eu, por exemplo, assisti a uma peça em 1976, era L’age d’or, e, quando acabou, eu disse: ‘Um dia eu vou fazer parte dessa trupe’. Quatorze anos depois eu entrei. É sobre ter a sensação de poder pertencer a esse mundo, a esse sonho”, rememora Cunha.

Desde sua criação, o Soleil informa conservar uma dinâmica primordial de trabalho coletivo e horizontal que inclui seus integrantes receberem o mesmo valor de salário, mas, também, segundo a atriz, a divisão de tarefas cotidianas para manutenção do espaço, como a limpeza dos banheiros e arquibancadas, bem como o comprometimento de presença quatro horas antes do início do espetáculo.

Na França, desde 1º de janeiro de 1968 o status intermitente assegura um regime específico de seguro-desemprego a profissionais dos setores de cinema, audiovisual e artes cênicas, o que significa receber uma renda regular para viver e desenvolver seu projeto artístico. Cunha explica que, a subvenção cobre 40% das necessidades de ficha de salário, gás, eletricidade, etc. O resto, 60%, vem do público, é a bilheteria. Logo, se a sala não estiver cheia, em pouco tempo, o grupo precisa parar de trabalhar.

“A diferença é flagrante. Nas peças às quais a gente vê, as salas estão cheias, tem público de todas as idades. No Brasil, a expectativa é outra. Esse espetáculo de três horas está de quarta a domingo e tem 600 pessoas todos os dias, às vezes até sentadas nas laterais. No Rio de Janeiro, por exemplo, a gente faz uma peça por dois meses para 100 pessoas”, compara Tomaz Nogueira da Gama, ator que foi assistente de Mnouchkine em As comadres. Em A ilha do ouro, Kanemu-Jima, passou a dividir o personagem anjo-guardião de Cornélia com o ator Sébastien Brottet-Michel.

Na visão de Marini, a diferença é baseada numa ideia de construção de sociedade como um todo. “Não estamos falando só da nossa condição de produzir, mas de uma questão cultural, de uma educação que faz da ida ao teatro um hábito. E, para mim, esse é o ponto crucial de diferença entre o que se produz de teatro na França e que se produz de teatro no Brasil, sobretudo nesse momento que nem Ministério da Cultura a gente tem. Então, realmente é um outro olhar para isso que é um direito para a população e que aqui é uma profissão respeitada”, pontifica.

Michèle Laurent A chegada da Troupe des Marionnettistes (Trupe de Marionetistas) ao hangar onde será realizado o festival na narrativa do trabalho em cartaz até 15 de maio na sede do Soleil

No que diz respeito às ações de formação de público, Juliana Carneiro da Cunha acrescenta que o espaço é reservado todos os dias para cem crianças e adolescentes que, antes de chegarem, foram preparados por um professor sobre a proposta da peça. No site, um dossiê pedagógico com 66 páginas de textos, exercícios e imagens é disponibilizado gratuitamente em arquivo pdf. Para escolas de outras cidades, há a possibilidade de dormir uma noite no Théâtre du Soleil.

Na página 47 do documento, por exemplo, estudantes encontram algumas sugestões de leituras referenciadas em determinados momentos por Sra. Spinoza, professora de Cornélia, interpretada pela atriz iraniana Shaghayegh Beheshti. Na atividade proposta, interessados vão à procura de alguns desses textos para escolher um pequeno excerto que, a seus olhos, constitui um eco do estado atual do mundo ou um suporte para enfrentá-lo.

Entre Meditações, de John Donne; As três irmãs e O jardim das cerejeiras, de Tchékhov; e os Poemas de amor, de Jorge Luis Borges, a passagem em que Spinoza cita a peste, trecho de Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski, tem provocado saídas frequentes do público. A saber: “O mundo inteiro estava condenado a sofrer uma espécie de praga do Egito, terrível, nunca antes vista, que vinha das profundezas da Ásia até a Europa. Todos tiveram que morrer, exceto alguns, muito poucos, eleitos. Vimos aparecer seres microscópicos que penetravam nos corpos das pessoas. Aqueles contaminados ficaram loucos, possuídos. No entanto, nunca, nunca as pessoas pensaram que eram mais inteligentes e mais firmes em sua verdade do que aqueles que foram infectados”. 

“É importante dizer que o teatro tem ainda essa potência de tocar as pessoas nesse lugar visceral, com esse nível de provocação emocional e física. Acontece porque o texto da peste é muito tocante e a sequência da cena das marionetes – um pouco contando a história de como a gente chegou a esse lugar na pandemia –, realmente tem esse poder de atravessar as pessoas a ponto de algumas mais sensíveis ou com alguma questão de saúde terem seu estado abalado momentaneamente”, explica Marini.

A temporada parisiense encerra no domingo (15). As próximas apresentações incluem o Théâtre Nacional Populaire de Villeurbanne, de 9 a 26 de junho, e o Théâtre de la Cité de Toulouse, de 9 a 27 de novembre. Em 2023, uma turnê internacional passará por Tóquio e Kyoto. Ainda não há previsões para o Brasil, onde o grupo passou por São Paulo e Canoas (RS) com Les ephemères, em 2007, e voltou à capital paulista com Os náufragos do Louca Esperança, em 2011.

Serviço:  

L’île d’or, Kanemu-Jima (A ilha do ouro, Kanemu-Jima)
Últimas sessões: sexta (13), às 19h30; sábado (14), às 15h; e domingo (15), às 13h30

Ingressos: 35 € (individual), 25 € (coletivos e desempregados), 15 € (estudantes com menos de 26 anos), 50 €, 100 € e 150 € (contribuição voluntária)

Duração: 3h15 com intervalo (o teatro abre 90 minutos antes do início do espetáculo)

Théâtre du Soleil, La Cartoucherie: 2 Route du Champ de Manoeuvre, Paris


Reprodução No desenho de Catherine Schaub-Abkarian, a enfermeira Zélita (Eve Doe Bruce) ao lado de Madame Miette (Juliana Carneiro da Cunha), em reencontro virtual com a filha Cornélia (Hélène Cinque)
Reprodução Criado por Thomas Félix-François a partir da ilustração de Catherine Schaub-Abkarian, o flyer de ‘L’île d’or – Kanemu-Jima’ traz personagens centrais Cornélia e seu enfermeiro Gabriel

Ficha técnica

Dramaturgia: Théâtre du Soleil, colaboração de Hélène Cixous

Direção e cenografia: Ariane Mnouchkine

Música: Jean-Jacques Lemêtre, assistidos por Marie-Jasmine Cocito, alternadamente com Clémence Fougea e Ya-Hui Liang

Com: Agustin Letelier, Alice Milléquant, Aline Borsari, Andréa Marchant, Arman Saribekyan, Dominique Jambert, Duccio Bellugi-Vannuccini, Eve Doe Bruce, Farid Gul Ahmad, Georges Bigot, Hélène Cinque, Júlia Marini, Juliana Carneiro da Cunha, Judit Jancsó, MW Brottet, Marie-Jasmine Cocito, Martial Jacques, Maurice Durozier, Miguel Nogueira, Mio Teycheney-Takashiro, Nirupama Nityanandan, Omid Rawendah, Reza Rajabi, Samir Abdul Jabbar Saed, Shafiq Kohi, Shaghayegh Beheshti, Sayed Ahmad Hashimi, Sébastien Brottet-Michel, Seietsu Onochi, Taher Akbar Baig, Thérèse Spirli, Tomaz Nogueira, Vincent Mangado e Xevi Ribas

Marionetes: Erhard Stiefel e Simona Grassano

Figurinos: Annie Tran, Haroon Amani, Marie-Hélène Bouvet e Nathalie Thomas

Perucas e penteados: Jean-Sébastien Merle

Acessórios: Cécile Carbonel, Luca Botté-Luce e Xevi Ribas

Iluminação: Lila Meynard e Virginie Le Coënt

Vídeo: Diane Hequet

Legendas: Amanda Tedesco

Fotos: Michèle Laurent

Agradecimentos: Franck Pendino e Charles-Henri Bradier

Coprodução Théâtre du Soleil, TNP, Casa da Cultura de Amiens-Centro Europeu de Criação, com apoio de Park Avenue Armory (Nova York). O Théâtre du Soleil é apoiado pelo Ministério da Cultura, a Região Île-de-France e a cidade de Paris

Jornalista e escritora brasileira radicada na França, tem contribuições em projetos artísticos e socioculturais a partir de atuações em ONGs, revistas, rádio, televisão, fotografia, assessoria de imprensa e produçāo de eventos. É autora da biografia Esumbaú, Pombas Urbanas! 20 anos de uma prática de teatro e vida (2009) e uma das criadoras do Orgulho Crespo, movimento independente de valorização do cabelo afro iniciado em 2015 com a 1ª Marcha do Orgulho Crespo SP. A iniciativa integra o calendário oficial do Estado de São Paulo com o #DiaDoOrgulhoCrespo, celebrado todo 26 de julho por meio da Lei 16.682/2018.

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