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Artigo

O coaxar das gentes da Piollin

20.5.2022  |  por Ana Marinho

Foto de capa: Lenise Pinheiro

Coimbra – Era 1989 e eu chegava à cidade de João Pessoa para concluir o ensino médio, vinda de Patos, no sertão da Paraíba. Aprendia a falar, a ouvir, mesmo sabendo desses sentidos que não se ensinam, em espaços de troca e nos processos do teatro, nas aulas do curso de formação de atores (e atrizes) da Fundação Espaço Cultural José Lins do Rego, coordenado por Roberto Cartaxo e com a presença, silenciosa sempre, de Luiz Carlos Cândido.

Uma noite, fui levada a assistir a uma peça no bairro do Roger, ali atrás da Bica (Parque Arruda Câmara). A peça era Homens de lua, com texto e direção de Eliézer Filho, assistência de direção de Everaldo Pontes, atuações de Ângelo Nunes, Maurício Soares, Wildenir Albuquerque, Servílio Gomes e Palmira Palhano, coreografia de Maurício Germano e música de Paulo Ró, apresentada num teatro sem palco, sem teto, sem cortina, sem coxias. Ah, todas essas informações que hoje tenho estão na tese de Duílio Pereira da Cunha Lima, intitulada Encenação Tabajara (1975-2000): memórias, tendências e perspectivas no teatro de João Pessoa, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba, com a orientação do professor Diógenes Vieira Maciel, em 2016. Mas vamos lá: era 1989, eu tinha 19 anos e só conhecia o teatro que eu mesma fazia e os espaços de teatro, que eram assim chamados e reconhecidos, como o Teatro Santa Roza, onde assistia aos shows do Projeto Pixinguinha, e o Teatro Paulo Pontes, com produções que eram tão distantes da minha experiência que sequer lembro de uma delas. Depois vieram as edições do Festival Nacional de Arte (Fenart), da Fundação Espaço Cultural, mas isso é assunto para outra conversa.

E lembro dos vários relatos de educadores/as e artistas que vivem a Piollin. Crianças que chegavam com armas nos bolsos para assistir às aulas; os contínuos roubos de equipamentos, cabos, fios. As mesmas crianças que sumiam de um dia para o outro e que só sobreviveram porque passaram a fazer parte de programas de proteção às vítimas. Fico pensando nas relações entre as gentes que fizeram e fazem parte da Piollin e os espaços ocupados. Um engenho, uma casa-grande e um entorno de restos de Mata Atlântica em que as feridas do colonialismo, da violência capitalista e heteropatriarcal continuam a operar. Penso nesses campos de batalha em que o teatro vive e revive

Três anos depois daquela noite de lua, voltei ao Piollin, em 1992, agora para assistir a Vau da Sarapalha. Naquela noite havia um teto, ou quase, o galpão/teatro estava em construção e eu tomava um susto a cada vez que Escurinho aparecia em cena e que era acuado por Servílio Gomes. Não lembro do que diziam os dois atores em cena (Nanego Lira e Everaldo Pontes), mas lembro do sapo, rã, caçote, não sei, que quis tomar a cena para si e voou para fora dela pelas mãos de Soia Lira. Assisti ao espetáculo umas tantas outras vezes: no Teatro Santa Roza, no Teatro Paulo Pontes e, também, de volta, no Teatro Piollin, agora já com arquibancada, distância de plateia e público e sapo nenhum, mas rugido do leão da Bica e sons de susto e assombração de uma plateia cada vez maior, imensa mesmo, que quase não cabia nesse espaço tão grande. Nesses tempos futuros eu já prestava atenção aos diálogos, aos espaços da cena e silêncios.

Guardo comigo aquela experiência de susto, assombro, alumbramento: os sons produzidos por Escurinho e os gestos de Soia Lira a reencantar lembranças minhas de leituras de obras do escritor João Guimarães Rosa (1908-1967), que depois foram lidas na companhia dos meus alunos e alunas do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba. Lembranças dormidas na cama de quem viveu e vive esses sertões e brasis. Lembro ainda que Luiz Carlos Vasconcelos me perguntou, ao final daquela primeira apresentação, o porquê dos meus sustos. Não sei o que disse, naquela noite: se era trauma, se era medo de balões de aniversário quando estouram, de rojão de São João, só sei que sigo apavorada, nos segundos antes do estouro de fogos e balões, mas é o teatro e as gentes do teatro que me assombram, sempre, como naquela noite quando os trabalhos da atriz, dos atores, músico, diretor e encenador, iluminador e cenógrafo me revelaram e se revelaram como lugares de permanência, de luta, de re-existência. E são esses momentos, tão únicos, tão certeiros que me movem ainda, nesse ano de 2022.

É abril de 2022 e leio (escuto) os apelos de Buda Lira para que o Teatro Piollin resista, volte a receber artistas, volte a congregar as gentes do teatro e a mover economias e possibilidades de sustento para as trabalhadoras e trabalhadores da cultura desse país. Para chegar a esses lugares, peço licença para contar um pouco dessa história, com a ajuda de amigos/as e, também, de pesquisadores/as que desenvolveram estudos sobre a experiência da escola Piollin, amparados/as por instituições públicas de ensino superior como a UFPB e a UEPB.

A Escola de Teatro Piollin foi fundada em 1977, fruto de uma ocupação de espaços do Convento de Santo Antônio, localizado na parte alta do Centro Histórico de João Pessoa. A escola funcionou nas dependências do convento abandonado entre os anos de 1977 e 1984, quando foi transferida para o local onde existiu o Horto Simões Lopes, antigo Engenho Paul, através da assinatura de um contrato de comodato com o Governo do Estado da Paraíba. Essa área de 1,5 hectare, ocupada por um antigo engenho de açúcar do século XIX, passou a abrigar a Casa Grande, espaço usado para oficinas e, também, apresentações de espetáculos; o Teatro Piollin, construído nas fundações do engenho de rapadura e, ainda, dois galpões onde passaram a funcionar a escola de circo e salas de aula, refeitório, cozinha, além de outras salas menores ocupadas por grupos de teatro e circo da cidade. Como afirma Duílio Lima,

A Escola Piollin, nascida do impulso ou sonho utópico de um grupo de “cabeludos”, mesmo com toda precariedade estrutural, logo vai se tornar um importante espaço de experimentação, formação e difusão das diferentes expressões artísticas (teatro, circo, artes plásticas, música e cinema). Um ponto de convergência de diferentes artistas e do que se chamou, naquela época, de palco da produção cultural alternativa na cidade. (2016, p. 156)

Rizemberg Felipe Atores do Piollin Grupo de Teatro em ‘Retábulo’ (2010), encenação de Luiz Carlos Vasconcelos que transpôs para o espaço cênico o conto ‘Retábulo de santa Joana Carolina’, do pernambucano Osman Lins

Em matéria de jornal assinada por Chico Noronha, e garimpada por Duílio, a notícia sobre a construção do teatro e a estreia de Vau da Sarapalha diz muito sobre os processos de luta que guiam, também, esse meu texto:

“Sérgio Rouanet esteve em João Pessoa no dia 27 de março [Dia Mundial do Teatro], dia marcado para o ensaio final ou mesmo a pré-estreia [de Vau da Sarapalha]. Rouanet apalavrou o apoio para a conclusão do Piollin, que não tem piso, somente cobertura, não tem banheiros, enquanto os artistas querem o básico: iluminação, sonorização e, num momento adiante, com certeza defenderão uma proposta considerada ambiciosa.” Notícia de 29 de abril de 1992, publicada no Correio da Paraíba e assinada por Chico Noronha. (LIMA, Duílio, 2016, p. 287)

Na dissertação de mestrado de Mariana Teixeira, com o título Olha o público cansado de esperar, o espetáculo não pode parar!: uma história da Escola Piollin e suas “experiências” educativas (1977-1984), defendida em 2012 no mestrado em História da Educação da UFPB e orientada pela professora Cláudia Engler Cury, é possível acompanhar o percurso de organização do acervo da Piollin, numa parceria com o curso de graduação em História da UFPB, e as várias ações do centro e tentativas para manutenção de espaços como a sala de figurinos, que se transformou num bazar, as hortas e limpezas do jardim e do galpão, além das denúncias de roubos de equipamentos, as lutas pela manutenção da biblioteca, da sala de informática, do refeitório.

Mariana divide a história da Piollin em ciclos e centra seu estudo no período que vai de 1977 a 1984, quando Luiz Carlos decide se afastar da escola. Em um dos depoimentos, Luiz Carlos fala de uma intervenção/performance durante um concerto da Orquestra Sinfônica da Paraíba, no átrio do convento São Francisco, sob a regência do maestro Eleazar de Carvalho. Luiz comenta que o concerto foi interrompido pela canção Passarinho no mato, de Paulo Ró, e é com essa música que sigo e convido a me seguirem até o fim desse relato/apelo:

Passarinho do mato

Passarinho do mato

Passarinho do mato

Voa para teu ninho

Voa para teu ninho

Hoje enquanto há

Hoje enquanto há

Hoje enquanto há

Articulação no teu corpo

Articulação no teu corpo

Articulação no teu corpo

Se até sapo avoa, imagina passarinho do mato?!!

Meus encontros com a Piollin (o teatro e o centro cultural) passam pelos lugares de espectadora de peças de teatro e performances, muitas delas que compunham a programação do Palco Giratório (Sesc), mas, também, pela experiência de apresentar os espetáculos Quincas (2012), do Grupo de Teatro Osfodidario, e Razão para ficar (2015). Como integrante do Grupo de Teatro Osfodidario, ocupamos uma das salas do centro, guardamos o cenário do Quincas e foi lá que construímos, eu e João Paulo Soares, a dramaturgia e encenação do Razão para ficar, entre a pia e as colunas que mantinham a estrutura, mais uma vez ameaçada de ruir.

Nessa linha de tempo, que vai além do recorte feito por Mariana, o período que vai de 2005, quando foi criado o Centro Cultural Piollin, até 2017, diz muito de um projeto coletivo e que envolve ações coordenadas de educação e formação cidadã. Em 2005 o Centro Cultural Piollin passa a integrar a Rede de Proteção da Criança e do Adolescente do bairro do Roger, que também reunia creches, escolas municipais e estaduais, além do Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPS), entidades religiosas e outras organizações não governamentais. Em 2008 o centro recebeu a Ordem ao Mérito Cultural do Ministério da Cultura. A história de ocupação e assentamentos desse espaço atravessa a vida de muita gente. Atrizes, atores, diretores/as, músicos e musicistas, programadores/as, bailarinos/as, cenógrafos/as, mas também educadores e educadoras, gestores e gestoras como Marcelina Moraes, Buda Lira, Márcia Lucena, Amélia Nóbrega…, além dos atores e atrizes que foram desenhando trajetórias no teatro, no cinema e na pesquisa, como Ângelo Nunes, Duílio Cunha e Ingrid Trigueiro, para ficar só com três que é número que gosto, mas que se multiplica em 7, 21… Vou deixar de dizer o nome de muita gente, eu sei, mas as memórias são afetos e os esquecimentos também vivem nesses lugares.

Com efeito, os próximos parágrafos alinhavam datas e pares das artes da cena que gravitam a trajetória recente da escola, grupo e centro cultural Piollin, caminho que precisa ser pontuado, sobretudo se pensarmos em leitores e leitoras de outros estados.

Piollin Grupo de Teatro/Divulgação Artistas ensaiam ‘A gaivota (alguns rascunhos)’ (2010) na sede do grupo de João Pessoa, vizinho do Parque Arruda Câmara, no ano anterior à estreia da adaptação do diretor convidado Haroldo Rêgo para o drama do russo Anton Tchékhov

Em 2008 o Centro Cultural Piollin passa a fazer parte da Rede Circo Mundo Brasil. Ocorre o projeto Caravana Piollin, coordenado por Simone Alves, que levaria o “Circo do Amanhã” para cinco municípios do estado da Paraíba. Os acordos com prefeitura (pagamento de funcionários para a limpeza, fornecimento de merenda para os alunos) e o governo estadual (água e energia) continuam a existir, mas essa luta, esse cabo de guerra, é mesmo difícil.

Paralelo às ações do centro, o Teatro Piollin recebia espetáculos como Hysteria, do Grupo XIX de Teatro (SP), e Angu de sangue , do Coletivo Angu de Teatro (PE), em 2009; O capitão e a sereia, do Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare (RN), em 2011. Em 2012, o Piollin Grupo de Teatro estreia o espetáculo Retábulo e passam pelo chão do teatro e pelo espaço da Casa Grande espetáculos como A mar aberto, do Coletivo Atores à Deriva (RN); A serpente, da Cia. Os Dezequilibrados (RJ); Coisas invisíveis, da Cia Clara (MG); Flor de macambira, do Ser Tão Teatro (PB); Aurora boreal, do Grupo Tarará, de Mossoró (RN); e Déjà vu, do Grupo Graxa de Teatro (PB). Esses e outros espetáculos participaram do Projeto Teatro Piollin, em comemoração aos 35 anos de fundação da escola. O centro cultural foi contemplado ainda para a realização de diferentes projetos idealizados por sua equipe, a exemplo do Prêmio Carequinha de Estímulo ao Circo, da Fundação Nacional de Artes (Funarte); Prêmio Economia Criativa do Governo Federal; Prêmio Mais Cultura de Pontos de Leitura, do Governo do Estado da Paraíba; e programa Rumos, do Itaú Cultural.

Em 2013, sob a coordenação de Buda Lira, o Teatro Piollin movimenta os meses de janeiro e fevereiro na cidade com o Projeto Piollin de Teatro, do qual participam, além dos grupos de João Pessoa – como Alfenim, Bigorna, Cia Oxente de Teatro, Agitada Gang, Grupo Lavoura, Cia Sirius, Fazendo Arte –, núcleos artísticos do Ceará (Grupo Teatro Máquina) e Pernambuco (Magiluth). Também passam pelo chão do teatro Panacéia Delirante (BA), Cia. do Rosário (PB), Núcleo de Pesquisa de Experimentação Teatral – Pinel (PB), Cia Teatro Balagan (SP), mundana companhia (SP) e Cia do Feijão (SP).

No ano seguinte o teatro acolhe a Mostra Internacional de Teatro – MIT e a mostra Teatro A Gosto, realizada pelo Grupo Graxa de Teatro. Passam por lá os espetáculos A grande serpente, do Grupo Imbuaça (SE); A gaivota – Alguns rascunhos, do próprio Piollin Grupo de Teatro (PB); Homens de solas de vento, da Cia Solas de Vento (SP); e Morro como um país, da então Kiwi Cia. de Teatro (SP), para citar uns poucos.

E 2015 chega com a II Edição do Projeto Teatro Piollin, em parceria com 14 grupos de teatro, dança e circo da Paraíba e um do Ceará, que ocorre entre 7 de janeiro 8 de fevereiro daquele ano. Foram 35 apresentações de quinta-feira a domingo. Essas informações todas consegui no blog do Centro Cultural Piollin. Em 2016, além das oficinas de circo, teatro, arte da palavra e “Semear o Planeta”, desenvolvidas pela equipe de educadores do Centro Cultural Piollin, ocupavam outros espaços do centro os grupos locais Piollin, Cia. de Circo-Teatro Lua Crescente, Grupo de Teatro Graxa, Cia. de Circo Alegria, Quadrilha Junina Lajedo Seco e Grupo de Capoeira Palmares. Também foram apresentados os espetáculos Cachorros não sabem blefar, da Cia 5 Cabeças (MG); OraMortem, do Grupo in-Próprio Coletivo (MT); e Baldio e Ogroleto, do Grupo Pavilhão da Magnólia (CE). Em 2017, houve ainda apresentações de Abrazo, do Clowns de Shakespeare; Os mequetrefe, do Grupo Parlapatões (SP); e Caranguejo overdrive, da Aquela Cia. de Teatro (RJ).

Feitas as devidas anotações… Estou longe de João Pessoa, tento remendar narrativas e pensar sobre um país tão violento como o Brasil. Releio os textos de Frantz Fanon sobre a violência e me reencontro com a experiência do Piollin. Há um capítulo no livro Os condenados da terra em que o autor discute a violência articulada à raça. Fanon apresenta a violência do colonizado contra o colonizador como uma perspectiva emancipadora, libertadora, que termina por reconstituir a humanidade aos povos violentados e escravizados (já peço desculpas pela simplificação dos conceitos e imagens e recomendo a leitura de outra obra fundamental dele, Pele negra, máscaras brancas). Achille Mbembe (Crítica da razão negra), outro autor que me acompanha já há alguns anos, também apresenta o conceito de contraviolência, problematizando contextos de agressividade e ira que, muitas vezes, são deslocados até para os colonizados, os que mais sofrem com essa violência. E lembro dos vários relatos de educadores/as e artistas que vivem a Piollin. Crianças que chegavam com armas nos bolsos para assistir às aulas; os contínuos roubos de equipamentos, cabos, fios. As mesmas crianças que sumiam de um dia para o outro e que só sobreviveram porque passaram a fazer parte de programas de proteção às vítimas. Fico pensando nas relações entre as gentes que fizeram e fazem parte da Piollin e os espaços ocupados. Um engenho, uma casa-grande e um entorno de restos de Mata Atlântica em que as feridas do colonialismo, da violência capitalista e heteropatriarcal continuam a operar. Penso nesses campos de batalha em que o teatro vive e revive.

Piollin Grupo de Teatro/Divulgação A partir da esquerda, atuantes Everaldo Pontes, Nanego Lira e Buda Lira durante intervalo de ensaios no espaço da escola, teatro e centro cultural Piollin, em 2009, quando circulou com as peças ‘Vau da Sarapalha’ e ‘A gaivota (alguns rascunhos)’

Mariana comenta, ainda em sua dissertação, sobre um saudosismo presente na fala dos interlocutores que participaram da pesquisa e que remonta ao tempo em que Luiz Carlos Vasconcelos estava à frente do projeto da escola/teatro. E me reconheço também nesse encontro com Luiz e seu jeito de convencer até sapo a entrar e sair de cena. Fiz parte de um projeto, de um sonho, em 2001, como pesquisadora de culturas populares: o Riso da Terra. Viajei com Luiz por estradas de terra e asfalto e, principalmente, por estradas de encantamento. Mas gosto muito do chão da escola, como dizem meus mestres e minhas mestras que vivem o cotidiano do ensino, formal e não formal. E me encanto pelo lugar da arte, do improviso. No projeto Piollin esses dois lugares se juntam e se separam muitas vezes, como o sonho de ter um teatro e as dificuldades que isso representa: manutenção dos equipamentos, da agenda, dos contratos e pagamentos de pessoal. Para que esses espaços existam, coexistam, é preciso ter gente que encera com os sapatos os corredores de fundações de cultura, centros administrativos de prefeituras e governos. Gente que vara noites escrevendo projetos, relatórios, prestando contas.

Minhas memórias oscilam entre um teatro lotado de gente assistindo ao espetáculo Quincas; um teatro não tão cheio de gente a dividir comigo, sozinha no palco, as violências vividas por mulheres que foram aprisionadas em manicômios, principalmente por serem mulheres e pobres. Também revivo dias de desespero e alegria quando o teatro ficava inundado e todo nós, do Grupo Osfodidario (Dudha Moreira, Odécio Antonio, Thardelly Lima, Daniel Porpino, Fabíola Morais), precisávamos retirar com baldes a água que batia na canela e assim poder apresentar o espetáculo algumas horas depois. Ou mesmo as idas e vindas para levar o cenário do Razão para ficar a outro canto: geladeira de nome Geralda e mesa de nome Artemísia, além do projetor de corações e flores e da estrutura de aço que tanto me custou e que, incrivelmente, cabiam no meu carro. Mas o que sinto mesmo é falta, eu e todas as gentes do teatro, os que foram citados aqui e os que esqueci: sinto falta, e como faz falta, de uma estrutura mínima que permita que possamos trabalhar e trabalhar muito, que é o que a gente sabe fazer e faz, dia e noite. Viva e vida ao Teatro Piollin!

Piollin Grupo de Teatro/Divulgação Atuante Soia Lira nos bastidores do ensaio de ‘Vau da Sarapalha’, em 2009, espetáculo em que é a velha Ceição do conto de João Guimarães Rosa que inspirou a montagem teatral
Piollin Grupo de Teatro/Divulgação Durante ensaio, em 2009, o percussionista, compositor, cantor e ator Escurinho toca marimbau, instrumento presente na trilha com a qual colabora e executa em ‘Vau da Sarapalha’

Outras referências:

.:. Leia artigo do artista e produtor Buda Lira, Teatro Piollin: um grito parado no ar, publicado no Jornal da Paraíba em 26 de março de 2022.

.:. Leia artigo do crítico e curador Kil Abreu, Transfigurações em ‘Vau da Sarapalha’, publicado neste site em 8 de novembro de 2017.

.:. Assista ao vídeo documentário Crias da Piollin (2008), com direção de Bertrand Lira:

Faz teatro desde os 19 anos em João Pessoa (PB). Formada pela escola de teatro da Fundação Espaço Cultural José Lins do Rêgo. Atuou nas peças ‘Filhos da noite’ (1989), ‘Medeamaterial’ (1996), ‘Quebra-quilos’ (2010), ‘Quincas’ (2012) e ‘Razão para ficar’ (2015); nos filmes ‘Desvio’ (2018) e ‘O que os machos querem’ (2021); e na série ‘Chão de estrelas’ (2021). “O que paga minhas contas é mesmo o ensino de literatura na Universidade Federal da Paraíba, desde 2001. Estou investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra para pensar e escrever sobre cidades-mulheres e memórias de luta e resistência. Até outubro de 2022, quando volto para um Brasil que acredito e que desejo reviver”.

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