Crítica
6.6.2022 | por Maria Eugênia de Menezes
Foto de capa: Silvia Machado
O teatro afeta 3% da população. A afirmação do diretor francês Mohamed El Kathib, em uma entrevista ao jornal Libèration, dá conta de sua visão sobre os limites das artes cênicas. Se o teatro afeta 3% da população – e estamos olhando aqui para o contexto europeu – qual o sentido pragmático de se falar de um teatro político hoje? Distante do seu passado de arte de massas, o teatro teria hoje outros propósitos. Um deles, parece crer Khatib, é promover o encontro entre pessoas que dificilmente teriam outras chances de se encontrar. Em Estádio (Stadium), espetáculo que abriu a 8ª MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, esse é certamente um motor.
Em foco, estão os aguerridos torcedores do Racing Club de Lens, um time de futebol do norte da França. Esse público, que declaradamente não frequenta nem está familiarizado com o teatro contemporâneo e seus códigos, é aqui levado à sala de espetáculos. O que o criador assume como novidade, portanto, não é tanto a exposição de alguns torcedores às plateias especializadas dos teatros. Mas a entrada de um grupo neófito – os torcedores de uma pequena cidade, membros da classe operária – na sala de espetáculos. Ainda que essa entrada se dê pelo palco e não pela plateia.
Terá o conservadorismo crescente da população algum laço com a cisão entre as classes trabalhadoras e a intelectualidade de esquerda? Além de filho de imigrantes operários, o diretor é declaradamente um discípulo de Didier Eribon, o filósofo francês que tematizou a sua própria deserção de classe, que disse ter se politizado e passado a exaltar a classe operária para melhor se afastar dos operários reais que o circundavam
Adentrar no campo do documental, da maneira como faz Khatib, certamente implica alguns riscos. Primeiro, o de romantizar aqueles que investiga. E percebe-se a graça naïf de certos depoimentos, para quem o time de futebol representa uma espécie de fim maior, paixão acima das paixões. Igualmente perigosa seria a tentação de transformar pessoas em objeto de interesse voyeurístico.
O encenador escapa desses perigos a partir de algumas decisões estéticas, concebidas em parceria com Fred Hocké. A um primeiro exame, sua criação emula a linguagem do campo – a luz intensa e sem sutilezas, uma arquibancada, um trailer à maneira dos carrinhos que existem na entrada dos estádios. Contudo, trata-se mais de uma citação às referências do futebol do que uma tentativa de recriação de certos ambientes. A opção por uma ambientação cênica em nada teatral, um antiteatro, é certamente uma das escolhas que lhe assegura um terreno relativamente seguro. Assiste-se a um gênero fluido, a meio caminho entre a performance, o documentário e o teatro.
A formação acadêmica do artista como cientista social talvez também tenha operado a seu favor na hora de montar um painel sociológico e antropológico dos 60 torcedores do Lens (era esse o número de participações nas apresentações francesas. Aqui, o elenco estava reduzido e com algumas substituições por torcedores locais). Ainda que se privilegie uma abordagem coletiva, sem muito espaço para investigações subjetivas, não se nota um achatamento das peculiaridades de cada depoimento.
O futebol pode operar como cimento social. Mas essa cola evidenciada por El Kathib se mostra particularmente interessante à medida que surgem certas fraturas. Os torcedores muitas vezes evocam suas origens: são netos e filhos de mineiros. O hino do clube, aliás, também reforça essa herança. Mas paulatinamente coloca-se a questão do neoconservadorismo das classes operárias. Em depoimento, um jovem torcedor aponta o esgarçamento da questão de classes. Se acabaram os trabalhos nas minas, o que restou a esses “herdeiros”? É nesse contexto que ele aponta, entre seus companheiros de torcida, a presença dos eleitores de Marine Le Pen – a candidata da extrema direita francesa, conhecida por suas críticas à globalização e ao multiculturalismo.
Em diversas ocasiões, o futebol já se mostrou como espaço privilegiado para observação de manifestações de xenofobia e racismo. Ao mesmo tempo em que também se coloca como um dos raros locais de convivência possível entre classes, um território onde as diferenças econômicas e sociais podem – ainda que por breves instantes – valer menos do que uma afeição comum. Claro que recorrer ao esporte como panaceia para a desigualdade não levaria a proposição de Estádio muito longe. Felizmente não é disso que se trata. O diretor está mais interessado em pautar uma discussão sobre pertencimento e territorialidade.
Evoca-se tudo aquilo que é teatral e circense no futebol – o tremular de bandeiras, as ações em coro, a presença de mascotes fantasiados e coreografias. Mas persiste uma recusa pelo que pode haver de artificioso na encenação e na dramaturgia. Em Partir com beleza (Finir en beutè), que integrou a grade da MITsp em 2019, Khatib recorria a um material bastante íntimo, a morte da própria mãe, para chegar a uma reflexão sobre o luto que pudesse alcançar uma dimensão coletiva. Motor semelhante se encontra em outros de seus títulos como Moi, Corine Dadat e C’est la vie. Parte-se da experiência singular (e real) para se chegar à esfera política.
Terá o conservadorismo crescente da população algum laço com a cisão entre as classes trabalhadoras e a intelectualidade de esquerda? Além de filho de imigrantes operários, o diretor é declaradamente um discípulo de Didier Eribon, o filósofo francês que tematizou a sua própria deserção de classe, que disse ter se politizado e passado a exaltar a classe operária para melhor se afastar dos operários reais que o circundavam.
Em sua transposição de Estádio para o Brasil, a substituição de boa parte do elenco por participantes locais enfraqueceu a encenação. Paira essa impressão. Há certa irregularidade entre as cenas, fragilidades não intencionais. Mantém-se, porém, uma estrutura robusta o suficiente para que a plateia possa vislumbrar mecanismos comuns de cerceamento e controle da liberdade.
Vislumbramos de onde partem as justificativas para a criminalização das torcidas organizadas, a pacificação dos menos favorecidos, a privatização e gentrificação dos espaços. Tudo soa estranhamente familiar. Nós já conhecemos essa história. No Brasil do século 21, a lógica apontada por Roberto Schwarz em seu livro clássico continua a valer, persistem as “ideias fora de lugar”.
.:. Estádio foi apresentado na MITsp de 2 a 4 de junho de 2022, no Sesc Pinheiros.
Ficha técnica:
Texto: Mohamed El Khatib
Concepção e realização: Mohamed El Khatib, Fred Hocké
Com torcedores do Racing Club de Lens
Torcedores locais: Afonso Costa, Bárbara Lins, Carol Cax, Clarissa Ferreira Monteiro, Danilo Arrabal, Fellipe Sótnas, Gabriel Góes, Gabriel Pangonis, Izaa Robert da Silva Pinheiro, Joy Catharina, Julia Pedreira Monteiro, Lipe Lima, Luana Melo Franco Boamond Rodrigues, Lucas Reitano, Moni Bardot, Paulo Gircys e Pedro Massuela
Cenografia, iluminação e vídeo: Fred Hocké
Som: Arnaud Léger
Colaboração artística: Eric Domeneghetty e Violaine de Cazenove
Direção: técnica: Violaine de Cazenove, Jonathan Douchet, Fred Hocké e Arnaud Léger
Produção: Martine Bellanza
Difusão: Sylvia Courty
Administração: Alice Le Diouron
Imprensa: Nathalie Gasser
Fotos: Yohanne Lamoulère
Conselho editorial: William Nuytens
Uma produção Zirlib
Com o apoio da Fondation d’entreprise Hermès, no âmbito do programa New Setting, e do Fundo SACD Théâtre
Em coprodução com Théâtre Olympia, Centre dramatique national de Tours – Tandem Douai-Arras, Scène nationale, Festival d’Automne à Paris – Théâtre de la Ville, Paris – La Colline – Théâtre National, Châteauvallon, Scène nationale – Le Grand T, Théâtre de Loire Atlantique – Théâtre National de Bretagne – Théâtre du Beauvaisis – Scènes du Golfe – Vannes, La Scène – Musée du Louvre – Lens Résidences Le Quai – CDN Angers Pays de la Loire, la Ville de Grenay
Este espetáculo é apoiado pelo Consulado Geral da França em São Paulo
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.