Menu

Reportagem

Desprogramar dispositivos na FarOFFa do Processo

5.6.2022  |  por Maria Luísa Barsanelli

Foto de capa: Maurício Pokemon

Circuito alternativo que nasceu em torno das atividades da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a FarOFFa sempre se colocou por entre as frestas. Seja pelo seu caráter de festival paralelo, seja por experimentar formatos diversos ou mesmo pelo singelo jogo de palavras no nome – essa mistura do tempero brasileiro com o off, a ideia de alternativo.

É justamente pelas fendas que o circuito foi traçando seu caminho: testando formatos pouco usuais para a lógica de produção. Na sua primeira edição, em março de 2020, a FarOFFa – Circuito Paralelo das Artes de São Paulo reuniu 53 espetáculos, todos trabalhos que já haviam cumprido temporada. A contar pelas sessões de casa cheia (foram 5.462 espectadores em seis dias), a mostra já contradizia uma das regras de mercado, de que o sucesso de um festival estaria atrelado ao ineditismo da programação.

Poucos meses depois, com o setor cultural sentindo em peso as restrições da pandemia, veio a FarOFFa no Sofá, uma mostra on-line que olhava para frente a partir de uma perspectiva do passado. Revisitando registros em vídeo de produções antigas (algumas com quase três décadas), o circuito se debruçava sobre a memória como um dispositivo para imaginar futuros possíveis.

A gente entende a FarOFFa como algo aberto também, um lugar da capoeiragem, do jogo das incertezas, em que a gente nunca está no chão, está sempre no prestes. A gente tem que pensar que tudo o que os artistas fazem é mesmo uma grande farofa. E a farofa não é mistureba. Farofa é encontro de naturezas

Carmen Luz, cineasta e artista da dança

Seguiram-se encontros, edições que debatiam a produção em artes cênicas (a Ocupação FarOFFa) e, agora, chega a FarOFFa do Processo, que acontece de 6 a 12 de junho, em paralelo à oitava edição da MITsp. Dentre artistas que circulam pela cena alternativa presentes nesta edição estão Cia Mundu Rodá, grupo Tablado de Arruar, coletivA Ocupação, a performer Dodi Leal, o ator e diretor Robson Catalunha, Coletivo Legítima Defesa e a atriz Renata Carvalho. Os dois últimos também participaram da primeira edição, ao lado do coreógrafo Wagner Schwartz, da atriz e diretora Carolina Bianchi, da Cia. Les Commediens Tropicales e do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos.

Porém neste ano, dos 35 trabalhos na programação, apenas quatro estão “finalizados”. O foco aqui são criações ainda em processo, desde os estágios mais embrionários até projetos em vias de estrear.

Trata-se, mais uma vez, de mudar o olhar para os paradigmas da produção, explica Gabi Gonçalves, da produtora Corpo Rastreado, que realiza a mostra. “A lógica do mercado achata cada vez mais a ideia do processo, as nossas possibilidades, e traz a percepção de que seria possível criar cada vez mais em menos tempo. A gente está perdendo o hábito da sala de ensaio.”

A ideia, aqui, é encontrar a espetacularidade do próprio processo, diz Gonçalves, um olhar que está até mesmo nos espetáculos “finalizados” da programação: Manifesto transpofágico, de Renata Carvalho, Traved, de Dodi Leal, Involuntários da Pátria, de Fernanda Silva e Sonia Sobral, e Quando quebra queima, da coletivA Ocupação. São trabalhos que têm no seu cerne o princípio do “em construção”.

Esse conceito também se apresenta em forma de percurso. As três obras de Oliver Olívia que compõem a programação são uma espécie de contínuo que acompanhou a transição de gênero do performer. Não ela, escrita em 2020, fala do início de sua transição, ao lado do marido cis; Ele segue os primórdios de seu tratamento hormonal; e Culpa, a mais recente, ainda nos primeiros estágios de criação, traz Oliver ao lado de seus pais, numa elaboração afetiva com sua família após sua mudança de gênero.

Acervo pessoal A ação ‘Culpa’, a mais recente das suas três obras programadas na FarOFFa, ainda nos primeiros estágios de criação, traz registro do performer Oliver Oliva em criança ao lado dos pais, numa elaboração afetiva com sua família após sua mudança de gênero

“Eu acredito que os trabalhos são um processo. Transicionar de gênero pra mim moveu muitas coisas e foi muito interessante como cada etapa do meu processo não foi intencional, foi uma vontade de continuar”, diz o performer. “E, no teatro, o processo às vezes é até mais potente do que quando se tenta formatar. Vejo este como um ambiente mais fértil.”

O ambiente é não só o de cada produção, mas também um espaço de encontros. Toda a programação acontece na Oficina Cultural Oswald de Andrade, no bairro do Bom Retiro, zona norte de São Paulo, um dos poucos locais na cidade abertos a expandir a experimentação e os processos em artes cênicas. “Desde o começo, pensamos que seria importante ter um lugar, um espaço de troca”, diz Gonçalves.

Compartilhamento

Para fomentar essas trocas, também é preciso desprogramar alguns dispositivos. Afinal, assistir a um trabalho em processo requer uma mudança de olhar. Um olhar quase ingênuo, de criança, como define Carmen Luz, cineasta e artista da dança que apresenta na FarOFFa um trabalho bastante embrionário, A canção urbana de amor política. Fruto de suas colaborações com o músico André Muato, a obra entrelaça um relacionamento amoroso e desigualdades raciais.

“Eu nem gosto da palavra apresentação, eu prefiro a palavra compartilhamento”, diz ela. “Esta é não só uma possibilidade de ouvir das pessoas o que elas estão vendo e ouvindo. É uma oportunidade de que as pessoas construam dentro da gente.”

Divulgação Imagem ilustrativa de ‘A canção urbana de amor política’, trabalho incipiente em colaboração do músico André Muato com a cineasta e artista da dança Carmen Silva

“É um processo importante, que me fascina”, complementa a performer Fernanda Silva. Ela participa da programação com um trabalho de repertório, Involuntários da Pátria, baseado numa aula pública do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro sobre a complexa relação entre a população indígena brasileira e o Estado moderno; e também com Carangueja, obra em processo, feita em parceria com a atriz Tereza Seiblitz, que se debruça sobre questões do feminino, do antropoceno e da injustiça social.

São textos que, cada qual a seu modo, trazem uma perspectiva sobre o poder e discussões urgentes, diz Silva. “E aqui temos condições de testar nossos desejos ao lado de um espectador que pode contribuir. Não é o público passivo, que vai apenas receber. É dialógico, abre um espaço para a criação.”

O diálogo com o público deve se dar em especial logo após as sessões, quando serão abertos espaços para conversa. A ideia é que participe todo o tipo de espectador, de artistas a afeiçoados pelas artes da cena, além de programadores de festivais nacionais e estrangeiros, que vêm a São Paulo a convite da MITsp. Eles assistem aos trabalhos da MITbr, plataforma de internacionalização da mostra, e incluem no circuito a programação da FarOFFa.

Para Gabi Gonçalves, mostrar os trabalhos em criação a esses curadores é também buscar novos nichos. “Essa ideia do processo é algo que tem a ver com o entre – o que vai virar um trabalho do futuro. E isso pode encontrar reverberações nos mercados diversos.” Afinal, o processo de internacionalização é lento e é preciso ser persistente, diz ela. “A gente tem que tirar essa ideia de imediatismo da gente. Eu sei que é difícil, estamos sempre batalhando pelo pão do dia. Mas a palavra aqui é aproximação.”

Esse acercamento é o que também estreitou as relações da FarOFFa com as cenas nacional e internacional. Desde a primeira edição, a mostra foi convidada a eventos em outros países e até fez uma participação, no ano passado, dentro do Festival Santiago a Mil, no Chile, levando alguns trabalhos brasileiros.

A trajetória da mostra vem repleta de frutos, mas também de algumas incertezas. Fugir da lógica de mercado significa às vezes contornar a falta de recursos. Para que a FarOFFa se realize, é preciso que as produções sejam financeiramente autossuficientes. Quaisquer custos excedentes são abraçados pela Corpo Rastreado, afirma Gonçalves.

Gau Saraiva Atuante e dramaturga Dodi Leal em ‘Traved’, performance em VR (realidade virtual) que interroga artisticamente o estatuto das biotecnologias da cena atual, sob direção e roteiro de Robson Catalunha, uma das criações “finalizadas” da FarOFFa

A garantia, diz ela, é a troca entre os artistas e a artesania do processo, desde o pensamento curatorial em rede – uma seleção compartilhada, em que um artista indica outros tantos – até o programa da mostra, que neste ano reúne cadernos de artistas, com fotos e anotações, todos impressos em xérox.

“A gente entende a FarOFFa como algo aberto também, um lugar da capoeiragem, do jogo das incertezas, em que a gente nunca está no chão, está sempre no prestes”, comenta Carmen Luz. “A gente tem que pensar que tudo o que os artistas fazem é mesmo uma grande farofa. E a farofa não é mistureba. Farofa é encontro de naturezas.”


FarOFFa do Processo

6 a 12 de junho

Grátis

Oficina Cultural Oswald de Andrade (Rua Três Rios, 363, Bom Retiro, São Paulo, tel. 11 3222-2662)

Programação em www.faroffa.com.br

Jornalista, formada pela UnB - Universidade de Brasília. Trabalhou em veículos como Correio Braziliense, G1, Galileu e Folha de S.Paulo, onde foi repórter de teatro e editora-assistente do caderno Ilustrada. Atualmente, integra o júri do Prêmio Shell-SP e produz conteúdo para festivais e instituições, como Sesc-SP, MITsp - Mostra Internacional de Teatro de São Paulo e Pro Helvetia - Fundação Suíça para a Cultura.

Relacionados

‘De mãos dadas com minha irmã’, direção de Aysha Nascimento e direção artística e dramaturgia de Lucelia Sergio [em cena, Lucelia Sergio ao lado de dançarinas Jazu Weda e Brenda Regio]