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Artigo

‘Trava bruta’ e figurino-entranhado

8.6.2022  |  por Amabilis de Jesus

Foto de capa: Alessandra Haro

Todos, todas e todes vieram  em seguida. Leonarda já estava lá. E é verdade que era bruta, uma força bruta. Ácida. Puro escárnio, e palavras cortantes. Palavras-ponta-afiada. Lançava-as. Tratava-se de um treinamento constante. Tratava-se de uma metodologia. Tratava-se de resiliência. Ou nada disso Chegou lapidada. Entendemos depois. Chegou pronta. Emancipada. Cedo. Antes que as teorias todas nos fossem familiares.

Leonarda Glück estava aluna e eu, professora, quando nos conhecemos no início dos anos 2000. Estávamos, por pouco tempo. Logo me sentaria em uma das cadeiras da plateia e mudaria completamente de posto. No anonimato – da plateia – ia me tornando uma testemunha. Aquela testemunha participante de que fala o filósofo pernambucano Evaldo Coutinho (1911-2007, autor de Ser e estar em nós, Perspectiva, 1980), quando “Eu próprio me contemplo sob a acepção de cultivar a véspera do não-ser”. Meu vulto, na escuridão, fundindo-se a outros vultos, inexistindo, em renúncia de si para formar a existência do restante do universo. O universo ali criado por Leonarda. Depois voltando já entremeada a outros corpos, sem nenhuma distinção entre ficção e realidade.

Parte das dramaturgias de Leonarda Glück é feita de adaptações e apropriações de obras clássicas, com certos ajustes, oferecendo às mulheres posições de decisão. Vale o uso de metalinguagem,  colagem, sobreposição, piadas, frases feitas, paródias, citações diretas, contradições. Do rocambolesco aos manifestos, das bulas de remédios à filosofia clássica, dos folhetins de moda, letras de música, discursos públicos, tratado sobre a mecânica de um motor a combustão às teorias recentes, não importa. Leonarda é voraz. Devora tudo. Reorganiza tudo. É inconformada

Parte de suas dramaturgias é feita de adaptações e apropriações de obras clássicas, com certos ajustes, oferecendo às mulheres posições de decisão. Vale o uso de metalinguagem,  colagem, sobreposição, piadas, frases feitas, paródias, citações diretas, contradições. Do rocambolesco aos manifestos, das bulas de remédios à filosofia clássica, dos folhetins de moda, letras de música, discursos públicos, tratado sobre a mecânica de um motor a combustão às teorias recentes, não importa. Leonarda é voraz. Devora tudo. Reorganiza tudo. É inconformada.

Em As três irmãs: um melodrama rocambolesco em quatro capítulos (2012), adaptação da obra do russo Anton Tchékhov, traz em cena as irmãs Olga, Macha, Irina e, por acréscimo, a Irmã Avulsa, personagem incumbida do alinhavo do texto sob um tom jocosamente marxista. Esta pode ser uma das estratégias. Infiltra-se ela mesma entre as personagens. Personagens/alter-ego. Ao menos foi o que entendi nesses anos todos de convivência. Sai do futuro, estaca-se em um ponto qualquer da história do teatro e faz seu serviço: mostra outras saídas. Elétrica (2002) não é mais a Electra de Sófocles ou de Eurípides. Talvez seja um pouco de Carl Jung, o pensador suíço dos arquétipos. Mas, ao cabo, é a leitura psicanalítica das subjugações das mulheres, por Leonarda.

Leonarda é justiceira. Ou nem tanto. Coloca os/as/es personagens para lutar e assiste de longe a carnificina, rindo, ou refletindo entristecida sobre o que não deu certo com a raça humana. Cutelo assassino: uma tragédia grega de atrocidades (2016), que discute o fim do relacionamento entre Amygdalota e Tartarian, tem a seguinte sinopse:

Tudo é posto em xeque: a dominação cultural, tecnológica e de gênero.
Após mais uma tentativa de dominação através da cultura, do sexo e do território de um ser social sobre o outro, ambos chafurdam e patinam nos papéis de dominador(a) e dominado(a). Na busca pelo reconhecimento entre os gêneros, Amygdalota e Tartarian descem ao Hades.

Sim, tudo é sobre dominação. Iracema 236ml – O retorno da grande nação Tabajara (2004) revisita a obra de José de Alencar para mostrar a Iracema convertida em produto envasado, e as relações entre colonizador e colonizado na formação da cultura brasileira.

Lenise Pinheiro Atriz, dramaturga e diretora curitibana radicada em São Paulo, Leonarda Glück em ‘Jesus vem de Hannover’ (2008), junto à Companhia Silenciosa, da qual foi cofundadora
Elenize Dezgeniski Glück em ‘Los juegos provechosos’, em colaboração com Giorgia Conceição e Henrique Saidel na Companhia Silenciosa

Outras de suas dramaturgias partem de temas ainda mais incomuns. Leonarda vasculha submundos: da religião, das relações entre Estados, a crise humanitária, as guerras todas. E denuncia. Proletariado digital, questões do meio ambiente. Tudo. Nada lhe fica alheio. Bandulho  (2003). A visita da Velha Joana (2003). O cavalo de bronze e o domador de circo (2003). Veja como Moisés está fugindo (2003). Frederico Barba Ruiva (2004). O faqueiro de Górgona ou Górgonas e as mil facas encantadas (2005). Mecânica (2006). El murciélago desenfrenado (2007). Jesus vem de Hannover (2008). Los juegos provechosos (2008). Rebecca ou David começa a babar (2010). Obras levados à cena em parceria com a Companhia Silenciosa.

Esgarça os códigos teatrais, tenciona-os até os limites, e arrebenta-os. Frases curtas, rápidas, absurdas, nonsense. Solilóquios. Mesa de debate com trocas de ofensas. Falsos trailers. Planilhas de Excel. Programas televisivos. O teatro é sempre a moldura.

Na escuridão da plateia conheci e me misturei às personas que Leonarda fez existir. Montgomery Marcelino Jesuíno de Jesus, Harold, O Furão, Mimi, A Maníaca e Merga, Avdótia Romanovna, Afanassi Ivánovitch Vakhrúchin, Pulkéria Alieksándrovna, Nikodim Fomitchi, Górgona Marfa Pietrovna. David e Francis. E tantos/as/es que me compuseram, que me formaram, entre presidentes, ciborgues, amásios, dona de casa, mecânico, eletricista e pessoa qualquer.

As palavras incrustadas em mim. Também aquelas lidas em seu blog Leonarda Glück’s Mildness, com postagens de 2005 a 20017. “Acordei, e parecia que não era esse mundo. E se a tecnologia estivesse mentindo? Nós bem sabemos que as conexões humanas são falhas. Falhas como alunos faltosos. Fala-se muito pouco sobre isso”. Incrustados em mim os títulos de peças e títulos de atos. Ato 01 – Sabonetes e Granadas. Ato II – Os Primitivos Cristãos ou Hakenkreuz. Ato III – Criação de Carneiros e Cavalos. Ato IV – Babilônia já caiu. Ato V – Monsieur Lecoq. Ato VI – Stting Bull. Ato Final – Os Mimos da Polônia, de Stoccarda (2016).

Passei a ocupar os camarins e tirei-lhe as medidas. Cada canto de seu corpo. Cobri seu corpo. Burlescas (2009), Valsa n° 6 (2012) e Dalton cabaret (2016). Florrie, a importância extrema (2011), escrita e dirigida por ela, para a qual fiz os figurinos usados por Clarissa Oliveira. E em Cabaret macchina (2018) fui interlocutora e contrarregra em cena. Nos camarins, sempre a mesma saudação: “Hello, is it me you’re looking for?” (“Olá, sou quem você está procurando?”), trecho da música de Lionel Richie. Depois de pronta, olha-se no espelho e pergunta-me: “Estou lindra?”. “Sim, está lindra”, respondo.

Leonarda é a grande Diva. Que seja feita a retratação. Invade o proskênion do palco grego e sua corpa-mulher-trans diz ao público umas boas verdades. Caminha até a ribalta, posta-se à luz, ajeita os cabelos, ajeita o microfone e inicia a leitura de seu manifesto Léo Glück live in Moscow:

Será estar preso dentro da máquina uma coerção tão inexpugnável assim? Guardar a memória das operações de corte e exclusão é a única base sociocultural a que devemos estar intimamente ligados para poder desenvolver o que nossa falha natureza tentou nos legar?

Mariama Lopes A artista em ‘Cabaret Macchina’ (2018), produção do coletivo da Casa Selvática, do qual é cofundadora
Mariama Lopes Cena do início da intervenção ‘Cabaret Macchina’ na praça Rui Barbosa, dentro da programação do Festival de Curitiba de 2018

Era o ano de 2008. Ou 1901. Ou meados da década de 410 a.C. Ou 2025. Nunca se sabe ao certo. E segue a leitura:

Meu sangue, mórbida impregnação da história, continua o mesmo. E da mesma cor.

Minha mente adapta-se ao novo. Meu corpo submeteu-se a voluntárias redefinições e involuntários tratamentos. Meu sexo sempre foi o feminino, que, em alguns dos desajustados compassos da frágil biologia perdeu algumas características e ganhou outras, inefáveis e prezadas.

Leonarda-performer-alienígena-futurista. Desce elegantemente de sua nave. É dominatrix. Se preciso, pratica pole dance. Escala prédios, se preciso. Que nunca lhe falte um espartilho a contornar a silhueta! Que nunca lhe falte os brilhos, o glamour! Leonarda é humana entre alienígenas. Olha em volta e tenta mudar o cenário, tirar o mofo, as camadas encalacradas. Varre a poeira, ajeita os cabelos, ajeita o microfone e sussurra: “Meu gênero é o que te apresento no momento, e — ADVIRTO — ele pode, a qualquer instante, mudar”.

Vou mudando também. Inicio os estudos de doutorado. Estou cismada com uma coisa, e faz tempo. Sempre cobri os corpos, mas todos corpos-fantasmas, preexistentes na literatura. Tiro as medidas, toco os corpos-atuantes, mas deles pouco conheço. Penso em modos de atravessá-los, marchetá-los, perfurá-los, alguma coisa que me prove as suas existências, que interfira em seus estados, que os presentifique. Figurinos-penetrantes, concluo. Em 2010. Estou que é só dor. Não quero as peles extras, a superfície. Quero percorrer as veias, pairar no átimo, na porção mínima. E penso em Leonarda.

Mais tarde, volto à escuridão da plateia. Quarta-feira, 6 de abril de 2022, 19h. Leonarda é Trava bruta. “Boa noite, senhoras e senhores. Entre nós não há um são. Nesta e em outras noites. Para eu estar aqui esta noite alguém precisou morrer”. Percebo que alguma coisa está diferente. “É preciso ter o coração aberto para entender o que eu vou falar aqui. Para entrar nessa jornada. É preciso estar atrás dos olhos do outro. É preciso tentar entender o outro. E amá-lo”.

Sinto uma vontade imensa de chorar. Não está bruta. Não está guerrilheira. As palavras mais mansas. Leonarda adiantou-se em tudo, pulou a fase da infância no teatro, pois tinha urgência. Está que não aguenta mais. Tenta outra estratégia: diz que não vai falar e fala. A lista de assuntos é grande. E os assuntos são fortes, trágicos, sérios, repulsivos, revoltantes. Lança-nos suas palavras-ponta-afiada. É certeira. E por fim, nem é bruta. E por fim, é guerrilheira.

Sentada na escuridão da plateia vejo Leonarda-Trava-Bruta usando um vestido preto com detalhes em vermelho[1]. Retira a parte debaixo do vestido. Depois, retira a meia-pele que lhe cobre o rosto. Retira a outra parte do vestido. Surge um corpo modelado por uma roupa, em segunda-pele, com enchimentos no busto e no quadril, e com os mamilos pintados. Um corpo-prótese. Não se despe dele por completo. Não é um corpo-personagem, um corpo-ficção. O corpo-prótese está entranhado, não se aparta mais. Talvez o contrário: o corpo-prótese-Leonarda é pura invenção, e ela adverte: a qualquer instante pode mudar.

Leonarda é mesmo uma criança terrível.


[1] Figurino de Fabianna Pescara e Renata Skrobot.

Divulgação Em ‘Burlecas’ (2009), pela Silenciosa
Divulgação Em ‘Valsa nº 6’ (2012), visita ao universo de Nelson Rodrigues

Notas:

Sobre a atuação de Leonarda Glück na Companhia Silenciosa, em parceria com Henrique Saidel e Giorgia Conceição, indico:

SILVA, Amabilis de Jesus. Companhia Silenciosa: dos baldios pastos de Curitiba para vossos corações ou a arte do superabundante”. In: TORRES  NETO, Walter Lima. À sombra do vampiro: 25 anos do teatro de grupo em Curitiba. Curitiba, Kotter, 2018.

Sobre a atuação de Leonarda Glück no Grupo de Investigação Cênica Heliogábalus e com o coletivo Selvática Ações Artísticas, à frente da Casa Selvática, indico:

SILVA, Amabilis de Jesus; SAIDEL, Henrique. Heliogábalus e Selvática: arte, resistência e quartzo rosa”.  In: TORRES NETO, Walter Lima. À sombra do vampiro: 25  anos do teatro de grupo em Curitiba. Curitiba, Kotter, 2018.

Sobre o espetáculo Valsa n° 6, dirigido por Gustavo Bitencourt, indico:

SILVA, Amabilis de Jesus.  Corpos indóceis e suas práticas políticas. In: VIS: Revista Eletrônica do Programa de Pós-graduação em Arte da Universidade de Brasília, v.17, n1, 2018.

Serviço:

Trava bruta

Quarta (8), às 21h, e quinta (9), às 17h, na programação da MITbr – Plataforma Brasil, extensão da MITsp

Teatro João Caetano (Rua Borges Lagoa, 650, Vila Clementino, tel. 11 5573-3774)

R$ 10 a R$ 20, pela plataforma Sympla, mais taxa

70 minutos

18 anos

Alessandra Haro Em ‘Trava bruta’, Glück parte de sua experiência transexual para conceber um manifesto cênico que propõe uma ponte e também um contraponto entre o contexto artístico e a atual conjuntura sociopolítica do Brasil no campo da sexualidade

Ficha técnica:

Trava bruta

Criação, texto e interpretação: Leonarda Glück

Direção: Gustavo Bitencourt

Direção de produção: Igor Augustho

Trilha original: Jo Mistinguett

Luz: Wagner Antônio

Assistente de iluminação: Dimitri Luppi

Criação em vídeo e projeções: Ricardo Kenji

Figurino: Fabianna Pescara e Renata Skrobot

Fotografias: Alessandra Haro

Realização e produção: Pomeiro Gestão Cultural


Doutora em artes cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestre em teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), licenciada em artes plásticas pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Desde 1996, professora no colegiado de artes cênicas da Universidade Estadual do Paraná - Faculdade de Artes do Paraná (Unespar - FAP), nas disciplinas de figurino, cenografia e estudos da performance. Também atua como figurinista em parceria com diversos grupos de teatro, teatro de animação, dança e música.

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