Reportagem
27.2.2024 | por Teatrojornal
Foto de capa: Mariana Ser
As artistas Dione Carlos, Lucelia Santos (Cia Os Crespos) e Naruna Costa (Grupo Clariô de Teatro) colocaram em perspectiva a cena negra, o trabalho em grupo e a atuação desde as bordas da cidade no segundo encontro da Roda de Memória do Futuro, iniciativa do Teatro da Universidade de São Paulo, o TUSP da rua Maria Antônia.
Rupturas e assertividades territoriais, temáticas e estéticas em torno da prática, do pensamento e da relação com os públicos foram alguns dos pontos abordados em suas falas na noite de 27 de março de 2023, emblematicamente Dia Nacional do Circo e Dia Mundial do Teatro.
O professor Luiz Fernando Ramos (ECA-USP) idealizou o ciclo, fez a mediação e nomeou esse debate de O cordão de ouro da periferia, em alusão à passagem de gerações entre as atrizes Maria Jacinta e Cacilda Becker no início da década de 1940, no Rio de Janeiro, conforme incorpora a dramaturgia de Estrela brazyleira a vagar – Cacilda!! (2009), de José Celso Martinez Corrêa, junto ao Oficina.
Leia a seguir a transcrição editada do segundo de nove encontros ocorridos entre março e maio do ano passado a fim de olhar no retrovisor das últimas duas décadas e ao mesmo tempo lançar miradas ao horizonte.
Luiz Fernando Ramos
Essa é uma iniciativa do TUSP para tentar trazer as pessoas da classe teatral, que fazem teatro em São Paulo, que gostam de teatro, para essa conversa em torno da memória dos últimos 20 anos [tomando-se por referência o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, vigente desde 2002] e bem como pensar os próximos 20. O tema de hoje foi pensado pela convidada recém-premiada com o Prêmio Shell de dramaturgia, a Dione Carlos [por Cárcere ou Porque as mulheres viram búfalos, peça escrita em 2023 junto à Companhia de Teatro Heliópolis]. Na conversa com ela por telefone, eu tinha um título e mudei por sua sugestão. A ideia aqui é a gente fazer uma discussão sobre a produção teatral na periferia, que abriu uma nova perspectiva na cena da capital com reverberações na região metropolitana.
É claro que no início do Fomento já tinha havido uma grande mudança de paradigma na cultura de São Paulo e do Brasil com a inflexão que representou o Racionais MC’s na realidade cultural brasileira. Foi uma virada de página, uma mudança que fez uma espécie de inversão: de repente a periferia virou o centro e o centro virou periferia. Eu cansei de ver garotos de classe média, de colégios ricos, incorporando completamente a linguagem, os hábitos e as falas que os Racionais trouxeram para a cena cultural e eu acho um exemplo maravilhoso de potência da periferia.
Os coletivos de saraus, que é o movimento literário das periferias, foi nascendo e se fortificando em espaços muito populares como bares, quintais de algumas casas, que foram determinando que ali era possível, sim, inclusive em horários durante a semana, no fim do expediente, fazer poesia, falar poesia, escrever poesia, mostrar, desenvolver uma cena de teatro, discutir dramaturgia, discutir literatura. A partir desse movimento uma rede foi criada de maneira simultânea, dando amparo de forma muito contundente ao teatro nas bordas da cidade, que é como a gente chama. E aí, ainda bem que olhos críticos já desse teatro consolidado, desse teatro clássico, puderam observar e legitimar esses movimentos que são movimentos sérios, um teatro de alta qualidade, sim
Naruna Costa, Grupo Clariô de Teatro
Mas de fato no campo do teatro, quando o Fomento começou, o que havia era uma memória do passado – que lá nos anos 1940, na Espanha, o García Lorca tinha lotado os caminhões; o CPC [Centro Popular de Cultura da UNE, a União Nacional dos Estudantes], nos anos 60, tinha essa ambição, esse desejo de ir para a periferia –, mas era tudo muito encostado, não tinha grau de realidade. E a partir do Fomento começaram a surgir os grupos que eram contemplados e começaram a desenvolver os trabalhos nas suas comunidades. O [diretor Luiz Carlos] Moreira, lá com o Engenho Teatral, foi o pioneiro, e existem muitos outros exemplos.
O espírito da noite de hoje é um pouco resgatar essa história e trazer pessoas que possam falar desse ponto de vista, numa situação de estarem senhoras dessa situação. O nome que nós demos para essa conversa é O cordão de ouro da periferia. Eu preciso explicar, na verdade é uma invocação que vem de uma conversa e de uma constatação que está registrada no texto Estrela brazyleira a vagar – Cacilda!! (2009), do Zé Celso, do Oficina, existe o momento que é quando Cacilda Becker está no Rio de Janeiro e Maria Jacinta, que era uma atriz brasileira das antigas, passa para a Cacilda o cordão de ouro. E isso tem uma espécie de transmissão de poder, de transmissão de tradição. Acho linda essa coisa do cordão de ouro e aí tinha pensado Cordão de ouro da periferia, na verdade tinha um nome anterior que era Ações afirmativas e o cordão de ouro da periferia. E a Dione falou: “Não, tira ações afirmativas”. Então, feito esse esclarecimento, a gente vai conversar, a gente vai ter as nossas três convidadas. A ideia é que elas disparem uma conversa e espera-se que todo mundo aqui presente participe. Vou apresentá-las.
A Dione Carlos é dramaturga, roteirista, atriz e curadora. Ela tem 25 peças de teatro encenadas no Brasil e em países como Portugal, Inglaterra, Bélgica, México, Alemanha, Bélgica e Colômbia. Tem seis livros publicados. Ministra oficinas em diversos espaços culturais como roteirista. Atua em canais como Disney Plus, GNT e Sesc TV e atualmente é roteirista contratada da Rede Globo, onde desenvolve séries e novelas e, como disse a pouco, acabou de ganhar o Prêmio Shell na última terça-feira [21 de março], de dramaturgia, o que não é pouca coisa.
A Lucelia Sergio é atriz, diretora, dramaturga, roteirista, crítica de arte e arte educadora. Ela é formada pela EAD, Escola de Arte Dramática da USP, em 2010. Em 2005, cofundou a companhia de teatro negro Os Crespos, com a qual investiga as relações de sociabilidade racial no Brasil. Escreve e compõe o grupo curatorial da revista de teatro negro Legítima Defesa e é uma das idealizadoras das Segundas Crespas, encontros de formação e intercâmbio de artes negras. Dirigiu e roteirizou o curta Dois garotos que se afastaram demais do sol, vencedor do prêmio de melhor curta-metragem pelo júri popular 29º Festival Mix Brasil da Cultura da Diversidade.
E a nossa terceira convidada é a Naruna Costa, que é atriz, compositora e diretora, formada também na EAD, soube que são quase contemporâneas… É cofundadora do Grupo Clariô de Teatro, do Espaço Clariô e do grupo de pesquisa musical Clarianas. Interpretou a cantora Elza Soares na montagem Garrincha, do diretor norte-americano Robert Wilson; foi indicada ao prêmio APCA de melhor atriz de 2017 com a personagem Antígona, da montagem produzida pelo Ágora Teatro. No cinema, atuou em Marighella, de Wagner Moura; Anna, de Heitor Dhalia e Nara Mendes; Cano serrado, de Erik Castro. Protagonizou filmes como Causa e efeito, de André Marouço, e Toro, de Edu Felistoque, além de participar de longas como Mundo deserto de almas negras e Hoje eu quero voltar sozinho. Na Netflix, protagoniza a série Irmandade, ao lado de Seu Jorge.
Tanto pelos artistas que estão na ponta dos casos, vivendo a realidade do teatro brasileiro, da mídia brasileira, do cinema e da televisão, e que então podem falar sobre essa questão que eu estou colocando e também sobre outras, mas o que eu acho interessante a gente abordar é essa questão, que é O cordão de ouro da periferia, e eu acho que a gente pode começar pela Naruna, por favor.
Naruna Costa
É importante estar aqui, obrigada. Eu sou Naruna, acredito que o Clariô de Teatro é o que me traz com toda a certeza para essa mesa. É um espaço que nasce na periferia, em Taboão da Serra, que é uma cidade ao lado da cidade de São Paulo, mas é uma cidade que não é contemplada, por exemplo, pelo Programa de Fomento ao Teatro. Acredito que a minha fala vai de alguma maneira contribuir por outra perspectiva, tanto do Arte contra a Barbárie – porque que o meu grupo nasce mais ou menos nessa mesma época em que se inicia esse movimento. A gente não pode concorrer ao Fomento porque não somos da cidade de São Paulo, então nosso modus operandi é outro, é uma outra perspectiva, realmente.
Então, é um coletivo [o Grupo Clariô] que nasce em 2005, com essa ideia realmente de tentar fazer um diálogo com o teatro a partir da perspectiva territorial. Quase todos nós éramos da cidade de Taboão ou próximos, e queríamos dar conta de um teatro que desse o mínimo de narrativa a respeito daquele coletivo, daquelas pessoas. A maioria de nós estava em formação, em escolas de teatro diferentes, eu na EAD, outras pessoas na Escola Livre de Teatro [Santo André] ou na FPA [Faculdade Paulista de Artes], enfim, outras escolas de teatro que hoje formam bastante gente também da periferia. Mesmo nesses espaços a gente não conseguia encontrar produções, dramatúrgicas especialmente, que dessem conta de histórias parecidas com as nossas, corpos em sua maioria pretos e especialmente periféricos.
Então a gente resolve, ao invés de tentar fazer o movimento que era mais comum, sair da periferia e tentar pensar em algum grupo ou um projeto na cidade de São Paulo, a gente arriscou a assentar as nossas criações por lá, ainda sem perspectiva de dramaturgia, porque no nosso coletivo não tínhamos essa figura do ou da dramaturga. A gente resolveu esperar e começar um processo de pesquisa que foi bem longo, não havia dinheiro de edital, a ideia de um grupo consolidado e muito menos a perspectiva de entrar em uma lei de fomento. E a gente começou uma pesquisa que partia do princípio de nossas próprias histórias.
Essa pesquisa desembocou numa característica do Grupo Clariô, que tem a ver com o diálogo relacionado à precariedade. Porque, sim, éramos um grupo que tinha a precariedade como a maior realidade estrutural e no sentido de formação também. E aí a gente passa a usar a precariedade como forma. Todos os elementos que eram dificultosos, a gente resolveu fazer disso um objeto de cena, de pesquisa, de entendimento do que poderia ser ético, certo. Desde com a iluminação que a gente tinha de utilizar da nossa própria tecnologia periférica, criando uma estrutura de iluminação natural ou com lâmpadas caseiras com latão de tinta e forrado de papel alumínio. Desde essa estética, essa criação, uma mesa que era de interruptores, então esses interruptores invadiam as nossas cenas, os sons, porque não era possível criar uma mesa com dimmer [dispositivo para controle da iluminação], desde esse pensamento, até o pensamento de uma possível dramaturgia que não ia partir de uma dramaturgia clássica de teatro, mas, sim, de algo que a gente reconhecesse como uma fala que desse conta de nossa narrativa.
No momento em que a gente encontrou o Marcelino Freire, que é um escritor de contos e poesias [pernambucano morador na capital paulista desde 1991], e a partir dessa relação com o material que ele apresentava – na minha opinião, um dos maiores escritores brasileiros –, a gente entendeu que criaria uma dramaturgia que seria própria daquele espaço, daquele território, daquelas figuras que estavam ali, em sua maioria mulheres em cena. E aí nasce o Hospital da gente, que é o nosso primeiro trabalho, isso em 2008, com essa perspectiva, eu não diria original, mas totalmente relacionada à nossa experiência. A gente montou um espetáculo com R$ 2 mil.
Realmente não tinha essa ideia e essa perspectiva de um edital, de um modus que foi se configurando de uma forma bem mais estruturada, mas isso gerou para o Grupo Clariô uma linguagem, uma linguagem estética, um jeito de falar, que era longe de uma divisão de plateia. Porque o espaço proporcionava uma presença do público muito próxima aos nossos corpos. Nossas cenas tinham de ser criadas sem essa relação de quarta parede, e ainda que a gente quisesse, isso era impossível.
Com relação a temporada, no nosso espaço em Taboão tem enchente, então no nosso cartaz do espetáculo vinha um aviso: “Se chover, não vá, risco de enchente!”. E também era impossível assistir ao espetáculo se chovesse, porque ele era em parte a céu aberto, a gente usava muito o quintal porque era o maior espaço da casa.
Estou fazendo um resumo bem rápido para vocês entenderem que, apesar dessa estrutura quase amadora – e muita gente se relaciona até hoje com o Grupo Clariô de Teatro com uma ideia de teatro amador, hoje uma escolha estética –, era realmente um recorte que a gente estava fazendo naquele momento, decididamente, [a fim] de romper a lógica de consumir uma cultura de alta qualidade nessa perspectiva grandiosa e metropolitana.
A gente queria inverter essa lógica e isso reverberou de forma muito positiva. Realmente, todas as pessoas que tiveram acesso ao espetáculo, que começou muito tímido, mas que foi crescendo e ganhou força, entenderam que existia ali uma linguagem que estava sendo apresentada e isso fortaleceu outros coletivos que também estavam sendo criados naquele momento, como Os Crespos, por exemplo, que estrearam um espetáculo no nosso espaço antes de a gente estrear; o coletivo das Capulanas [Capulanas Cia de Arte Negra], que é um grupo de teatro de mulheres pretas do extremo sul que também observou aquele movimento, se inspirou nesse movimento, consolidou seu espaço no quintal que elas chamam de Goma, na Goma das Capulanas, e tem um trabalho extremamente consolidado, apoiado pela Lei de Fomento, até hoje, e outros coletivos. Assim nasce o Clariô e a minha história com o teatro profissional, saindo dali e ainda em contato com a escola de teatro [formada pela Escola de Arte Dramática, EAD, na Escola de Comunicações e Artes da USP].
Eu acredito que esse movimento que se inicia ali desde 2005 apresenta toda essa forma com que vem amparado – é um depoimento bem pessoal – ao movimento de cultura periférica relacionado aos saraus. Um movimento muito interessante que vai ganhando força nas duas últimas décadas junto com essa escuta também do Arte contra a Barbárie, desse movimento de teatros de grupos. Mas independentemente do contato, porque na periferia não havia esse contato, as discussões, as conversas sobre a Lei de Fomento ao Teatro, os debates sobre o teatro de grupo naquele momento ainda não agregava completamente a periferia…
Engraçado que, curiosamente, esse movimento era paralelo, os coletivos de saraus, que é o movimento literário das periferias, foi nascendo e se fortificando em espaços muito populares como bares, quintais de algumas casas, que foram determinando que ali era possível, sim, inclusive em horários durante a semana, no fim do expediente, fazer poesia, falar poesia, escrever poesia, mostrar, desenvolver uma cena de teatro, discutir dramaturgia, discutir literatura. A partir desse movimento uma rede foi criada de maneira simultânea, dando amparo de forma muito contundente ao teatro nas bordas da cidade, que é como a gente chama. E aí, ainda bem que olhos críticos já desse teatro consolidado, desse teatro clássico, puderam observar e legitimar esses movimentos que são movimentos sérios, um teatro de alta qualidade, sim. O Valmir [Santos] está aqui e é testemunha desse movimento há muitos anos. Então é isso, em princípio.
Lucelia Sergio
Eu quero agradecer a oportunidade de falar sobre o meu trabalho, sobre as minhas ideias, uma oportunidade que não foi dada a muitas das minhas iguais. Então eu tenho de agradecer por ter direito a voz, agradeço a elas e a toda a minha ancestralidade aqui presente na minha fala.
Vou tentar fazer uma lógica porque acho que são muitas coisas a partir do nome, eu vou colocar a minha relação com o nome da mesa [O cordão de ouro da periferia]. Preciso dizer que venho de uma experiência que determina a minha fala que é Os Crespos, a minha definitiva escola e a minha possibilidade de existir aqui dentro desse sistema cultural onde o teatro se encaixa em São Paulo. Estamos falando de uma determinada cidade e de uma determinada forma de operar.
A companhia Os Crespos nasce dentro da Escola de Arte Dramática, que é uma escola tradicional, que tem muitas questões relacionadas a essa tradição, a essa fama da escola que está aí de alguma forma vinculada à experiência popular de muitas pessoas que são formadas pela escola em diferentes momentos históricos, pessoas muito populares do teatro, da televisão e do cinema, então isso faz com que a escola tenha uma determinada visibilidade.
Uma parte d’Os Crespos entrou na turma da Naruna em 2004 e uma parte na minha turma, em 2005, quando Os Crespos surge. Então Os Crespos e o Clariô nascem no mesmo momento histórico a partir de pessoas relacionadas também de alguma forma. A gente está vivendo ali um momento de Brasil, um momento em São Paulo que foi determinante, inclusive para a história hoje do Brasil. A gente estava ali no primeiro governo Lula [2003-2006], um momento que a gente tinha uma política pública muito importante, que era a esperança, e eu acho que ela continua sendo a política pública mais importante do governo Lula, então a gente tinha esperança, prospecção de futuro, uma coisa que ainda é bastante rara em alguns lugares do Brasil.
Eu venho desse lugar e a experiência d’Os Crespos é atravessada pela experiência da Escola de Arte Dramática. Toda a escola tem um modelo, um determinado padrão, ou vai construindo um determinado padrão. Então a gente vem de um estudo sobre o realismo, a importância do realismo, a importância da interpretação, uma discussão sobre o teatro contemporâneo, enfim, uma forma.
E a gente também é atravessado pela experiência de, no início do grupo, antes de estrear um espetáculo autoral, fazer parte de uma montagem de um alemão chamado Frank Castorf [o espetáculo Anjo negro de Nelson Rodrigues com a Lembrança de uma revolução: A missão de Heiner Müller, de 2006, ficou em cartaz duas semanas no Sesc Vila Mariana], que dirigia o Teatro Volksbühne à época [icônico espaço de Berlim inaugurado em 1914].
A gente é convidado pela ausência de negros nos grupos de teatro de grupo de São Paulo. Mesmo sendo ainda estudantes, que era uma coisa negativa para o Castorf, fomos convidados a integrar o elenco de uma peça que era uma ponte Brasil-Alemanha. Então nossa experiência está nesse lugar de encontro de corpos negros numa experiência escolar bastante seletiva para a minha turma: eram 650 inscritos para 20 vagas. Não sei contar hoje, mas era uma coisa realmente difícil de se conquistar, e a gente tinha uma experiência de uma turma, a turma da Naruna, de 20 alunos, cinco alunos negros. Estávamos num momento de esperança, de expectativa, mesmo sem políticas públicas ali na USP, de ações afirmativas para a racialidade, de um novo momento de Brasil, que para nós, nascidos nas décadas de 1970 e 1980, ainda não tínhamos experimentado.
Digo isso porque quando olho para o tema da mesa, acho importante, no meu caso, fazer uma distinção entre o que eu chamo de teatro negro e o que eu chamo de teatro periférico. Sim, nós, do grupo, partimos de uma experiência periférica que é marcante dentro do nosso trabalho, mas nós não temos uma relação direta com a periferia em São Paulo. Nós somos, quase todos que fundaram o grupo, pessoas que vêm das periferias de diferentes estados e lugares do Brasil, uma delas é sim da periferia de São Paulo, mas isso não marca a nossa experiência como determinante no aspecto de diálogo entre a cena e plateia. Isso é um dos nossos materiais, uma das nossas ferramentas de trabalho, porque ela marca nossa experiência, mas ela não é relacional. Acho muito importante deixar evidente, porque o teatro periférico lida com questões que se cruzam com as questões do teatro negro, mas que em algum momento elas se diferenciam no trato e na relação.
Tem uma questão n’Os Crespos e no teatro negro de uma forma talvez um pouco menos generalizada hoje em São Paulo – deve ter um número de grupos de teatro negro na cidade, assim, um verdadeiro jardim próspero florido –, mas que n’Os Crespos trata de uma transversalidade da questão racial. A gente lê a nossa experiência a partir de uma discussão da sociabilidade racial e dessa questão culturalmente discutida a partir da urbanidade, uma urbanidade que atinge de diferentes formas pessoas em diferentes territorialidades. Nesse sentido que eu acho muito importante frisar essa diferença, porque é muito diferente para nós estarmos inseridos dentro de um sistema central da cidade de São Paulo, e a diferença de estar em outras condições na periferia.
Então quero falar de um teatro negro que em 2005 era uma expectativa silenciosa de alguns estudantes de teatro negro espalhados por diferentes escolas, mas tínhamos uma cena de teatro negro muito mais individualizada na cidade de São Paulo e não coletiva. Em 2005, a gente conhecia um grupo de teatro negro da cidade, que era a Invasores [Invasores Companhia Experimental de Teatro Negro], da Dirce Thomaz, que tinha muita dificuldade em circular com seus trabalhos, em se constituir na cidade. E Os Crespos surge no mesmo momento do Fórum de Performance Negra [iniciativa do Bando de Teatro Olodum (BA) e da Cia dos Comuns (RJ)], que também nasce em 2005 em Salvador, num momento em que vários grupos de teatro e dança do Brasil estavam se reunindo para discutir políticas públicas para a arte negra. E a gente tem a oportunidade de estar no I Fórum de Performance Negra em Salvador, onde encontramos uma mobilização nacional que tenta pensar e pautar a necessidade de políticas públicas voltadas para a arte negra, na dança e no teatro. O fórum é também um espaço responsável pelo fortalecimento da cena negra em diferentes estados, principalmente porque é uma de suas pautas criar espaços para que os artistas se encontrem e discutam a arte negra.
A gente tem diferentes formas de fazer isso no Brasil. Em São Paulo, Os Crespos adotou um evento que a gente chama de Segundas Crespas (que já foi terça, quarta, quinta…), que junto com outros eventos próximos em outros estados (como a Segunda Preta, em Belo Horizonte; a Segunda Back, no Rio; a Cena tá Preta, em Salvador; e outras que estão nascendo por aí, como Rio Grande do Sul e Paraná e também no Vale do Aço, em Minas Gerais), a gente tem encontros que são espaços onde artistas negros discutem a sua arte, cada uma de um jeito. Nas Segundas Crespas a gente elege temas para se discutir e convida artistas e pensadores dessa arte, tanto do teatro como da dança, da performance, para falar sobre isso. Isso surge de uma demanda do Fórum de Performance Negra.
Mas o que eu queria frisar é um movimento que a gente viu acontecer na cidade de São Paulo que nasce não só com Os Crespos há 18 anos atrás, mas que vem se fortalecendo com outros grupos de teatro negro. Quando a gente surge há uma discussão na cena bastante primitiva sobre os temas desse teatro. A gente ouvia, por exemplo: “Mas não tem uma hora que o assunto vai acabar?”. É um momento em que a gente tratava da humanidade negra ainda como uma pauta de sobrevivência, uma pauta de discussão do racismo, como se o racismo fosse simples, né, da gente discutir em tão pouco tempo. A gente também tinha discussões como: “Mas um grupo só de atores negros?”. Essa questão do racismo às avessas, que também é bastante difundida no Brasil.
Por outro lado, a gente era um grupo de teatro que vinha da EAD, um grupo de teatro que tinha passado pela experiência de um diretor alemão, um grupo de teatro que tinha, portanto, algum interesse para a curiosidade dessa cena. E foi na brecha da curiosidade, na brecha da esperança, que a gente construiu a história d’Os Crespos. Em 2007, a gente vai estrear o Ensaio sobre Carolina, nosso primeiro espetáculo autoral, e a gente vai achar na Carolina Maria de Jesus eco para nossas palavras, a gente vai discutir uma coisa que para nós é muito importante naquele momento, porque o José Fernando Peixoto de Azevedo é o diretor do espetáculo e a gente tinha uma discussão ali sobre o racismo ser uma questão racial ou uma questão social. Então a gente vai para a Carolina e parte da experiência da favelização em São Paulo, da experiência da fome e da pauperização, para discutir a transversalidade da negritude nas questões de subalternidade, de subalternização no Brasil.
Nesse momento a gente vê uma transformação no cenário do teatro em São Paulo, porque a gente estreia no espaço do Teatro de Narradores, ali no Bixiga, na rua 13 de Maio, e temos um público no qual as únicas pessoas negras são a nossa família, a minha mãe, a tia de um, o irmão do outro e tal. E aí a gente estreia duas semanas depois no Espaço Clariô e aí a gente tem uma outra experiência de público. Enquanto no Bixiga as pessoas iam e choravam copiosamente, não conseguindo olhar para os nossos olhos durante o espetáculo, no Taboão elas riam, as pessoas se divertiam, as pessoas compactuavam com a gente de um outro lugar. E aos poucos fomos vendo esse público do centro de São Paulo também mudar. Vieram umas pessoas de uma cooperativa de catadoras chamada Carolina Maria de Jesus, não sei se ainda funciona, mas que era ali em Pinheiros, e que foram assistir porque viram uma matéria de uma página do Estadão que a gente ganhou, talvez por essa curiosidade, essa brecha da qual a gente veio. E essas mulheres levaram algumas mulheres da cooperativa, que levaram suas tias, suas primas, suas avós, e a gente foi vendo esse cenário se modificar.
Hoje quando vemos uma temporada de teatro negro, a gente vê fila do lado de fora, as pessoas não conseguindo entrar, a gente vê que todos os espaços culturais de alguma forma precisam dar conta de uma pauta negra mensal na sua programação. E isso foi um custo bastante alto criativo, político e de formação de público. Então hoje a gente tem um público negro que não é só público do teatro negro, é um público negro para o teatro. A gente tem uma discussão também sobre a potência dessa representação, ou os limites dessa representação, em cena. Construímos um público que discute se aquela personagem pode ou não dentro dessa sociedade ser representada desta ou daquela forma, por esta ou por aquela pessoa. A gente vai questionar blackface, a gente vai questionar personagens negras invisibilizadas em corpos brancos, questionar grupos de teatro com poucas pessoas negras em seu corpo de técnicos, questionar os espaços que precisam pautar esse teatro. Então a gente vai vendo uma modificação nesses 18 anos de história e vamos vendo esse espaço sendo modificado.
Fazemos também parte da história do Fomento. Somos o primeiro grupo de teatro negro a ganhar Fomento na cidade e, portanto, temos uma responsabilidade também com essa pesquisa, com o reconhecimento da pesquisa dentro do teatro feito por pessoas negras ou feito dentro da periferia. Há um reconhecimento dessa pesquisa, da potência dessa pesquisa e da sua necessidade, porque há demanda. Uma vez uma grande diretora de teatro de grupo falou: “Olha, eu não entendo, eu fui no outro grupo, ali na Pompeia, e tinha algumas pessoas ali numa reestreia de uma peça muito importante, que teve um grande impacto na cidade, eu venho aqui na Cia Livre e vejo 200 pessoas do lado de fora e 100 pessoas do lado de dentro, quando era para ter 40. O que está acontecendo?”. Então esse “o que está acontecendo” mobilizou a cena teatral e instaura uma nova discussão sobre o teatro brasileiro.
Ouso dizer, talvez seja óbvio, eu estou falando, estou com o microfone na mão, então eu posso contar essa história, tenho condições e vou contar apaixonadamente pelo meu ponto de vista. Acho que o teatro negro vai abrindo espaço para a discussão de outras pautas identitárias e essa junção de potências provoca uma nova discussão sobre o teatro brasileiro no cenário teatral. Acho que há um protagonismo, porque a gente discute protagonismo, discute representatividade e discute representação. Por muito tempo foi uma questão – juro que estou terminando –, conseguirmos fazer com que olhassem para esse teatro para além da fronteira política, para além do espaço de militância. Porque é fácil enquadrar a negritude num aspecto de uma caixa política e não enquadrar algum certo teatro branco. Aí a gente fica numa luta desigual de espaço, de reconhecimento de uma estética. A necessidade também de equiparar, equivaler algumas produções de teatro negro com produções não negras e pautando a qualidade por essa tradição. E aí a gente vai encontrar dentro do Sesc, por exemplo, várias brechas que dialogam com uma determinada tradição teatral e que vêm de alguma forma pautando os limites da nossa pesquisa.
Digo isso porque quando a gente vai entender o que é a representatividade do teatro negro hoje, a gente parte para algumas figuras, algumas pessoas, que são alçadas como representantes, mas a gente não tem uma força de representação coletiva muitas vezes. A gente vem começando a ver isso acontecer, bem devagar. Mas a força coletiva, a proposição coletiva, ela sempre é colocada num outro lugar, num teatro menor, considerado alicerçado a uma determinada militância. Ainda temos uma luta bem grande de abertura de espaço para nossa pesquisa estética desligada de um determinado padrão do que é teatro, do que é fazer teatro.
Acho que a gente vem mobilizando esse olhar, vem construindo num outro lugar, mas há algumas dificuldades básicas. Quando você alça determinadas pessoas e essas pessoas têm acesso a um dinheiro, a um lugar, a um espaço, você de determinada forma consegue alinhavar esse teatro com um teatro já aceito, instaurado, enquanto outras produções ainda têm de lidar com R$ 40 mil de um edital direto – um edital para arte negra em São Paulo é de R$ 40 mil. Ainda é necessário lidar com uma subalternização estética. Então, como a gente lida, como a gente tem desviado da subalternização estética ainda tem se alicerçado na nossa experiência ancestral de desvio, de brecha, de ginga, de materialidade circular, de produção, de aproveitamento, de resgate, ainda. Mas ainda é uma cena que tem muita dificuldade, porque ainda é equiparada sob um prisma. O que dita o que é arte no Brasil, em São Paulo, ainda limita bastante a produção desse teatro.
Dione Carlos
Obrigada por estar aqui. Sou dramaturga, trabalhei com muitas companhias de teatro. É importante dizer que preciso agradecer a essas duas mulheres aqui porque as estudei e hoje somos colegas e isso é muito interessante. Quando ingressei na SP Escola de Teatro, que é uma escola que me proporcionou conseguir estudar, porque tinha uma bolsa, o Kairós [programa de bolsas da instituição]. E importante falar dessa questão da formação, das escolas de teatro. Para mim fez muita diferença, foi um divisor de águas. Já existiam as companhias e quando eu entro nessa escola como bolsista e entendo que há uma arte que reflete a experiência da minha família, da minha própria vida e eu consigo me ver no que está sendo feito eu entendo que há um caminho. E esse caminho foi pavimentado por muitas pessoas e realmente, assim, louvemos as nossas mulheres artistas, porque geralmente elas que são invisibilizadas e são apagadas da história. Esse apagamento é construído, então é uma grande oportunidade estar aqui hoje e poder agradecer a vocês duas por terem pavimentado esse caminho para que pessoas como eu e tantas outras olhassem para o horizonte e vissem futuro. Uma vez vi Muniz Sodré [sociólogo e jornalista] falando no lançamento de um livro e ele disse que o futuro, ele não é tempo, ele é um lugar, um lugar que a gente constrói. E vocês construíram e estão construindo esse lugar, estamos construindo esse lugar, juntas.
Luiz Fernando
Que ano foi isso, Dione?
Dione
Em 2010. Tem um rapper, o Emerson Alcalde, um rapper maravilhoso, trabalha com slam, um artista múltiplo, incrível, como eu sou do Rio, ele era uma das pessoas que sempre diziam: “Você tem que assistir, você tem que conhecer o trabalho dessas companhias”. Porque é isso, a nossa formação, eu fui atriz por pouco tempo, tive de abrir mão da atuação por questões de amor, mãe, cuidadora, não sou só mãe, sou cuidadora, e acho também que a gente tem que falar mais sobre diversidade, a gente está falando pouco sobre isso, é uma das pautas urgentes. Acho importante aqui a presença da Didi [sua filha] e tudo o que aconteceu hoje para que a gente reflita sobre isso: como naturalizar as presenças, como abrir espaços para que as presenças estejam nos ambientes [Didi, pessoa autista, teve uma repentina indisposição antes do início da conversa e foi acolhida por Dione, restabelecendo-se minutos depois para permanecer o tempo todo ao lado da mãe – em uma postagem de fevereiro de 2024, a dramaturga relata como esse amor incondicional a fez assumir a escrita].
Mas voltando à questão da educação, eu passei pela SP Escola de Teatro, lá me formei, fui trabalhar como dramaturga e por sorte, mas também por empenho, atuei como uma dramaturga de grupos de teatro. E isso me emociona muito porque esse trabalho de grupo me formou, está me formando ainda, não terminou. Eu posso dizer assim, são 27 peças, mais da metade é de grupos de teatro, pessoas que ajudaram a fazer o Fomento, pessoas que são, digamos assim, a ponta, estão pensando esteticamente a arte negra, mas também essa arte teatral de uma maneira muito elaborada e não dividindo, porque acho que é a mesma coisa, acho que vocês entendem quando eu faço essa separação.
Para mim, a questão da formação como dramaturga atuando com grupos de teatro fez total diferença e faz, não consigo me imaginar não trabalhando com essas companhias de teatro. Não teria chegado aqui se não fosse, primeiro, a aposta, a confiança. Muitas me pegaram no começo, eu era uma dramaturga iniciante. Confiaram que eu faria uma dramaturgia à altura da pesquisa, porque a gente entendeu o que é um trabalho coletivo, um trabalho de grupo. Envolve muita pesquisa, são muitas horas, é muito material, é tese, artigo, debate. Eu brinco que existem 13 desejos quando você chega na sala de ensaio e você, como dramaturga, precisa lidar com esses 13 desejos e fazer o seu recorte, que chamam de poética isso.
É uma experiência avassaladora, intensa, e, voltando para as escolas, depois de ter estudado na SP Escola de Teatro, eu tive a oportunidade de virar professora de dramaturgia. Foi uma experiência que também faz parte da minha formação. Porque eu pude curar a aprendiz machucada que eu tinha sido, e isso foi muito importante. Eu fui muito feliz, mas também fui muito machucada, acho que é importante falar. Isso também está dentro das questões que vamos abordar hoje daqui para frente. Acho que a Naruna deu uma entrada, um prólogo, e eu estou pegando a bola. E a Lucelia falou uma palavra importante que é “potência”, palavra que eu gosto muito.
E quando eu fui para a Escola Livre de Teatro de Santo André, que é uma das escolas mais importantes do Brasil, que existe há 32 anos, que formou parte significativa das pessoas que hoje fazem teatro no Brasil, um teatro com o olhar múltiplo, diverso, que inclui. Acabei de saber que agora na Escola Livre existem dois aprendizes autistas pela primeira vez. Ou seja, a Escola Livre a gente pode pensar que recebe aprendizes negros e negras que começam a desafiar a escola. E a escola, no lugar de recuar completamente, consegue estabelecer um espaço, com muita luta, muito embate evidentemente, mas essas pessoas conseguem se formar, terminar a escola. E isso é importante dizer também, porque tem muita desistência nas escolas, passa por um racismo estrutural, sim, isso é preciso dizer.
Depois você tem um movimento trans, você tem Liniker saindo da Escola Livre de Teatro, você tem Linn da Quebrada saindo de lá também, e agora eu fico sabendo que começa esse movimento de pensar a neurodiversidade, que muito me honra, me alegra, saber que eu passei por essa escola à frente do núcleo de dramaturgia por três anos. Saí porque acho importante a gente abrir espaço, para a gente não criar figuras eternas nos lugares. É muito importante a gente ter essa sabedoria de abrir espaço para que outras vozes, outras trocas aconteçam, sobretudo com aprendizes. Eu sou contra essa figura desse mestre, dessa mestra eterna num espaço. A gente precisa abrir para que outras pessoas sigam.
Hoje mesmo na Universidade de Indiana [EUA, em participação remota], falando sobre Yellow Days, sobre as Capulanas, e aí lembro do tempo espiralar que a Leda Maria Martins [ensaísta, dramaturga e professora] sempre fala: o que aconteceu, volta a acontecer. E aí eu me vejo hoje falando com uma turma nos Estados Unidos sobre um trabalho do Jardim São Luis [bairro onde fica a sede da companhia, na zona sul], e todo mundo me perguntando, como que vocês conseguem fazer isso daí, o que é esse trabalho de grupo, sem entender muito bem, porque lá eles têm tudo, mas aqui a gente tem o que precisa para criar com urgência. Acho que criar com urgência faz muita diferença. O trabalho com urgência, ele tem pungência, ele é vivo, a palavra viva que se apresenta ali quando você vai assistir uma obra que está falando de temas que precisam ser falados, que não foram falados, ou que foram pouco falados. E perguntavam hoje das Capulanas, um grupo que tenho muito carinho. Trabalhei com Legítima Defesa, trabalhei com Inventivos, enfim, trabalhei com vários grupos de teatro (com esses grupos aqui eu não trabalhei ainda) [risos].
E eu fico pensando no movimento das Capulanas, que para mim é bem emblemático como resultado das políticas públicas: o fato de ter ali mulheres que vão para a universidade, saem do seu território para ir até a PUC São Paulo num bairro de classe média alta, que estudam e não se veem nas referências oferecidas, que entendem que todo o território onde elas foram criadas e todas as manifestações populares, culturais a que elas estavam submetidas também eram uma referência como formação. E daí o que elas fazem? Conseguem terminar esse curso e retornam ao seu território com o que elas aprenderam na universidade, mas sem esquecer tudo o que elas aprenderam em termos de oralidade, de estética, no próprio território. Então acho o caso delas muito emblemático. É um grupo pelo qual tenho um carinho enorme, nós fizemos o Yellow Days, nós mantemos contato, uma peça que está sendo estudada em várias universidades, na Carolina do Norte está sendo estudada, agora na Universidade de Indiana, está na Universidade da Bahia, nos cursos de direção e atuação. Então, assim, para aonde vão essas obras, o que é esse resultado desse empenho de território que foi construído por tantas pessoas, desse futuro que foi erguido por tantas pessoas, por tantas mãos? É muita coisa.
Tive uma outra experiência que acho importante também colocar aqui que foi na Fábrica de Cultura, onde eu vi muitas potências encontrarem espaço para acontecer. E isso é uma coisa importante para a gente pensar, porque a potência existe, as bordas, as margens, o futuro está lá.
Eu estive no Vidigal [bairro do Rio] semana passada, conhecendo projetos sociais e a autogestão, a capacidade de internacionalização que estão acontecendo ali são de abismar. Porque, assim, me abismaria em qualquer território, mas sendo o Vidigal, evidentemente com todas as questões que existem no lugar é realmente algo inspirador e que me convoca a fazer mais, a trabalhar mais, acho que estou trabalhando menos, vendo tudo o que está sendo feito lá. Acho que a gente como artista tem de trocar mais com esses projetos culturais desses territórios.
Mas voltando à Fábrica de Cultura da Brasilândia [zona norte de São Paulo], eu me lembro do meu primeiro dia de aula em que cheguei com a malinha e minha aulinha de teatro grego preparada e fomos debater Medeia. Eu achava que ia explicar a tragédia e daí aqueles aprendizes leram tranquilamente o texto, não houve nenhum choque de dificuldade com o texto. Fiquei abismada porque eu tive quando eu li a primeira vez, achei superdifícil, e eles e elas aprenderam imediatamente o que era tragédia. Na verdade, eu aprendi sobre tragédia nesse contato. A questão da urgência, o entendimento da finitude, eu acho que a proximidade com a morte, não como algo dramático, mas como algo trágico, real e potente e que convoca a criações está muito presente nesses territórios.
Também venho de um território no Rio que também tinha isso. Então quando vou para a Fábrica de Cultura da Brasilândia, me deparo com muita potência, a ponto de eu não dar conta. Chegou um momento em que eu estava acompanhando os processos. Porque fui dar aula de dramaturgia e aí eu ganhava uma aula de tragédia na minha cara, era assim. Porque se entendia perfeitamente o sentido de tragédia. Se entendia perfeitamente o teatro brechtiano: eles entendiam perfeitamente. Você falava de peças radiofônicas… Uma vez um menino me disse uma coisa que achei interessantíssimo e eu tive que concordar com ele: “Ué, mas isso na biqueira é assim, a gente usa o radinho, é uma dramaturgia, tem uma dramaturgia acontecendo” – uma dramaturgia terrível, mas rica. Você tem ali uma cena que reflete a realidade do país que não tem pátria, é um país mátria, sem pai, sem pátria.
E você tem esses filhos e filhas com muita potência sem espaço para acontecer. E que quando tem uma oportunidade, e a prova disso é que as pessoas que entraram no governo Lula e Dilma nas universidades estão todas com doutorado. Ou seja, elas não param, elas entram e não param de estudar. Elas não fazem o básico, vou fazer a graduação e vou terminar aqui. Isso segue, porque é muita potência armazenada que vem de muito tempo. A primeira pessoa da família a entrar na universidade, ela não entra sozinha, ela leva toda a família para dentro da universidade e vai abrir caminho para que outras pessoas também ocupem esse espaço.
Essa capacidade multiplicadora vem às vezes de um incentivo pequeno, de uma pequena oportunidade. E o resultado disso é assustador para esse sistema: sim, é incômodo, sim, e estamos aqui para incomodar, evidentemente. Não vamos parar, eu acho que o caminho não tem volta, porque depois que você conhece a beleza e você acha espaço para colocar seus dons na prática você não vai retroceder e dizer “Ok”, então vou ficar guardado aqui. Abriu-se a caixa de pandora, o que eu acho maravilhoso.
Estou terminando já também. Mas eu acho importante falar das escolas, falar desses grupos de teatro e a gente pensar daqui para frente. A Lucelia falou isso, hoje o público, e eu acho que o mercado, é uma palavra que eu não gosto, mas é isso, o mercado ele existe e já entendeu que as contranarrativas, estou falando de narrativas negras, narrativas trans, todas as narrativas que estavam fora da normatividade desse universal falso que a gente sabe muito bem o que significa, têm público. Essas peças não ficam vazias, têm público, têm mercado, inclusive o audiovisual já entendeu. As narrativas negras que estão ganhando prêmios, que estão à frente, construindo o futuro do imaginário. E não é de um novo imaginário, porque não é novo, mas é de um imaginário múltiplo e convocatório para que a gente consiga naturalizar as presenças das potências daquelas corpas que por muito tempo não estiveram no teatro. Acho que é isso.
Luiz Fernando
Aberta a roda.
Naruna
A perspectiva que a Lucelia faz do teatro negro independente e do teatro periférico, apesar de hoje essa roda ter essa perspectiva, dimensiona ainda mais esse movimento da relação com a territorialidade. Então, pensar geograficamente, deslocar geograficamente, é mover muita coisa. Quando a Dione fala do Vidigal, que a maior referência é o Nós do Morro, um coletivo de teatro que fez com que o cinema nacional ficasse marcado eternamente, a exemplo de Cidade de Deus (2002, filme dirigido por Fernando Meirelles, Kátia Lund], convocado, comentado, premiado, reproduzido mundo afora. E nasce ali naquele território, e apresenta aquele território, todas as suas contradições, tanto para o mundo quanto para o Brasil, e levanta muita coisa.
E eu lembro muito que quando o Clariô surge, e essa perspectiva de um lugar de direção, quando começa a existir para além da própria comunidade um movimento de pessoas vindo do centro para a periferia para consumir, prestigiar teatro, o espetáculo começava antes de começar, porque só ali, de adentrar aquela rua, que é muito menos charmosa que qualquer rua desses teatros da cidade de São Paulo, só de se relacionar com aquelas pessoas que em sua maioria são pretas, pessoas que se acostumavam a ir ao teatro naquela época e fechavam os vidros quando passavam perto, então essa relação com a geografia já determina a relação com a obra. E isso é muito interessante, de pensar o teatro de outro ponto de vista, real, e não somente do que está apresentado enquanto conteúdo, enquanto corpos pretos, que naturalmente são políticos. Quando estão em cena são políticos por si só porque é um corpo que não é visto, que é invisibilizado historicamente no Brasil. E aí é a geografia. Então o espetáculo é tudo isso: abrem-se as portas do espetáculo quando eu tenho que mudar, converter a lógica de caminho. E aí a perspectiva desse outro é real.
Para nós era impossível que um espaço como As Capulanas, no Jardim São Luis, ou mesmo o Clariô, em Taboão da Serra, pudesse ficar lotado com gente transbordando. Na nossa última temporada não conseguimos colocar [para dentro] todo mundo. Então a gente apresenta para todes, e nem parecia que a gente desse conta dessa potência toda. Existe uma narrativa aí que não dá conta mais de contar o que é o Brasil, não é suficiente, e outra narrativa vem. E não estou falando só lá de trás, quando estreia Ensaio sobre Carolina, Hospital da gente, mas olha aí, a Companhia de Teatro Heliópolis, uma das maiores favelas de São Paulo, levando para casa o maior prêmio de teatro do Brasil em duas categorias, uma companhia com mais de 20 anos também [Alisson Amador, Amanda Abá, Denise Oliveira e Jennifer Cardoso também contemplados no Shell SP pela execução musical em Cárcere ou Porque as mulheres viram búfalos].
E hoje principalmente se revela de forma muito nítida a importância, a necessidade, a urgência e a querência desse tipo de narrativa, a partir de todas essas movimentações, sejam geográfica, racial, de gênero. É isso.
Vitor Britto, ator
Sou carioca, ingressei na Unirio, na faculdade de artes cênicas lá em 2015 e foi quando eu comecei a me profissionalizar mais em teatro negro. Lembro que fiquei muito admirado que os grupos de teatro negro de lá foram reconhecidos, como o Grupo Emú, do qual faz parte a atriz Sol Miranda, e o [espaço] Terreiro Contemporâneo, que é um foco superativo de teatro negro carioca. E eu vim para cá em 2017. Em 2019, comecei uma pesquisa com o meu coletivo que se chama Coletivo Ocutá e a gente acabou de estrear um espetáculo, O avesso da pele, a gente está no Sesc Avenida Paulista.
Estou muito mexido e potencializado com as falas de vocês. Quero começar agradecendo, da forma como você [para Dione Carlos] agradeceu às duas, agradeço a vocês três, porque hoje muita coisa se espaireceu aqui-agora comigo. A gente sabe que não é um caminho fácil, mas eu sei também que se a gente conseguiu estrear esse espetáculo, depois de três anos de pesquisa, de muito desenvolvimento e estudo, ouvindo vocês, é porque vocês caminharam muito para agora a gente conseguir desfrutar e trabalhar dessa forma. Então está sendo muito esclarecedor.
Queria dizer também que a gente se encontrou recentemente para entender como descentralizar. Porque a gente estreou agora no centro de São Paulo e nos nossos próximos passos a intenção é descentralizar o nosso projeto. E essa fala do teatro periférico para o teatro negro fez muito sentido para mim nesse momento. Eu lembro que foi um ponto ali que a gente ficou pensando de não querer parecer: “Vamos agora para a periferia ou para fora do eixo central”, querendo ensinar ou didatizar alguma coisa. Acho que ouvir um pouco mais aprofundado esse lugar de levar não só o teatro, mas a conversa, esse lugar social, acho que seria muito importante para mim. Se puder também ampliar essa fala.
Naruna
A imprensa costumava abordar isso, de levar o teatro à periferia. Isso era muito comum, entre os coletivos. Em especial no momento por meio do qual surge a Lei de Fomento ao Teatro [o Arte contra a Barbárie], isso ficou mais forte. Inclusive, essa necessidade dos coletivos que não eram periféricos, de ingressarem para a periferia para ou utilizar a periferia como um lugar de pesquisa ou oferecer o teatro para aquela determinada comunidade, em determinado período, para poder contemplar aquela sua pesquisa ou ter um contexto social nos seus projetos para que eles pudessem ser aprovados, uma espécie de contrapartida social. Isso foi muito interessante porque imediatamente esses coletivos que estavam ali de uma forma tímida ainda, mas se movimentando, eles reagiram, se apresentando no sentido de dizer: “A gente existe, e não existe essa necessidade de aprender com vocês, o movimento é ao contrário, ou a gente troca, ou a troca não será justa”.
Acho que hoje isso está muito amadurecido e pelo menos essa parte da periferia que já tem um fortalecimento teatral – zona sul de São Paulo, zona norte, muitos lugares da zona leste –, eu acho que já está fortalecida o suficiente para ser bem-vindo, sabe, especialmente quando se trata do teatro negro [para Vitor, se referindo à descentralização].
E existem espaços com certeza para isso. No Clariô, por exemplo, a gente vai entrar na nossa 10ª Mostra de Teatro do Gueto, e sempre é uma discussão, porque a necessidade é trazer esse diálogo com espetáculos que tenham uma trajetória em alguma periferia brasileira, mas não necessariamente. Os Crespos, por exemplo, batem cartão na mostra, porque o conteúdo, a forma, o debate desenvolvido por um determinado espetáculo que não necessariamente nasce ou cresce na periferia, se tiver a ver com as nossas referências, com certeza vai ser bem-vindo. O que dialoga com a quebrada?
É muito interessante que isso seja levantado porque durante muito tempo parecia que essa voz da contradição na quebrada não existia, era só chegar, apresentava seu projeto e chegava lá, era oferecido.
Lucelia
Acho que tem uma constituição periférica no corpo negro, não em todo corpo negro, mas que pressupõe uma experiência que vem do estar à margem. Então eu quero dizer que isso é constitutivo de alguma forma no diálogo. Quando a gente vai dialogar num outro espaço, nós, Os Crespos, a gente já lida com uma identificação de onde você vem.
Outra coisa que para a gente sempre foi muito importante, é que a gente não se pauta numa única experiência. A nossa experiência, por exemplo, n’Os Crespos, é muito diferente da experiência das Capulanas, as escolhas estéticas, o conteúdo estético. E durante muito tempo a gente tentou entender o que era o teatro negro e o teatro negro como se baseava nessa experiência de referência, de como a referência é colocada em cena, de como a gente institui uma nova forma que o nosso corpo pede. E aí hoje posso dizer que a gente tem um público muito diferente, que há demanda de público para diversas formas estéticas. E quando a gente vai dialogar com a periferia, quando a gente vai trocar, a gente também está dentro nesses espaços de públicos especializados mesmo nessa diferença. Gente que está acostumada a assistir Clariô, Capulanas, outro que não sei o nome, outro que lançou ali, a Heliópolis, e foi ver a dança, e conhece o Sangoma [espetáculo da companhia Capulanas], conhece o Ageum [núcleo de dança que pesquisa narrativas africanas e afro-brasileiras], que conhece todo mundo e que, portanto, olha para o seu espetáculo com uma experiência atravessada pela formação. Acho que a gente vive isso hoje, essa possibilidade.
Outra coisa é que somos estrangeiros nessa terra: eu sou da Praia Grande [litoral paulista], o Sidney [Santiago Kuanza, idem], a Mawusi [Tulani] de Araraquara [interior], cada pessoa é de um lugar, e ser estrangeiro em São Paulo não é uma sensação única, é um processo compartilhado. Aí a gente entra na questão da pauta da disputa de imaginário. Se o teatro é um lugar onde a gente pode sonhar uma sociabilidade, uma possibilidade de realidade imaginada, a gente tem conseguido através do teatro disputar esse imaginário de diferente formas, ou a gente tem pelo menos pedido para que a gente consiga abrir espaços ou friccionar os espaços na necessidade de reconhecimento dessa diferença, dessa diversidade.
Na periferia temos um acesso muito mais fácil à aceitação dessa diversidade, a troca com a possibilidade desse novo imaginário, porque a experiência na periferia não te reduz a esse sentido artístico, ela olha com outros olhos, não com os olhos da experiência do público do Sesc. O olho da experiência do público do Sesc cobra de nós uma determinada postura, enquanto um outro público que não é pautado por esse olhar proporciona uma outra experiência que faz a gente crescer, esse teatro se fortalecer.
E aí não tem como a gente ver o Clariô e não querer falar certas coisas. O boi mansinho foi um dos dois melhores espetáculos que vi no ano passado, a potência que o grupo consegue instaurar na sua pesquisa de ancestralidade migrante, de como essa pesquisa ganha forma no espetáculo, de como esse grupo se reestrutura, reestabelece sua poética, inscreve mesmo num processo de pesquisa continuada que a gente tem pouco na nossa história de teatro negro.
Eu acho que a gente vive hoje uma história de pesquisa continuada, que não tem só no Bando de Teatro Olodum e suas complexidades um formato, uma possibilidade. A gente consegue com esse espetáculo, 18 anos depois, reconhecer os traços de uma poética que está no Hospital da gente, que está no repertório das Clarianas [grupo formado por atrizes cantadeiras urbanas do Clariô, Naruna, Naloana Lima e Martinha Soares], que está no outro espetáculo Urubu come carniça e voa!, que está nas experiências das Quintas [Quintas crespas, projeto d’Os Crespos], que está na experiência de quando você vai lá e vê uma menina, que você viu criança assistindo uma peça, hoje ajudando ali na organização e no entendimento do que é aquele teatro ali naquele espaço.
Então acho que você encontra um outro público na periferia de São Paulo hoje, você encontra uma outra experiência de público no centro de São Paulo hoje. Por quê? Você vai ter pessoas negras em qualquer espetáculo hoje em São Paulo. Isso de alguma forma condicionou inclusive a postura de um teatro que deveria discutir branquitude, por exemplo, e que tem dificuldade de se discutir. Então a gente racializou o processo e na periferia isso só ganha uma outra força, como se a gente pudesse cutucar nossa própria ancestralidade num espaço-tempo. A periferia tem essa questão, do espaço-tempo, e o quanto a gente centraliza ou descentraliza essa urbanidade central que a gente discute por exemplo n’Os Crespos quando a gente está em um outro espaço, um outro tempo.
Dione
De onde você é? [para Vitor]
Vitor
Tijuca [bairro da zona norte do Rio]
Dione
Quintino, bem próximo, subúrbio do Rio [apresentando-se]. Só para compartilhar uma experiência recente da semana passada, do Prêmio Shell. O Prêmio Shell sempre aconteceu em São Paulo e Rio e aí eu me vejo indicada e fico sabendo que o prêmio vai ser entregue no Rio de Janeiro e ganho no Rio de Janeiro. Então, são muito misteriosos os caminhos da ancestralidade. Eu acredito que tem um grande roteirista, uma dramaturga, uma sala de roteiro [em suma, ambiente de criação colaborativa potencializador da escrita individual para TV e cinema] fervida que atua sobre nossas vidas e que diz assim: “Aqui é o plot twist, não, não indica agora, não! Vai ser em 2023, ela está no Rio, vai ser emocionante”.
Eu tenho sido convocada a pensar território de uma maneira muito forte inclusive por conta desse retorno, voltei meio “Tieta do Sudeste”, porque volto para o Rio de Janeiro para receber esse prêmio [na cerimônia de entrega do Shell]. Eu fiquei muito chocada, porque quando eu citei Jacarezinho, que é a comunidade da minha família, minha bisavó foi uma das primeiras moradoras, o teatro veio abaixo [Teatro Riachuelo]. E aí, como a gente imaginaria que a palavra Jacarezinho despertaria uma comoção tão grande naquele público? Porque mudou. Não está ganho, mas mudou, a configuração mudou, e isso é maravilhoso para todo mundo porque estamos convivendo com a pluriversidade que a gente é nesse país [o princípio pluriversitário requer um conhecimento transdisciplinar que exige um diálogo ou confrontação com outros tipos de saberes, para além a universidade].
Tenho pensando muito em território também porque fiz umas viagens que mexeram muito com meu imaginário e me fizeram um convite – aí é que eu falo da sala de roteiro fervida que atua sobre nossas vidas. Eu fui jogada no Nordeste, estive num território onde a ancestralidade estava muito presente e há muito orgulho dela. Me vi como alguém que está em São Paulo há 26 anos praticamente muito distanciada desse território.
Eu estou te falando isso [para Vitor] porque venho pensando na importância dos intercâmbios. Eu vou te contar uma experiência que é uma história que eu gosto de contar que é o encontro do grupo Sankofa, um grupo colombiano, com Leda Maria Martins [poeta, ensaísta, dramaturga e professora mineira], no Sesc Santos, no festival Mirada. Leda começa a cantar, ela sempre canta em algum momento, e o grupo, que é um grupo de dança, começa a batucar nas mesas, nos bancos de madeira do Sesc, e uma grande roda se formou e houve ali um encontro, uma experiência estética e ancestral, onde não se precisou organizar nada, nem de diretor, nem de diretoras, a coisa simplesmente aconteceu por conta de um reconhecimento, por conta de uma dramaturgia que é grafada pelo corpo, pelo gesto, pela sonoridade e por uma memória muito forte. Você via pessoas ativadas que talvez nem tivessem contato com nada daquilo, estavam assistindo pela primeira vez, sem saber quem era Leda, quem era Sankofa, por exemplo, que é um grupo muito interessante, que tem uma pesquisa, que viaja o mundo inteiro.
Uma coisa que eu acho que aqui a gente faz pouco, viajar o país, viajar o Brasil, para conhecer os nordestes, para conhecer os nortes, porque são muitos países dentro de um país. E aí eu fico imaginando, e parabéns pelo seu trabalho [para Vitor], eu não vi ainda, mas ouvi muitos elogios, muita gente me indicou, então é muito lindo que você chegue em São Paulo, assim, com esse trabalho reconhecido, e eu sei que vai acontecer muita coisa ainda com esse trabalho, e penso que seria muito interessante esse intercâmbio.
Eu tenho pensado nisso, nas companhias de teatro realmente praticar intercâmbio, a gente viajar, passar um tempo no Nós do Morro, passar um tempo aqui com Os Crespos, passar um tempo com o Clariô, passar um tempo em Heliópolis, chegar lá, bater na porta do Miguel [Miguel Rocha, diretor da Companhia de Teatro Heliópolis] e falar: “Gostaria de fazer um intercâmbio, vocês vão pro Rio, a gente vem pra cá”. Porque eu sei que coisas maravilhosas vão acontecer a partir desses encontros, porque esses territórios dialogam, as memórias ancestrais estão presentes. E te digo: eles e elas estão trabalhando muito para que esses encontros aconteçam, que já aconteceram.
Então, assim, nos matam, a gente renasce, faz tudo de novo, faz mais bonito. Mata, renasce, eu não espero morrer. Agora, a gente tem que estar atento às tentativas de apagamento, elas acontecem imediatamente após uma conquista. É muito sutil, viu, tem que ter muita inteligência. Esse apagamento é construído, ele é pensado, há um pacto, tem muito estudo sobre isso, e a gente lida com esse pacto.
Como é fortalecer o coletivo? Vocês também falaram aqui [para Naruna e Lucelia], e eu acho que o intercâmbio… Por exemplo, estou usando essa palavra que eu não sei se é uma boa palavra, mas essa muvuca, promover muvucas. Eu tive essa experiência no Festival de Arte Negra de Belo Horizonte [edição de 2021] – que também, vou te dizer, Minas Gerais é um reinado negro que eu vou te contar um negócio, também não sei, aqueles minerais, aquelas pedras sagradas, tem muita coisa ali, e muito à frente do tempo, o futuro é agora, não é amanhã. O que eles fizeram lá? Nas Muvucas Artísticas (uma ideia que aqui funcionaria maravilhosamente bem) são convocadas pessoas de vários lugares do Brasil. Houve uma seleção para participar da ação, em que convidavam um artista para ser um orientador, uma orientadora, e naquele momento eu fui uma das orientadoras, uma das diretoras, digamos assim. A Grace [Passô, atriz e dramaturga] também estava lá. Foi um projeto lindo. Você recebia esses artistas superpotentes e tinha três dias para render uma peça de teatro, um acontecimento. Uma ação muito interessante, simples, um encontro. E a partir desse encontro com essas pessoas, outros encontros foram acontecendo, essa é a questão, essa capacidade multiplicadora. Então eu diria a você [para Vitor], bata nessas portas, diga: “Tudo bem? Estou aqui na sua cidade, eu fiz isso, gostaria de conhecer o seu trabalho”.
Fiz isso, porque estava recentemente como convidada em uma atividade em Petrolina (PE) e fui acompanhando e percebendo como é simples… Eu, dramaturga do grupo nesse último trabalho da Heliópolis, Cárcere ou Porque as mulheres viram búfalos, não sabia a história da companhia e ouvi Miguel contando a história dele, que veio do Piauí [a cidade natal do diretor, São Miguel do Fidalgo, fica a cerca de 5 horas de Petrolina]. E pude ver como os territórios dialogavam. E como é uma história muito linda porque começa com ele e Dalma [Régia, atriz e produtora da Teatro Heliópolis, nascida na mesma cidade piauiense e cuja família também migrou para São Paulo], que fundaram a companhia, pegaram o edital e uma parte da galera foi embora, então ficaram os dois, se apaixonaram e casaram e fizeram o grupo. São 20 anos de companhia, com um trabalho de pesquisa rigoroso, um dos grupos mais íntegros com o qual já trabalhei, e está lá o Prêmio Shell. É maravilhoso, mas mais maravilho é o encontro. Eu te passo o meu contato [para Vitor], eu faço questão de te levar. Não bata, não, vamos juntos, Tijuca e Quintino, porque tem que fazer e eu acho que pode dar muita coisa boa.
Rafael, artista de teatro
Também queria agradecer, porque eu me sinto formado por vocês três. Literalmente foi a Dione, que foi mestra de dramaturgia, mas em pensar quando a gente descobre o trabalho da companhia d’Os Crespos e a primeira vez que eu ouço falar sobre teatro negro e fico ouriçado. E também o Clariô, que vi há 10 anos e continuo vendo até hoje.
E é muito louco pensar essa relação do tempo, porque essa conversa aqui… Desde que iniciei a minha caminhada no teatro, há 10 anos, a gente tem essa conversa, em qualquer grupo, galpão de arte e de cultura dentro de uma periferia. E fico pensando o quanto esse cordão de ouro é uma coisa antiga mesmo para a gente. Eu me sinto formado pelos grupos periféricos. É uma conexão misteriosa que acontece fora de qualquer caixa, é um boca a boca que funciona. Eu descobri o Clariô porque no Grajaú [bairro da zona sul] não se falava de outra coisa. Você precisa ver lá e tal, e o quanto a gente recebia pessoas que precisavam ver como as pessoas estavam fazendo teatro na beira da represa [de Guarapiranga].
Essa questão do território, das conectividades, do deslanchar de imagens ou da ampliação de imagens, é uma coisa que me inspira. Fiquei com uma curiosidade para te perguntar, Naruna, porque acho que é uma das pessoas que pensam essa troca com um território periférico específico há alguns anos. A gente está falando dessa troca, dessa possibilidade de expansão dos territórios, de receber outras pessoas e tal, mas eu queria saber dessa relação contínua com esse território, de dentro para dentro. É uma prática que eu vivo e estou tentando fazer também há 10 anos. Como ouve, como se inspira, como propõe, como intervém, como recebe? Eu queria ouvir um pouco.
Naruna
É muita luta, porque uma região onde é muito escasso o espaço físico com atividades culturais e políticas públicas voltadas à cultura, isso especificamente em Taboão da Serra. E aí isso parece que por ali ser um dos poucos, talvez ele fosse mais preenchido. Pelo contrário, porque a falta de relação que a comunidade tem com ambientes artísticos – é muito potente e plena a relação com a cultura porque na periferia em especial são pessoas muito diferentes, principalmente no Rio e São Paulo, onde a experiência cultural é vastíssima, desde reinado mineiro, com cantigas de congadas e reisados, até experiências nordestinas, a culinária, a agricultura, as cantorias, a relação de todas as tecnologias… Mas a experiência artística, que é o pensamento de juntar tudo isso e se dedicar a uma estética para um estímulo, para um debate devolvido à sociedade, isso é muito pouco.
Existia uma estranheza, parece que uma pessoa periférica não pode entrar no teatro, eu não sei consumir teatro, é estranho estar sentado em um lugar onde eu possa debater sobre o que eu vi. Eu não sei se eu consigo falar, assistir a uma peça de comédia, até a relação física, as crianças, é difícil entender que o acesso é possível. Foi muito tempo até que a gente conseguisse ter realmente um contato um pouco mais tranquilo e acho que os percalços, da relação da comunidade com a enchente, por exemplo, nos aproximaram. Essa experiência da enchente é avassaladora, muito devastadora para a comunidade, porque as pessoas definitivamente perdem tudo. A gente enquanto espaço, perdemos cenário, tem a relação de sujeira, de limpeza, é horrível, mas a gente vai para casa descansar, dormir no quentinho, e a comunidade, não.
Desde a primeira vez que passamos por isso foi muito forte a necessidade de oferecer o espaço como acolhimento, como ponto de referência, de usar inclusive os contatos para poder ampliar o sistema de ajuda, e isso trouxe imediatamente a comunidade mais próxima da rua para dentro do espaço. A ponto de cuidar do espaço, de ligar para a gente e avisar: “Olha, o rio está enchendo”. De as coisas estarem acontecendo lá na casa deles, e depois ajudarem a gente com rodo, com vassoura, a nos ensinar como se limpa uma parede, um chão, com enchente, porque é uma lama fina, é um negócio que não sai nunca, é um cheiro que não sai nunca.
Essa relação fez com que a comunidade se aproximasse enquanto espaço. Mas ainda assim, muito devagarzinho, entrasse em contato com a arte. Só que aí a maravilhosidade das crianças: elas realmente não têm esse senso, são ensinadas a se relacionar com o mundo de forma tímida, recolhida, mas, em princípio, enquanto crianças elas querem experimentar tudo, e para mim foram elas que abriram as portas da comunidade.
Mesmo não trabalhando com o teatro infantil, mas podendo fazer um teatro que é acessível às crianças (Boi mansinho não é um espetáculo infantil, mas a gente quase a nomeou como teatro para bebês porque a estética, a música, fazem uma aproximação, aí, uma vez que entram, entendem, a gente acolhe e oferece o espaço como também de troca. Quando temos grandes eventos no espaço, como a festa do Clariô, que é gigantesca, a noite toda, que recebe muitas pessoas, a comunidade participa vendendo coisas, trabalhando dentro do espaço, fora do espaço, oferecendo o que tiver para poder contribuir com a festa. Então outras ações que não são exatamente o teatro vão aproximando e aí, quando tem uma temporada em que está todo mundo também trabalhando junto, a gente faz a troca, um dia o pessoal vem para assistir. E aí assiste, comenta. Hoje em dia tem uma relação legal, mas realmente demora.
A falta de política pública, relacionada à cultura vinda do poder público, ela é destruidora, deixa tudo muito frágil, porque é importante que tenha outros espaços, tenha outras casas, outras possibilidades para também se relacionar de forma diferente, ampliada. Acho que também oferecer outras possibilidades, como o Quintasoito, encontro que tem quase 20 anos, que é abrir o espaço para outros artistas. A gente faz uma sopa e troca ideia e fala sobre aquela obra, que pode ser de qualquer frente, não só de teatro. Isso aproximou também. Inclusive trazendo alguém da própria comunidade para falar. Tudo isso contribui para essa valorização, para a compreensão daquela experiência. E tem ainda a Mostra de Teatro do Gueto que traz espetáculos de outros lugares e aí, sim, com frentes infantis, de outras linguagens, performances tomando rua, tomando outros espaços, independente do Clariô, e as oficinas, capoeira, teatro, ioga, quando tem no espaço.
Tudo isso aproxima e faz com que a relação com a comunidade seja não só de observação da arte, mas de aproximação e cuidado com o espaço, com a importância daquele território naquele lugar, o que é muito frágil, o que é pouco, mas é muito importante porque oferece uma troca para a gente preciosíssima, que é o que a Lucelia diz. Que a relação daquela população, daquele território, vai ser completamente diferente de um público forjado no teatro central, por exemplo, que nasce nas escolas de teatro, um público outro.
Então realmente tem coisa que muita gente sai soluçando, chorando, e a comunidade tem uma outra relação, mais próxima daquele conteúdo porque ele nasce ali. Para a gente é muito enriquecedor, uma troca justa, muito importante que eles estejam juntos.
Rodrigo Dourado, artista, pesquisador e professor em Pernambuco
Eu sou de Recife, sou professor da Universidade Federal de Pernambuco e estou aqui em São Paulo fazendo meu doutorado na USP. Minha pesquisa são as presenças de sexos dissidentes no teatro contemporâneo. Trabalho muito no campo dos corpos e corpas queer e tal, mas a discussão de vocês me atravessa muito, sobretudo a discussão sobre formação em teatro. Estou há dez anos na UFPE e que doloroso esse processo da descolonização da formação. Inclusive estou em São Paulo para respirar um pouco porque é duro o processo mesmo de desconstruir aquele edifício inteiro, europeu, eurocêntrico, em que está fundada a nossa formação em teatro.
E é muito surpreendente que lá em Pernambuco, que é um estado que tem uma cultura popular absurdamente pulsante e preponderante, a gente está do lado dos maracatus, do cavalo-marinho, do caboclinho, de tudo da cultura popular, não tem nada disso dentro da universidade, nada. O coco popular não chega dentro da universidade. A oralidade não chega dentro das universidades, a produção de conhecimento por meio da oralidade é quase uma impossibilidade dentro das universidades. Isso não existe, esses saberes não são legítimos.
E eu fico pensando assim: para mim é muito evidente que o teatro brasileiro foi completamente transformado a partir dessa cena, o teatro periférico, o teatro negro e o da cena trans, é um outro teatro, mas ele está chutando a porta da universidade para entrar. Ele está chegando… Acho que boa parte dos conflitos, das dores, e tudo o que está acontecendo dentro da universidade vem desse chute aí, a gente vai entrar, quer vocês queiram, quer não.
Aí eu aproveito para trazer uma experiência do Recife para jogar nesse horizonte brasileiro, essa experiência de teatro negro, digamos assim, que é o grupo Poste [O Poste Soluções Luminosas], que trabalha no Recife, um grupo interessantíssimo, com quase 20 anos de atuação [fundado em 2004]. Seus integrantes têm uma proposta de formação, um curso acho que de um ano, e eu fico babando pelo currículo. As disciplinas que eles oferecem na formação passar assim por matrizes corporais indígenas, uma investigação sobre o corpo ancestral, as mitologias dos orixás, uma investigação sobre o corpo cigano, enfim, é um currículo interessantíssimo e às vezes digo para meus alunos: “Vão lá fazer o Poste, saiam daqui”. Então só para jogar um pouquinho nesse horizonte.
E para pensar mais um pouco e fechar minha fala, tem um autor importante nos estudos queer, que é o José Esteban Muñoz [1967-2013, cubano radicado nos EUA]. Ele tem um livro central que se chama Utopía queer. El entonces y allí de la futuridad antinormativa. E quando a Lucelia fala desse teatro que imagina o futuro ou que imagina outras sociabilidades, que é um teatro que não está exatamente ancorado, satisfeito com o real, ou com a violência do real, a comunidade trans está o tempo todo dizendo assim: “Basta de a gente ser representada nesse lugar da violência, da vulnerabilidade, isso a gente já sabe, a gente quer imaginar outros futuros”.
E o Muñoz vai pensar o queer como utopia, não é o agora, o queer é o futuro, utopia que a gente imagina a partir de experiências do passado. Lá no passado tem faíscas e experiências que nos dizem que é possível imaginar outro futuro, outras sociabilidades, outras presenças, outras relações. Então eu tenho pensado que é isso que está interessando o público. Por isso que as casas de teatro estão cheias. A gente já passou os últimos quatro anos afundados num buraco sem fim, então é isso, espero que esse movimento vingue ainda mais e que ele desconstrua e descolonize tudo o que a gente sabe sobre teatro. É um pouco a minha esperança.
[Uma rodada final de perguntas ou comentários]
Valmir Santos, jornalista
Ouvindo as falas me ocorreu um exercício de memória. A Lucelia falou do Castorf e eu queria pensar essa ideia de periferia em termos de país, uma escala global. A Dione citou há pouco a experiência pedagógica [remota] com pessoas dos Estados Unido… Aquela experiência do Frank Castorf, um diretor alemão, do Volksbühne, uma grande casa de experiência e radicalismo lá em Berlim, etc., e a experiência desse trabalho que a Lucelia fez com ele, de uma dramaturgia que trazia Ano negro, de Nelson Rodrigues, com A missão, do Heiner Müller, é uma aproximação que ele trouxe, enquanto diretor estrangeiro olhando para o Brasil, pensando o racismo e me parece atritando essa questão.
Fiquei pensando assim: lembro muito da imagem, na cenografia, da presença do madeirite, daquela folha de madeira roxa, muito comum na paisagem de favelas brasileiras. E esse conteúdo cenográfico eu vou ver também depois em Hospital da gente, lá na frente. Queria saber se vocês duas poderiam fazer um exercício de memória: Castorf, teatro europeu, [o chamado] primeiro mundo, e a vivência que você falou um pouco da gênese d’Os Crespos, ali. E para a Naruna, se ela pode falar também da experiência com o Bob Wilson, ela estando no trabalho sobre Garrincha, um artista brasileiro, com todas as complexidades.
Sei que é final de encontro aqui, mas a partir de tudo o que a gente ouviu das experiências, pensando em termos de esquiva, de atrito ou até mesmo de linguagem, lidando com esses dois [Castorf e Wilson], referências europeia e estadunidense que costumam ou já foram bastante estudadas nas universidades, seria interessante pensar nessa ideia de periferia a partir do lugar que vocês vivem hoje. Que memória, que faísca poderia trazer para esta noite?
Manoela, professora
Boa noite, eu sou de Petrolina, Pernambuco. Não sou da área de teatro, sou professora. Hoje um colega aqui me trouxe um pensamento também que eu queria colocar na roda, sobre a ideia da criação da memória, institucionalizar essa memória. Bem, importante para a criação da memória foi a representação, representatividade dos povos negros para ocupar vários espaços. Eu li uma pesquisa que falava o quanto esses escritores foram importantes, mas também trouxeram alguns limites, limites esses que, por exemplo, quando a gente faz pensar a violência, até que ponto essa representatividade, pensando no mercado, não ajudou a diminuir muito a violência, pensando nos corpos trans também. Então eu queria ouvir mais um pouquinho a respeito dessa discussão.
Lucelia
Eu queria falar da Legítima Defesa, que é uma revista produzida pela companhia Os Crespos – aproveitando para falar d’O Poste –, na qual a gente encomenda alguns textos sobre discussões da cena negra. A gente também abre espaço para inscrição de dramaturgias, sempre trazemos uma ou duas, às vezes três textos teatrais. É de distribuição gratuita e este ano a gente vai lançar o quinto número. Vamos fazer um novo lançamento dos números 2, 3 e 4, a gente tem bastante lá, se quiserem a revista podem entrar em contato. É a única revista de teatro negro do Brasil, se não me engano a única da América Latina, exclusivamente para o teatro negro, e a gente tem a pretensão de que ela seja nacional. A gente busca pessoas que colaborem em todo o Brasil, mas não temos como dizer que ela realmente é nacional, porque a gente ainda tem uma ausência muito grande da cena nortista ou nordestina. A gente sempre busca descentralizar, mas a pesquisa ainda infelizmente é bastante centralizada, São Paulo, Rio, Minas, Bahia. Eu sou apaixonada pela revista, a gente fala de diversos temas relacionados aos bastidores, à cena, às discussões atuais, crítica de espetáculo etc. Só para não perder o gancho da revista, se vocês quiserem dar uma olhada nela.
A experiência com o Castorf foi muito interessante. A gente tinha acabado de fundar o grupo. O grupo nasceu em 13 de maio de 2005 porque foi quando a gente fez uma intervenção da Escola de Arte Dramática para falar sobre nossa existência depois de ter chamado várias pessoas da escola. A gente olhou para aquela experiência de que tinha muito mais preto ali do que a gente imaginava porque tinham entrado cinco numa turma, três na outra, e tinham dois ali gatos pingados de uma outra. Aí: “Vamos fazer alguma coisa com isso”. A gente tinha uma pessoa no grupo que era a Maria Gal, que vinha de uma experiência com o Bando de Teatro Olodum. A gente tinha outras experiências com o teatro político aqui em São Paulo também, e tínhamos chamado a escola inteira. Só apareceram os alunos negros mesmo para discutir sobre negritude e a gente falou: “Bom, então somos um grupo de teatro”.
E aí fiquei sabendo que o Castorf vinha para o Brasil para dirigir uma montagem e fiquei absolutamente enlouquecida porque eu amava o trabalho dele, achava muito interessante como ele desconstruía os clássicos. É um diretor que trabalha com os clássicos, por isso veio trabalhar com Nelson Rodrigues no Brasil. Aí ele escolhe o Anjo negro e diz: “Não, essa peça é racista, preciso colocar alguma coisa para discutir, para friccionar o racismo no Nelson Rodrigues”. Aí ele vem com Heiner Müller, uma experiência já próxima à dele, e a discussão aí de um alemão sobre racismo, sobre a experiência da liberdade de pessoas negras naquela década, neste continente.
É uma experiência bem maluca porque a gente está ali naquele momento, como eu disse, as vagas eram para atores negros de teatro de grupo, era esse o recorte que o Antônio Araújo [diretor do Teatro da Vertigem e professor na ECA-USP] estava ali em um diálogo com essa montagem selecionando os atores de grupos de teatro de grupo. A gente tinha Georgette Fadel, Roberto Áudio, a gente tinha pessoas de bastante destaque da cena teatral da época. E aí o Castorf teve uma grande dificuldade de achar atores negros nesses grupos. Ele achou alguns, mas algumas dessas pessoas estavam já envolvidas com suas montagens e ele não tinha o coro. E aí o Tó [Araújo] falou assim para ele: “Olha, lá na Escola de Arte Dramática tem um grupo de teatro negro, você não quer conversar com eles?”. O Castorf disse que não, porque a gente era estudante e ele queria profissionais. O Tó respondeu que no Brasil não é bem assim, que tem profissionais que estudam.
Então, a gente conversou como Castorf pensando que ele escolheria algumas pessoas e ele quis o grupo inteiro. Ele disse: “Eu quero que o grupo inteiro faça parte do espetáculo porque é exatamente isso que eu estava buscando para chocar com o texto do Nelson Rodrigues, essa experiência coletiva de discussão racial contemporânea que eu quero para essa experiência com o texto do Nelson”.
E aí a gente vai de alguma forma pegar a experiência do Castorf e colocar na nossa própria experiência. Então as perucas louras, o Castorf faz uma modificação bastante básica que as personagens negras são feitas por atores brancos, e vice-versa, e aí a gente tem um jogo que tenta questionar se a questão seria só o papel social ou não. Ele vai lidar como material que é o madeirite e o tijolo, a estética da periferia paulistana, sudestina principalmente, está colocada na cena e aí a gente vai com essa experiência discutir essa peça.
O Castorf não é um diretor muito bem aceito por um público amplo no Brasil. Ele tinha inclusive uma piada na peça, que é: “Tem gente aí? As pessoas continuam aí?”. Porque dava uma hora no espetáculo, as pessoas [da plateia] levantavam e iam embora, era um processo complexo. Então a gente lidou com essa tensão do teatro alemão discutindo racialidade no Brasil e aquilo era uma loucura, porque o Castorf não ensaia. Tem alguém que vai dizendo para você o que você tem de dizer, ele vai dizendo o que você tem que dizer para a pessoa que está traduzindo, que está dizendo para você o que tem que fazer, e você vai repetindo aquele texto numa determinada situação, com um figurino, um cenário, completamente diferente daqui, do que a gente faz no Brasil. Você chega, vai com um figurino. Mas qual é minha personagem? Você entra com o figurino. E a gente não assistia à montagem das cenas uns dos outros e não ensaiava.
Como a gente lidou com essa experiência de atores recém-ingressados na Escola de Arte Dramática, cheio de expectativas com relação à própria representatividade, sendo dirigidos por um diretor alemão? No meu caso, que era apaixonada pelo Castorf, enlouquecida com a possibilidade daquela experiência, mas numa proposição em que você tinha pouquíssima mobilidade como ator criativo, que é completamente diferente da experiência que a gente tem nos grupos, em sua maior parte são formados por atores.
Para a gente foi uma oportunidade de vitrine. Quando a gente chegou lá em Berlim [em 2007, para apresentar o espetáculo Anjo negro de Nelson Rodrigues com a Lembrança de uma revolução: A missão de Heiner Müller, em 2007, no Teatro Volksbühne], onde também aconteceu uma leitura do Ensaio sobre Carolina, foi uma loucura, porque havia uma comoção, uma culpa europeia, alemã, sobre a discussão de um corpo negro, a representatividade de um corpo negro e o que a violência que esse corpo de alguma forma impingia à naturalidade do racismo e da branquitude. Lá em Alemanha, mas também aqui no Brasil.
Quando a gente foi refazer o Anjo negro, porque fizeram uma pesquisa e o Sesc quis incluir o trabalho em uma Virada Cultural só do Nelson e me chamaram para fazer uma intervenção, e a resposta à intervenção foi: “Nossa, mas isso é muito violento”. Todo mundo achou que a abordagem foi muito violenta e a gente disse: “Não, mas é o texto do Nelson, a gente não mudou nada, só trocou a palavra negro por branco e usamos as perucas [louras] do Castorf”.
Lá no Castorf foi uma aceitação com relação a essa discussão. Quando a “proponência” põe em evidência algumas questões mais difíceis de um alemão colocar em cena – porque há uma culpa muito bem trabalhada em vários meios de comunicação devido a questões econômicas e etc. –, nós conseguimos dialogar de outro jeito com o nosso público. Então quando fomos fazer isso no Sesc Belenzinho [interlocutores responsáveis] disseram que era muito violento.
Acho que a gente passa por uma experiência que é da aceitação da violência pela ótica de um grande diretor alemão – e a gente destruía o cenário, quebrava, chutava… Tinha uma cena que era Os Crespos entrando em cena para quebrar o cenário, era altamente violento. A gente falava na frente das câmeras, falava gritando, e o Castorf pedia, ele gosta disso – e em nenhum momento fomos acusados de violência. Pois quando a gente retoma aquilo, como um intervenção [a partir do que foi a experiência com o então diretor do Volksbühne], para menos pessoas, longe daquele palco do Sesc Vila Mariana e da aceitação do teatro alemão, a gente é visto como um grupo violento, que usa da violência.
E essa nunca foi a nossa bandeira, sempre lidamos com o público como um espaço de cumplicidade – se você saiu da sua casa para assistir a nossa peça, para dividir com a gente esse lugar, nós estamos numa relação de cumplicidade. No entanto, essa relação de cumplicidade, nas palavras violentas do Nelson, se transformou numa violência que é naturalizada para os corpos negros na nossa sociedade.
Essa experiência marcou, tanto que a gente estreia o Carolina de perucas louras, como fazia em Anjo negro [de Nelson Rodrigues com a Lembrança de uma revolução: A missão de Heiner Müller]. A gente discute essa peruca o tempo todo em cena, toda uma questão a partir da experiência que o Castorf vai nos dar. Que de alguma forma abre nossos olhos para essa a questão de não territorialidade. Viemos de outro lugar para São Paulo e estamos dentro de uma escola [a EAD] que não lida com o nosso corpo como pressuposto criativo, então vamos sempre na fricção. A gente aproveita a experiência com o Castorf, a experiência do conflito como poética do grupo, como poética de limite entre esse território imaginado.
Fiquei aqui pensando sobre território e na minha cabeça veio isso, esse território imaginado de disputa no qual a gente tem que se equilibrar com muita dificuldade. Porque, apesar de termos 18 anos e sermos conhecidos em alguns lugares (a gente chega em outros estados, as pessoas conhecem o nosso trabalho, já viram o nosso trabalho), a gente vive numa dificuldade muito grande de equilíbrio. A gente estreou um espetáculo em 2016 e agora em 2023 é que a gente vai estrear novamente um outro espetáculo. É uma trajetória muito marcada por um insistência, que apesar da experiência, ainda é colocada num lugar secundário, a gente ainda tem um determinado valor para a produção das nossas peças.
Se a gente olha para o Sesc, por exemplo, você tem aí alguns diretores hoje, não negros, que têm seu trabalho financiado para produzir pensamento sobre um tal teatro negro. Hoje a gente ainda se equilibra nesse lugar de “é importante, é interessante, traz público, mas trabalha ainda com determinada chave, num determinado espaço, num determinado valor”. Ainda se busca esse enlace entre o teatro estabelecido e esse teatro que vem discutir a partir de uma outra forma estética. E hoje a gente luta não mais para falar da importância, da necessidade da ocupação desses espaços, mas para provar que o nosso público conhece a raiz do trabalho. Não adianta que a gente esteja só no palco, como no Bossa nova [Aquela Cia, Rio de Janeiro], por exemplo, aquele espetáculo em que a direção, a produção, a dramaturgia são de pessoas não negras e que se utilizam das histórias de alguns atores, da experiência de alguns artistas, para discutir uma certa negritude dentro do teatro. Ou como na experiência que a gente tem agora, recente, com Uma leitura de búzios, em que a gente se vê morrendo o tempo todo em telas gigantes [encenação de Marcio Meirelles, colaboração de Cristina Castro e João Milet Meirelles, com texto de Monica Santana e coordenação de pesquisa de Gustavo Melo Cerqueira sob produção do Sesc São Paulo, estreada em 2022, envolvendo 27 atores e três músicos para propor uma leitura do movimento político que aconteceu em Salvador, em 1798, conhecido como Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates — inspirado nos ideais da Revolução Francesa (1789-1799) e na Revolta de São Domingos, atual Haiti (1791-1804)].
É quase uma mea culpa, para falar de um lugar de apoio ou de irmandade que insiste em nos colocar ajoelhados no início do espetáculo, ajoelhados no final do espetáculo, subalternizados durante todo o espetáculo em telas gigantes em que a gente diz sobre uma revolução que ainda está por vir, os búzios ainda cairão, mas que o tempo todo é destituída. Então há um imaginário e o nosso público já reconhece esse imaginário, a experiência, porque é um público formado pelo Clariô, pel’Os Crespos, pelas Capulanas, pelo Coletivo Negro. É um público que se reconhece na experiência e na pesquisa uma trajetória.
A gente ainda luta para que esses espaços não sejam ocupados com valor, com importância, com distribuição, com circulação, com internacionalização, a partir de uma leitura sobre a nossa experiência. E esta pauta está colocada exatamente porque é essa experiência que se questiona.
Creio que essa relação com o Castorf nos traz esse lugar de reflexão. Do quanto a nossa sociedade aceita que um determinado olhar prepondere com dinheiro, verba, espaço, circulação garantida, hotel, tudo, os melhores palcos, enquanto a gente ainda precisa hoje mendigar por uma estreia, mendigar por uma temporada. Uma única temporada longa que Os Crespos fez no Sesc foi o Madame Satã e nós vendemos todos os ingressos da temporada de dois meses na primeira semana. Foi a primeira temporada de grupo de teatro negro no Sesc São Paulo [registre-se que no início de 2024 duas criações do grupo ficaram em cartaz em unidades da instituição, A solidão do feio, com Sidney Santiago Kuanza, em Pinheiros, e o infantojuvenil De mãos dadas com a minha irmã, protagonizado pela própria Lucelia, no Belenzinho, vindo de temporada no fim de 2023 no Bom Retiro]. Porque antes só haviam peças importadas ou a gente fazia uma intervenção, uma apresentação. Ou seja, em São Paulo a gente está muito atrás de outros lugares. Ainda temos um lugar muito fechado por esse pensamento, muito quadrado.
A gente ainda está numa luta de espaço que se equilibra aí nesse topo de interesses. Eu li numa pesquisa que 43% das empresas que discutem a questão racial ou que têm a presença de pessoas negras são bem-sucedidas. Então, é a coisa mais importante no mercado hoje, é você conseguir representação identitária. Estar no topo dos interesses econômicos também nos coloca numa condição de disputa agora de presença e de pertença, porque para mudarem a história é muito rápido, para pegarem da nossa história o que é interessante é muito rápido. Hoje a gente está em determinados lugares, mas ainda subalternizados a um olhar muitas vezes do diretor branco que vai olhar para essa experiência e ganhar um grau de importância que nós não ousamos ainda imaginar que seria dado a esse teatro. A gente chama de teatro negro, é um teatro negro, a gente não discute essas experiências, mas como isso é utilizado para se mobilizar muitas vezes uma potência de discurso que é inegável.
Dione
Eu vou ser breve. Acho a sua pergunta maravilhosa [para Manoela], é uma das pautas e é uma das coisas que a gente tem que falar. Quando a gente pensa a contranarrativa, a gente pensa mudança de imaginário, a gente está pensando em mudar a partir da narrativa, construir a própria narrativa. E a quem interessa a manutenção e a perpetuação das imagens, desse imaginário? Porque é um imaginário confortável, que não afeta, que não desestrutura, que não desestabiliza.
Hoje mesmo eu conversava com um ex-aprendiz e dizia a ele que a gente escreve dramaturgia, a gente não é redator do Jornal Nacional, então tem uma diferença aí. Como é que a gente desestabiliza a partir da poética, da poesia e a partir de experiências retratadas, representadas no palco que traduzem a nossa experiência enquanto pessoas pretas no mundo capazes de afeto, de amor, de erro? Como é que a gente trabalha em cima disso, diante de um mundo que se sente muito confortável em ver os nossos corpos, as nossas presenças, abatidas, tristes, imobilizadas?
Nesse sentido, pensar o recorte, criar imaginários que correspondam à experiência do que a gente vive é urgente, é muito importante, e não é bem-aceito nesses espaços. Existe um fetiche narcísico desse pacto da branquitude, e Cida Bento [psicóloga, autora de O pacto da branquitude, em que apresenta evidências acerca do acordo não verbalizado de autopreservação que perpetua o poder de pessoas brancas] fala muito bem sobre isso. Primeiro tem a mea culpa no sentido de: “Ah, estou denunciando” (todo mundo sabe, não é denúncia, denúncia é quando ninguém sabe). Depois a manutenção de um imaginário que não perturba, que não convoca esse pacto a se pensar – como eu atuo nesse pacto, como esse pacto me influencia ou me atinge.
E somente a partir justamente de novos imaginários, de contranarrativas que não caminhem por esse lugar já tão gasto, é que a gente vai conseguir desestabilizar imageticamente o que está posto. E a gente está fazendo isso a partir do audiovisual, do teatro. É um trabalho extenso porque passa por letramento de sala de roteiro, passa por um letramento dentro de companhias de teatro. Eu me pego às vezes discutindo coisas muito básicas, me assustam. Para mim, o privilégio de não se pensar é um dos maiores absurdos que a gente colheu: lidar com pessoas que têm o privilégio de não se pensar, porque nós fomos obrigadas a nos pensarmos desde criança, já que fomos “outrificadas”. Nós lidamos com a invenção de algo que a gente não criou e muitas vezes tendo que performar uma negritude, porque tem um limite para ser negra, tem a história do “eu não sou seu negro”, “eu não sou sua negra”.
Isso passa por narrativa, isso passa pelas relações, isso afeta tudo, e a gente vai ter que arranjar formas, estratégias através da poética, da poesia e da construção de contranarrativas para virar essa chave, para naturalizar essas presenças, porque senão a gente continua performando um outro que a gente não criou, continua numa posição de atuar num lugar que a gente não construiu. É aquilo de se falar em primeira pessoa, Lélia Gonzalez fala muito bem sobre isso, dessa criança. Não é dar voz. Acabou a era dos artistas que dão voz, é chegada a hora de ampliar vozes, de ouvirmos as vozes que não estão ainda ocupando o espaço. Quero ouvir essa voz, eu quero saber, seja lá como ela aconteça, pela grafia do corpo, não sei. Então eu acho que passa por essas questões, que me incomodam profundamente.
Luiz Fernando
Acho que foi um encontro incrível. Eu rezo para que a gente realmente tenha gravado todas essas vozes, porque a gente tem um programa de rádio, o Rádio TUSP, que vai ao ar aos sábados, às 6 da tarde, já tivemos os dois primeiros, esse vai ser o quarto programa. Se gravou como eu espero que tenha gravado, a gente tem material. Estava falando de entrevistar vocês, mas acho que não vai precisar. Só queria pedir que vocês mandem trechos musicais dos espetáculos porque é bacana para o programa.
Acho que é isso, O cordão de ouro da periferia. Para mim, confesso uma ignorância absurda sobre o trabalho de vocês [para Naruna], fiquei impressionadíssimo. Desde a ideia da precariedade que começa onde vocês constroem uma estética até toda essa experiência que você descreve com a comunidade. Acredito que não poderia ter um depoimento mais forte do que é pensar o teatro na periferia de São Paulo [no caso, na divisa], em Taboão da Serra. Os Crespos, que eu vi nascer, eu estava no CAC [Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP], acho que sua fala final [para Lucelia] tem toda a razão. Dione, velha companheira de outros carnavais. Fico muito feliz e quero agradecer a todas as pessoas que vieram, sobretudo aqui a gente está tentando meio na raça também. E já adianto: Os Crespos tem espaço aqui no TUSP, o TUSP é um espaço que está se abrindo para um teatro que não é aceito em outros lugares.
Então é isso, vamos encerrar agora, uma salva de palmas para nossas estrelas.
.:. Como foi o diálogo de abertura da Roda de Memória do Futuro, focado no tema Lei de Fomento & novas impossibilidades: financiamento, produção e distribuição, com participações de Rudifran Pompeu, Aury Porto e José Fernando Peixoto de Azevedo
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