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Novos velhos corpos 50+, direção geral Suzi Weber, com Coletivo 50+ (Eva Schul, Monica Dantas, Weber, Eduardo Severino, Rossana Scorza e Robson Lima Duarte)

Artigo

Mover-se em memórias corporais

Espetáculos de RO e RS no Projeto Conexões Norte-Sul

13.3.2025  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Ana Vianna

“A gente é feito roda, sanfoneiro, só se equilibra em movimento”. Quando o dono da trupe e cafetão Lorde Cigano fala ao sanfoneiro Ciço, na parte final do filme Bye bye, Brasil (1979), de Cacá Diegues, a Caravana Rolidei já tinha trocado de caminhão e adotado a grafia Rolidey, agora em letreiro luminoso. No roteiro, seus artistas ambulantes rumam de Brasília para Rondônia, na tentativa de desviar da modernidade da televisão que tomava de assalto os lares urbanos do país. Levemente adaptada, a frase é citada no espetáculo teatral Meu amigo inglês (2022), do diretor e dramaturgo Mário Zumba, uma produção do Grupo O Imaginário, em atividade desde 2005 em Porto Velho.

O jogo entre equilíbrio e movimento pula de uma cena de rememorações interpretada por um casal de personagens palhaços, permitindo, assim, estabelecer pontes com mais dois trabalhos presentes na primeira semana do Projeto Conexões Norte-Sul, que acontece de 6 a 16 de março no Itaú Cultural, capital paulista. Afinal, mover-se também constitui sensações e sentimentos basilares na pesquisa e criação do espetáculo de dança Novos velhos corpos 50+, de Porto Alegre, coreografado e atuado por coletivo de seis artistas, e, em certa medida, do solo ao ar livre Ensaio geral, também de Porto Velho.

São três criações que convidam como que a tocar a tapeçaria forjada em cada obra com seus desígnios, seus avessos e, por vezes, suas contradições.

Leia sobre a primeira semana do Projeto Conexões Norte-Sul envolvendo espetáculos ‘Novos velhos corpos 50+’, do Coletivo 50+, de Porto Alegre, ‘Meu amigo inglês’, do Grupo O Imaginário, e ‘Ensaio geral’, de Klindson Cruz, o Palhaço Pingo, ambos trabalhos de Porto Velho, uma iniciativa do Itaú Cultural

Os pressupostos da história de Meu amigo inglês são promissores. Um palhaço veterano, Theodoro, atuado por Chicão Santos, foi diagnosticado com doença de Parkinson há cerca de 15 anos, mesmo período em que se enamorou de Madalena, por Flávia Diniz, que seguiu os passos dele com o circo.

Enfim, como conciliar a realidade diante da degeneração do sistema nervoso? E a disciplina dos remédios, inclusive antidepressivos, perante a vocação irradiadora da alegria como ofício abraçado há décadas?

O espetáculo aborda os distúrbios neurológicos mantendo a humanidade de Theodoro. Há contornos poéticos em assumir silêncios introspectivos cortados pelo ranger de um banquinho de madeira dobrável. Ou ao posicionar a atriz de costas para a plateia por minutos, ela ao fundo e o ator em primeiro plano, compondo uma sobreposição visual intimista.

No cenário minimalista, um tapete retangular delineia ao mesmo tempo o picadeiro e o trailer, casa sob rodas do casal em meio a poucos objetos. Mas a encenação de Zumba não consegue instaurar síntese equivalente. A porosidade do espaço cênico exíguo seria muito bem-vinda também às próprias presenças de Santos e Diniz, de desenhos mais estanques. Quando o protagonista pergunta “Um palhaço decrépito, como é que funciona?”, ele o faz sem brecha para a comicidade que a sentença dá margem.

Meu amigo inglês chega a esboçar um lirismo circense a partir das entrelinhas algo fellinianas do texto. Sobressai, no entanto, o drama existencial, a voz dominantemente melancólica do palhaço que aos poucos retraça o destino vislumbrado para si. Um estado demasiadamente humano, mas como levá-lo à cena com nuanças?

Entre idas e vindas temporais e espaciais, rememora-se a celebração do primeiro ano de casamento, o surgimento de sintomas como tremores e a participação da dupla no Grande Circo Irmãos Totó. Ali, muito brevemente, as vibrações vocais, gestuais e coloridas dos números representados pelo casal saltam à vista por contrastar solaridade.

Vale pontuar também o modo patriarcal como Meu amigo inglês retrata a relação entre o velho palhaço e a jovem palhaça – a diferença de idade em cena é expressiva –, as variações dela como aprendiz de ofício, esposa e cuidadora. Ainda que Madalena reivindique a mesma condição de palhaça e declare não querer apenas pajear o marido, há situações, posturas e vocalizações que reforçam níveis de subalternidade, diminuindo o poder de refutação da própria nos diálogos.

Eliane Viana Flávia Diniz e Chicão Santos contracenam em ‘Meu amigo inglês’, texto e direção de Mário Zumba, com Grupo O Imaginário, de Porto Velho

Antietarismo

Os graus de intimidade soam artisticamente ainda mais explícitos em Novos velhos corpos 50+, em que seis bailarinas e bailarinos, também longevos enquanto coreógrafas e coreógrafos, rompem estereótipos e preconceitos dentro do próprio campo de trabalho, bem como entranhados na sociedade de consumo.

Decana entre seis pares em cena, a artista, professora e pesquisadora Eva Schul, de 77 anos, lembrou que, até poucas décadas atrás, “Bailarino de 30 anos era velho”. No diálogo com o público após a primeira noite de apresentação, ela, 61 anos de prática e pedagogia em torno da dança, declarou-se orgulhosa em “Se permitir estar, ter esse prazer em cena”.

Não há resquício de condescendências na autodeclarada “coreografia-manifesto” atuada por Eduardo Severino, Mônica Dantas, Robson Duarte, Rossana Scorza, Suzi Weber e Schul. Com idades nas casas de 50, 60 e 70 anos, o conjunto mostra que as correlações de força tempo-espaço no corpo e no palco ganham outras cadências. Como Scorza não pôde viajar, por razões de saúde em família, as outras cinco pessoas ressincronizaram dinâmicas, ao menos assim transpareceram, desimpedidas de ansiedades.

Como se a bagagem jogasse a favor da descoberta de novos encaixes, requebros e despertares musculares, de maneira a imprimir voluptuosidade raramente presumida em corpos envelhecidos. Vocabulário e linguagem gestual adquirem malemolências outras, amplificadas pela música ao vivo dos instrumentistas Dora Avila, Flavio Flu, Marcelo Fornazier e Vasco Piva. Uma sonoridade dançada com a liberdade rítmica prima da fusão característica do jazz, dando ares de improviso.

Posto que ver e falar são outros verbos-sentidos, resultam notáveis as ocasiões em que a língua ou os olhos movimentam-se na escala da sintonia fina diante de espectadores fisgados feito zoom pelo território da face de quem dança.

O recuso audiovisual, por sua vez, dá a impressão de que excede em determinados instantes. Como quando o total de atuantes está no palco e cada um tem sua imagem no respectivo quadradinho projetado simultaneamente na tela. A mixagem redunda a epidemia das telas e teclas.

Sob direção geral de Suzi Weber e direção cênica de Cláudia Sachs e Lisandro Belloto, Novos velhos corpos 50+ (2022) perfaz um caminho singular a partir dos afetos, processos criativos e posicionamento político que entrelaçam as existências de seus integrantes, algumas amizades com mais de 40 anos. Ciente da condição da velhice e seus limites, a performance apropria-se deles e ombreia o vigor de projetos artísticos testemunhados em palcos brasileiros, a exemplo de Kazuo Ohno, Angel Vianna, Renée Gumiel, Dorothy Lenner e a trupe atuante em Corpos velhos – para que servem? (2023), com Célia Gouvêa, Décio Otero, Iracity Cardoso, Lumena Macedo, Marika Gidali, Mônica Mion, Neyde Rossi e Yoko Okada, em iniciativa idealizada e dirigida pelo bailarino e coreógrafo Luis Arrieta, também em cena.

Marcos Paulo Klindson Cruz, o Palhaço Pingo, no solo ao ar livre ‘Ensaio geral’, dirigido por Jean Palladino, uma produção de Porto Velho

Desafios da interação

Espetáculos levados a espaços como ruas e praças têm, por natureza, o pressuposto da comunicação direta com a audiência em 360 graus. Artistas adeptos desse modo de pesquisar, criar e produzir em artes cênicas orientam-se por essa disponibilidade atávica. Em Ensaio geral, o ator Klindson Cruz atua como o Palhaço Pingo e narra ao público de todas as idades uma história em que põe à vista os bastidores da arte de representar.

A metalinguagem é uma proposição das mais inventivas e, no caso, requer níveis de atenção que, durante a primeira tarde de apresentação no Bulevar do Rádio, entre o Sesc Avenida Paulista e o Itaú Cultural, o artista demonstrou que ainda carece azeitar seus dispositivos de trocas segundo o próprio roteiro prevê e desfecho nem sempre complementa. Sabe-se que interação e frustração rimam como uma constante no teatro de rua ou no circo, justamente por estimular identificações e riso.

Para começar, Cruz já surge em cena como ele mesmo, preparando o terreno para a plateia que vai se formando sentada em semiarena. Ele diz que aguarda a chegada da diretora da peça para iniciar a sessão. Por meio de um telefone de brincadeira, duas latas unidas por barbante, simula conversar com ela e, como atrasará, decidi iniciar a apresentação.

Desponta então o Palhaço Pingo, em trajes de marinheiro, a contar a história de um barquinho, de nome Pingo 1º, que aprendeu a velejar sem saber para onde. O espetáculo é feito dos encontros da figura da embarcação com outros seres animados, como uma flor, um redemoinho, uma aranha e o mar – que ganham vida com a participação de crianças e adultos.

É nesse ponto que o trabalho de Cruz/Pingo mostra a necessidade de ancorar estratégias mais fluídas e sutis. O artista mais dirige espectadores em potencial do que convida as pessoas a contracenar. A falta de abertura ficou evidente ao chamar um espectador adulto, pessoa surda, bem-humorada, com a qual tinha a chance de interagir de maneira extraordinária – a intérprete de Libras aproximou-se disposta a jogar com a mesma energia –, porém recuou diante das primeiras e naturais dificuldades de compreender seu interlocutor, de quem queria saber se já fora assaltado nas ruas da cidade, e preferiu pedir que retornasse ao seu lugar.

Nascido em Manaus e atualmente professor universitário em Porto Velho, Klindson Cruz é dirigido pelo ator paraense Jean Palladino, palhaço Caco, que contribuiu para sua iniciação na arte da palhaçaria há oito anos, ao lado da atriz Selma Bustamante, a palhaça Kandura. Ela é a diretora imaginária com quem Pingo conversa pelo “latafone” em Ensaio geral. Bustamante, de fato, iria dirigir o espetáculo, mas morreu em 2019. A artista fez parte do Grupo Teatro Ventoforte em São Paulo, nas décadas de 1980 e 1990, tendo o ator, diretor e dramaturgo Ilo Krugli como norte. Paulista, viveu mais de 20 anos em Manaus. Familiares dela assistiram ao espetáculo no Bulevar do Rádio.

.*. Texto escrito como uma das ações do Projeto Conexões Norte-Sul, a convite de Itaú Cultural e Sesc RS.

Novos velhos corpos 50+

Coletivo 50+ (Porto Alegre)

Ficha técnica

Coreografia e atuação: Eva Schul, Monica Dantas, Suzi Weber, Eduardo Severino, Rossana Scorza e Robson Lima Duarte

Direção cênica: Cláudia Sachs e Lisandro Belloto

Trilha sonora: Flavio Santos (Flu)

Músicos: Dora Avila, Flavio Flu, Marcelo Fornazier e Vasco Piva

Vídeos: Alex Sernambi

Videomapping: Lisandro Bellotto

Iluminação: Bathista Freire

Fotografia: Adriana Marchiori

Produção: Suzi Weber, Cláudia Sachs e Lisandro Bellotto

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Meu amigo inglês

Grupo O Imaginário (Porto Velho)

Ficha técnica:

Elenco: Chicão Santos e Flávia Diniz

Figurinos: Zaine Diniz

Cenografia: Chicão Santos e Ismael Barreto

Dramaturga sonora – Denise França Reis

Programação visual, filmagem e registro audiovisual: Édier William, Rafa Brito e Júnior Pereira

Áudio direto: João Belfort

Técnico de som: Del Porto e Davi Macieira

Arte: Maciste Costa

Costureira: Nilza Batista

Intérprete de Libras: Cleffer Fernanda

Iluminação: Edmar Leite

Texto e direção: Mário Zumba

Assessoria de comunicação: Eliane Viana

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Ensaio geral

Klindson Cruz, Palhaço Pingo (Porto Velho)

Ficha técnica:

Palhaço Pingo: Klindson Cruz

Diretor: Jean Palladino

Sonoplastia: Robson Andrey

Composição cenográfica e adereço cênico: Klindson Cruz

Cenotécnico: Ismael Barreto

Figurino: Mara Pacheco

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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