Artigo
20.3.2025 | por Valmir Santos
Foto de capa: Nando Espinosa
Nos últimos dias, a memória reacendeu imagens dilacerantes geradas pela pandemia de coronavírus que causou mais de 7 milhões de óbitos no planeta, desde março de 2020. O distanciamento social foi uma das medidas mais adotadas por governos não negacionistas, ao contrário da criminosa gestão do Ministério da Saúde no Brasil, sob governo civil-militar. Como se sabe, nos períodos mais críticos, antes da chegada das vacinas, a medida visava a restringir a interação entre pessoas para diminuir a velocidade de transmissão. Pois reminiscências daquele olho de furacão sanitário podem ser percebidas em outras chaves segundo o corpo sócio-histórico de diferentes formas de lonjuras e proximidades, os vãos e vens que cruzaram espetáculos e ações de Rondônia e Rio Grande do Sul durante a segunda e última semana do Projeto Conexões Norte-Sul, organizado por Sesc RS e Itaú Cultural, de 6 a 16 de março, na sede da instituição paulista, em simultaneidade aos cinco anos do princípio da COVID-19.
Perto do final de uma apresentação de Trivial – Um espetáculo de b-boys, seus protagonistas, inclusive uma b-girl, expressaram-se em palavras para além do já potencializado via texto corporal. Um deles disse, em tom de frustração: “Tô cansado”. Minutos antes, em cena de interação direta com o público, quando seus pares também desceram do palco para conversar com a plateia, ele ficou parado próximo a um dos corredores da sala, estendeu a mão por um tempo, mas ninguém se levantou para cumprimentá-lo. Daí o desabafo que tocou na baixa qualidade da atenção ao outro na sociedade, a começar do entorno imediato do cotidiano, um dos assuntos abordados pelo Grupo n Amostra, de dança urbana de Porto Alegre.
Relato acerca de ‘Trivial – Um espetáculo de b-boys’, que inclui uma b-girl, do Grupo n Amostra, e ‘Teatro dos seres imaginários’, da Cia. Seres Imaginários, ambos trabalhos de Porto Alegre, e ‘A cabeça de Tereza’, com Jam Soares, mulher afroamazônida em Porto Velho, além de dois encontros reflexivos que fizeram parte da segunda semana do Projeto Conexões Norte-Sul, na capital paulista
No início de uma sessão de A cabeça de Tereza, solo escrito e atuado por Jam Soares, mulher afroamazônida, moradora em Porto Velho, ela surge do fundo da plateia cantando e apertando a mão da maioria de espectadoras e espectadores. Por cerca de dez minutos de saudação, circulando entre as fileiras e subindo ao palco que também acolheu pessoas em cadeiras nas laterais, entoa os versos: “Eu venho aqui cantar pra chamar meus companheiros/ Eu venho aqui cantar pra chamar minhas companheiras/ Recebam o meu afeto que a luta é todo dia/ Recebam o meu afeto que só se vence com energia”. Para logo em seguida dizer-se cansada do país dividido em dois. Não referindo-se à mal definida polarização política (o que está em xeque é a democracia), mas, sim, às desigualdades de renda, de classe, de gênero e de raça que afetam a população há séculos. De um lado, ricos cada vez mais ricos. De outro, “corpos empilhados”, existências “devoradas pelos grandes tubarões brancos”. Se a distância significa o espaço entre dois pontos, os dois espetáculos a materializam desde o plano simbólico que, por sua vez, ecoam as realidades e materialidades de que tratam/falam.
Formas de lutar
O sexteto dançante de Trivial subverte a mera transposição de um dos elementos fundamentais da cultura hip-hop, o breaking, e o elabora em cena enquanto coreografia e pensamento tributários dos bairros periféricos, por vezes centrais mesmo, em que a juventude (e aqui não vai régua etária, mas leva em conta o espírito) pratica os fundamentos corporais e os recria também como exercício de escuta. Há silêncios veementes nessa criação. Ela promove dobras de uma dramaturgia do movimento a gritar estilos de vida e formas de indignar-se. A brincadeira e ligeireza dos corpos corais, duetos ou individuais compõem saliências poéticas no tablado em tese vazio, expandido pelo desenho de luz ou circunscrito por irônicos separadores de fila única. Constrói-se uma paisagem humana extraordinária, no sentido do que escapa ao universo popular urbano propriamente dito.
Assim como a pesquisa e o processo criativo de b-girl e b-boys emanaram de si e do território em que estabeleceram vínculo, na fricção com seu diretor, A cabeça de Tereza é fruto essencialmente da história de vida e do lugar em que vive Jam Soares. Cada projeto artístico encara a batalha a seu modo.
O caráter autoral fica patente na presença de Soares na idealização e concepção oriundas de sua formação em licenciatura em teatro pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR), onde o diretor Luiz Lerro leciona. Presença que lembra relatos históricos da recepção acerca dos primeiros passos da cantora Maria Bethânia nos palcos, aos 18 anos, no show-manifesto Opinião, no Rio de Janeiro, há exatos 60 anos, sob direção de Augusto Boal. Em poucos minutos, a atuante de Porto Velho envolve o público como aliado na narrativa e na condição de parceria na defesa do esconderijo em que sua protagonista, Tereza Sankofa, se posiciona com firmeza contra injustiças de toda ordem. A partir dessa situação de esquiva, vêm à tona contextos sobre Tereza de Benguela, a escrava de África que virou rainha e liderou um quilombo de negros e indígenas por 20 anos, na área onde atualmente fica o Mato Grosso. Em admiração a ela, a atuante fia-se em críticas aos alarmantes índices de violência contra a mulher em Rondônia, às contradições do setor de agronegócio, assim como evoca direitos fundamentais na Constituição da República Federativa do Brasil, não levados ao pé da letra por governantes e parlamentares. Causas candentes nos dias de hoje, mas a ação se passa em 2035, no que a artista parece assumir o conceito de afrofuturismo para conceber a sua heroína e depositar tudo de ruim no Estado Fundador, obviamente autoritário e maniqueísta, à maneira da distopia do escritor inglês George Orwell em 1984. Não é pouco para quem está se iniciando no ofício.
A imaginação no poder
Um terceiro espetáculo na derradeira semana de programação, Teatro dos seres imaginários, da Cia. Seres Imaginários, de Porto Alegre, opera outro tipo de distanciamento para mover o público do chão ao céu das infinitas possibilidades na plataforma ficcional. Pés e cabeças dão-se as mãos, por assim dizer, quando os sentidos são aguçados quando cada pessoa participante coloca a cabeça em um dos buracos na base da caixa-preta de tecido situada a metro e meio do piso no Bulevar do Rádio. A experiência imersiva entre as sensações do dentro e do fora arrebata os instintos mais lúdicos. O balé de bonecos manipulados em suspenso atiça a livre associação fabular com suas texturas mil sob aval da inspiração do Livro dos seres imaginários (1957), escrito pela dupla argentina Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero. Um mergulho universalizante a reboque de criaturas artesanais no microespaço-tempo de dez minutos por turno de até 18 pessoas respirando o mesmo ar encantatório.
Ponderações
As apresentações de sala foram seguidas por Pulsações, como chamados os bate-papos mediados entre artistas e públicos, pela jornalista e crítica teatral Pollyanna Diniz (site Satisfeita, Yolanda?) e pelo jornalista e crítico Kil Abreu (Cena Aberta). Reflexões também impulsionaram mesas igualmente noturnas. Modos de produção e seus operários envolveu o ator e produtor Chicão Santos, do Grupo O Imaginário, de Porto Velho; a produtora independente Luka Ibarra, de Porto Alegre, e a atriz e produtora Cynthia Margareth, de São Paulo, com mediação de Abreu. Já Curadorias, circulações partilhou relatos de Abreu, que dirigiu o Departamento de Teatros na Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo, nos anos 2000, e a gestora cultural Galiana Brasil, que trabalhou no Sesc PE, no Recife, e está gerente do Núcleo de Curadorias e Programação Artística do Itaú Cultural, diálogo que teve mediação da também gestora cultural Jane Schoninger, coordenadora de Artes Cênicas do Sesc RS.
Seja no campo da linguagem, seja nas políticas públicas ou institucionais, houve margem nessas intervenções para ponderações em níveis poéticos, críticos e afetivos. Com alguns diagnósticos agravantes, e não poderia deixar de ser, quando o próprio Ministério da Cultura foi extinto na gestão de Bolsonaro, em 2019, após tentativa de Temer, no período anterior, de convertê-lo no antigo Ministério da Educação e Cultura, medida refutada por atores políticos, setores culturais e a sociedade civil que se organizaram no movimento Ocupa MinC, gerando recriação da pasta. Felizmente, o governo Lula retomou o ministério. Não sem razão ainda, outros tópicos perpassaram distintos pontos de vista: reestruturação pós-desmonte na esfera nacional, processo de despolitização em curso na sociedade, a falsa moralidade mandando as cartas em níveis municipal, estadual e federal, inclusive no âmbito de instituições privadas, despotencialização de festivais, a dependência de editais, a democratização dos modos de produção, as pautas sobre direitos sociais e seus impasses, as curadorias das ausências (acerca de projetos não selecionados em determinados certames e como cada agente pode implicar-se mais em relação a suplências e que tais). De fato, foram diversas, por vezes produtivamente divergentes, as linhas de força do Conexões Norte-Sul. Como a constatar que, afinal de contas, “A cabeça pensa onde os pés pisam”, como afirmou Brasil, lembrando máxima que o frade dominicano, escritor e jornalista Frei Betto costuma difundir em suas falas.
.*. Texto escrito como uma das ações do Projeto Conexões Norte-Sul, a convite de Itaú Cultural e Sesc RS.
Trivial – Um espetáculo de b-boys
Grupo n Amostra (Porto Alegre)
Ficha técnica
Direção e coreografia: Driko Oliveira
Com: B-girl Naju, Daniel Cavalheiro, T2, Deaf, B-Boy Julinho RC e B-Boy César RC
Iluminação: Guto Greca/Luka Ibarra
Sonorização: Driko Oliveira
Trilha sonora: Sustain Produções
Assessoria de imprensa: Roberta Amaral
Produção: Luka Ibarra/Lucida Desenvolvimento Cultural
Fotografias: Nando Espinosa
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A cabeça de Tereza
Jam Soares (Porto Velho)
Ficha técnica:
Dramaturgia e atuação: Jam Soares
Direção: Luiz Lerro
Técnico de som: Gabriel Corvalan
Iluminação: Edmar Leite
Preparador vocal: Marcos Grutzmacher
Trilha sonora: Thiago Maziero
Composição musical: Jam Soares, Laíssa Pereira e Thiago Maziero
Vozes: Adrieli Lara, Gabriel Corvalan, IA (inteligência artificial), Jam Soares, Laíssa Pereira, Marcos Grutzmacher e Thiago Maziero
Arte gráfica: Maycon Moura
Artes presentes no espetáculo: Gaspar Knyppel
Assessora de Imprensa: Eliane Viana
Figurino: Selma Pavanelli
Costureira: Rita Magno
Objetos cênicos: Ismael Barreto
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Teatro dos seres imaginários
Cia. Seres Imaginários (Porto Alegre)
Ficha técnica:
Manipulação: Cacá Sena, Charles Kray, Elaine Regina e Silvia Regina Ferrare
Desenho e construção dos seres: OBA
Oficina de bonecos animados: Heloisa Dile, Renato Spinelli e Duda Spinelli
Iluminação: João Fraga e Maurício Moura
Operação de luz: Daniel Fetter
Operação de som e cenotécnica: Alexandre Saraiva
Música: Sérgio Olive
Cenografia: Cacá Sena
Videografismo: Juliano Ambrosini e Gerson Silva
Fotografia: Rique Barbo
Produção executiva: Fabiane Baumann
Roteiro e direção de cena: Jackson Zambelli
Criação e direção-geral: Cacá Sena
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.