23.2.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 23 de fevereiro de 1997. Caderno A – 4
Com trabalhadores da construção como tema, espetáculo tem energia para se indignar e encantar
VALMIR SANTOS
São Paulo – A dança brasileira vive um momento de resgate da brasilidade. Do grupo Corpo ao ator Antonio Nóbrega, as investigações passam pelo movimento da nossa gente. Não é exatamente uma novidade: nos anos 70, por exemplo, o Stagium se apresenta em pleno Xingu. Uma síntese da fusão do brasileiro do Nordeste com aquele da “cidade grande” de São Paulo é alcançado com vigor no espetáculo “Omstrab”, que cumpre temporada até o próximo Domingo no Teatro Sérgio Cardoso, Capital.
O ambiente dos trabalhadores em obras urbanas é o principal mote da coreografia. Por trás dos tapumes das construções existe toda uma linguagem própria, edulcorada, sobretudo pelos descendentes nordestinos que acabam inserindo sua cultura na cidade de concreto.
Fernando Lee concebeu um espetáculo que capta toda essa realidade com extremo lirismo e emoção. Para início de conversa, ele classifica seu trabalho como dança-teatro. Mas “Omstrab” acaba transcendendo: os cinco dançarinos, incluindo Lee, passam todo o espetáculo explorando uma sonoridade percussiva em seis próprios corpos.
Não há trilha sonora. São os atores-bailarinos que “tocam” seu corpo e colocam a voz em cena. Quem viu a apresentação do grupo inglês Stomp, no ano passado, tem noção do que os brasileiros podem fazer no palco.
Carlinhos Brown, Mestre Ambrósio, Chico Sciense & Nação Zumbi, mestres de maracatu rural, grupos de capoeira, enfim, as referências são inúmeras no País rio em ritmo. “Omstrab” se permite absorver toda a “salada” para incorporá-la em gestos, movimentos, voz e instrumentos como balde, serrote, toalha, berimbau, sanfona e outros.
Um número de sapateado de chinelo, um “duelo” de personagem com serrotes em punho, o recurso da mímica de HQ, enfim, são exemplos de cenas em que a entrega e a inventividade dos rapazes impressionam. Suam e parecem brincar ou jogar o tempo todo com o público na mão.
Tudo está impregnado de ritual, de passagem. A imagem de um dançarino empurrando um balde no chão com a cabeça, e suas “ancas da tradição” desenhadas na penumbra da iluminação, é representativa da intensidade que “Omstrab” alcança em alguns momentos.
Dá vontade de seguir a procissão de Nosso Senhor do Bonfim, com a sanfona lacrimejante, como nas peregrinações religiosas de populares. O espaço é ocupado com tanta magia que ultrapassa os limites do palco. Aliás, tudo começa lá fora, no saguão, com os rapazes de capacete, chinelo e batucando em baldes de plástico, cantando um “Carnaval em Sampa”.
Alex Martins, Luis Ferron, Paulo Bordhin, Sérgio Rocha e o próprio Lee demonstram um preparo físico de fôlego. Estão o tempo todo em cena, bem entrosados. “Omstrab” é um momento de agia na dança-teatro brasileira, com energia para se indignar e encantar.
Omstrab – Concepção e direção: Fernando Lee. Com o Núcleo Omstrab. De quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Sérgio Cardoso (rua Rui Barbosa, 136, Bela Vista, tel. 288-3611). R$ 15, 00. Até 3 de março.
Aos poucos, as interpretações densas, a boa projeção de voz do elenco e principalmente o deslocamento harmonioso do “coro” confirmam uma concepção de espetáculo com a verve antuniana.
Isso não depõe contra o trabalho. Ao contrário, “Lulu” mostra uma direção atenta, buscando caminhos próprios. Ferrara e sua Companhia de Arte Degenerada centra o trabalho no movimento Expressionista, que estabeleceu uma nova visão da vida e do fazer artístico a partir da Alemanha, na década de 30.
Transfigurar a consciência, cria um novo contexto de compreensão, na qual a condição humana possa ser examinada à luz da paixão, são metas do diretor.
Sob o ponto de vista estético, “Lulu” é afinada. O vazio cenográfico (Luis Rossi), o equilíbrio das cores no figurino e iluminação compõem um visual introspectivo e atemporal.
Mas há desequilíbrio nas atuações. A força de Portella, assumindo os papéis de pai e amante da protagonista da história, é um contraponto à esforçada Deborah Lobo. Sua Lulu não projeta com intensidade a lascívia e a volúpia que se espera de personagem tão controversa e demasiadamente humana.
O autor alemão Frank Wedekind (1864-1918) construiu um mito feminino digno de tragédia grega. Lulu espelha a dubiedade entre desejo e razão.
Ainda assim, os demais integrantes da montagem, Dênis Goyos, Annette Najman, Klaus Novais, Eduardo Semerjian, Doroty Rojas e Luiz Galasso têm presença e correspondem à concepção de Ferrara.
Lulu – A Caixa de Pandora – Com Débora Ferruço etc. Quinta a sábado, 21h30; domingo 20h30. Centro Cultural São Paulo (rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 277-3611). R$ 8,00. 80 minutos. Até 2 de março.
“Pequeno Mago” faz ritual de passagem
Em 12 anos de palco, o grupo XPTO consolidou um dos processos mais criativos da cena teatral brasileira. São trabalhos memoráveis, em que o espírito lúdico, a plasticidade de seus bonecos e a agilidade dos seus atores sempre marcaram presença, como em “Coquetel Clown”.
O ano passado foi muito especial para o diretor Osvaldo Gabrielli e sua trupe. O espetáculo “O Pequeno Mago” faturou os principais prêmios infantis. Essa, que pode ser considerada uma superprodução, reestreou para mais uma temporada gratuita no Teatro Popular do Sesi, em São Paulo.
Antes de mais nada, Gabrielli escreveu a peça com um profundo sentimento de esperança. Influenciado pelo tarô, compõe o ritual de passagem de uma criança para a adolescência como metáfora do ingresso da humanidade no terceiro milênio – estamos a quatro anos dele.
Essa nova era, a Era de Aquário, não é tratada com tinta futurista. Ela está mais próxima do que se pensa. Os vários e belos efeitos especiais utilizados em “O Pequeno Mago” não soam artificiais, como ficção científica a la “Jornada Nas Estrelas”.
Felizmente, o tratamento é bem outro. O XPTO prima pelo respeito ao público mirim e seus pais. Os mecanismos da montagem são transparentes. Duendes surgem por trás das árvores gigantes, um dragão enorme rompe no centro do palco, balangante feito um animal de verdade, e o Pequeno Mago, ao final, mergulhado em muita fumaça, de fato voa numa engenhoca que felizmente nada tem que ver com naves espaciais.
Essa cumplicidade imaginária com o espectador – nada é dado pronto, acabado – é uma virtude e tanta. Crianças e adultos são guindados a acompanhar uma viagem difusa no tempo e espaço, seguindo os passos de personagens fantásticos.
Não há propriamente uma interpretação na concepção da palavra. O aparato cenotécnico e a imperiosa marcação impedem um trabalho de ator mais verticalizado. É um preço a ser considerado.
A direção musical de Roberto Firmino, com execução ao vivo, responde pelo impacto do som dentro da montagem, oscilando o fundo e os picos com precisão. “O Pequeno Mago” converge a atenção de uma platéia sempre lotada porque lhe permite um estado onírico perseguido por muitos no teatro – e atingidos por poucos.
O Pequeno Mago – Sábado e domingo, 14h. Teatro Popular do Sesi (avenida Paulista, 1.313, metrô Trianon, tel. 284-9787). Entrada franca (retirar ingresso grátis com uma hora de antecedência).