23.11.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 23 de novembro de 1997. Caderno A – 4
Peça de José Vicente mantém atualidade dos enfoques social e religioso
VALMIR SANTOS
São Paulo – Num primeiro que plano, como quer José Vicente, “Santidade” expõe a vida de michê com a devida mácula cristã. A prostituição masculina está aquém da retidão divina. Mas o autor transcende o tema. A peça também expia a noção de pecado segundo o peso da crença católica. Mais: avança para dentro mas de uma juventude vivida das relações humanas no que elas têm de superfície e essência.
Há 30 anos, quando o então presidente Costa e Silva censurou “Santidade”, em seu ataque de moralidade cívica, ele provavelmente se ateve a algumas frases de impacto que, não necessariamente, refletem o âmago da história. Por exemplo: “O Cristo morreu sufocado; a Igreja matou Cristo!” – é uma das sentenças espulmantes que saem da boca de Arthur, o personagem-vértice da peça. “Eu não acredito em santo sem esperma!”, continua. Mais: “O Deus da juventude está morto!”.
O que José Vicente “pregou” em sua primeira peça, escrita aos 22 anos, era muito mais do que uma pichação à Igreja Católica. Os diálogos entre Arthur, ex-seminarista, e seu irmão Nicolau, na iminência de se tornar padre, constituem o eixo do texto. Arthur e Nicolau, uma corruptela do autor para homenagear o poeta francês Arthur Rimbaud.
Num pequeno apartamento barato do centro de São Paulo, os três personagens despem seus medos, angústias, desejos, iras, virtudes. Arthur vai ao inferno. Como michê, morando com Ivo, ele exorciza os fantasmas de uma juventude vivida em nome de Deus. Quando seu irmão chega, surge então a oportunidade de enfrentamento; de botar para fora o que ficou engasgado na garganta.
Arthur joga no limite da vida. É quem mobiliza os demais. Na interpretação visceral de Mário Bortolotto, o personagem atinge uma dimensão caótica da existência que é traduzida pelo ator em gestos estridentes e movimentos expansivos – como a reivindicar um território maior que o pequeno palco do Crowne Plaza, para efetivamente explodir. É no Arthur de Bertolotto/José Vicente que “Santidade” rouba fôlego do espectador – parece arrancá-lo da cômoda poltrona e jogá-lo ao centro do palco, tamanha é a emoção que pede e dá.
Na sua terna e delicada presença, o Nicolau de Nívio Diegues é o contraponto perfeito. “A tua inocência me faz mal”, chega a confidenciar Arthur, perplexo com a ingenuidade do irmão, ainda a fugir do sexo e reverberar a utopia cristã. “Ainda tenho medo de possuir meu corpo”, resigna-se Nicolau. O jovem Diegues demonstra segurança contracenando com dois atores experientes.
O Ivo de Antonio de Andrade quebra a densidade da peça com sua ligeireza. Dono de uma butique, sustentando Arthur e agora Nicolau, exerce uma forma de poder que lhe concede companhia na cama. Com Arthur nas mãos, tenta seduzir também o irmão, ainda que em vão. Andrade é afeminado sem carregar na afetação; sem camuflar a solidão da qual o personagem também padece.
Montada por Fauzi Arap, cotado no final dos anos 60 para o papel de Arthur, “Santidade” ganha nesses anos 90 uma aura stanislavikiana que o tempo ofuscou um pouco. Arap é um excelente diretor de ator. Sabe o que quer. Quando a matéria-prima humana é de bom grado, o resultado é um espetáculo vigoroso. A imagem é forte: cama e sofá puídos num cenário que se faz preencher sobretudo pela expressão dos atores, marca maior do diretor.
Trinta anos depois, a atualidade de “Santidade”, finalmente em cena, é o maior indício do poder de fogo de José Vicente com o teatro (“O Assalto”, “Hoje é Dia de Rock”, etc.). Homenageado recentemente em “Ventania”, texto de Alcides Nogueira, dirigido por Gabriel Villela, Vicente sai um pouco da reclusão manifesta para compartilhar da revisão histórica que se vê no palco com sua dramaturgia. E esperar agora por “José Vicente – Virtuose”, peça inédita que encerraria o enfoque religioso em seu repertório.
Santidade – De José Vicente. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Clowne Plaza (rua Frei Caneca, 1360, Cerqueira César, tel. 289-0985). R$ 20,00. Duração: 90 minutos.
Mário Bortolotto está em três peças
São Paulo – Mário Bortolotto é um dos fundadores do grupo paranaense Cemitério de Automóveis, criado há 15 anos em Londrina (PR).
No momento, ele está envolvido em três trabalhos na Capital: atua nos espetáculo “Santidade” e em “Medusa de Ray Ban” – nesta, com o grupo paranaense, também é autor e diretor. Já no monólogo “Jordan”, ele dirige Lucimara Martins (leia crítica das montagens “Medusa de Ray Ban” e “Jordan” nesta página),que tra o monólogo da americana Anna Reynolds.
TRABALHO
No ano passado, Bortolotto esteve em cartaz na Capital com “Leila Baby”, um dos 20 textos que assinou e montou com o Cemitério de Automóveis.
Depois de mudar de Londrina para Curitiba, o grupo está sediado em São Paulo.
“Jordan” instala um silêncio de crua poesia
São Paulo – Qual a gênese de um criminoso? Em que estágio do passado se manifesta o primeiro sinal de que tal ser humano é propenso a matar, roubar? São questões que vêm à baila depois da apresentação de “Jordan”, o monólogo cortante da americana Anna Reynolds, na interpretação su preendentemente segura de Lucimara Martins.
Na base da vida como ela é, temos a história de Shirley Jones, uma interiorana garota inglesa que na década passada se aventurou pela vida com um sujeito que transava com outras mulheres dentro de casa, lhe dava surras e se tornou pai do seu único filho, Jordan.
Quando consegue separar-se do brutamontes, ela vai morar sozinha com Jordan. Sobrevive vendendo seu corpo.
Meses depois, o camarada volta engravatado, garboso, acompanhado da sua nova mulher. Não bastasse ter desgraçado a vida de Shirley, ele agora quer retirar o que lhe é mais precioso: o filho.
Shirley se vê sozinha e incapaz de proteger Jordan do pai maldito e, de quebra, do Estado que também pede a guarda do filho.
Numa certa madrugada, sai a esmo com o bebê, compra uma garrafa de vodca e algumas aspirinas para dor de cabeça.
Volta para casa e, daí em diante, só guarda na memória o fato de ter engasgado ao ingerir comprimidos e bebida. Naquela noite, viria à tona depois, ela asfixiou seu filho com um travesseiro.
Duro, cruel, com um final arrebatador (Shirley se mata no dia em que é absolvida pela justiça), o monólogo vai transcorrendo como um labirinto. Tanta amargura e delicadeza são expressadas no corpo e na palavra da intérprete.
O texto de Anna Reynolds é uma navalha. “É preciso ser bom para ser cruel”, afirma a personagem.
A fábula da princesa que, ao contrário de Shirley, consegue fugir com seu filho, acaba estabelecendo um paralelo contundente.
A atriz preenche o palco com uma movimentação apoiada somente num banco móvel. Lucimara Martins traz à tona a criança e a mulher; a visionária e a guerreira que cabem dentro de Shirley.
CAMINHO ESTREITO
Quando deixou soprar a vida dentro de si, naquele primeiro passeio de moto com o homem que a jogou no inferno, a personagem real não tinha a mínima idéia de que o “caminho estreito de água até a lua” fosse tão difícil de ser percorrido.
O diretor Mário Bortolotto deixa Lucimara fluindo no espaço cênico com a leveza que o peso de uma existência trágica pode ter. Não há desperdício.
O silêncio e os gestos são trabalhados com coerência. Cenografia e figurino, assinados por Fábio Namatame, são acinzentados, sim, mas com um tratamento dramático que leva em conta a poesia do espaço.
A sonoplastia (baladas folk e blues), também de Bortolotto, servem como “blecautes” a cada avanço de tempo do texto e se ajustam à atmosfera algo etérea do espetáculo.
“Jordan” não comporta aplauso esfuziante ao final. Aqui, a realidade dos descaminhos chega em estado bruto. É transe, nó na garganta.
Lucimara Martins nem vem para a boca de cena revelar-se como atriz que é; prefere recolher sua Shirley na penumbra sagrada do teatro a expô-la a mais uma violência – a violência da luz da sociedade.
Jordan – De Anna Reynolds. Com Lucimara Martins. Direção: Mário Bortolotto. Quinta a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo/Sala Paulo Emílio (rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 277-3611). Os ingressos custam R$ 12,00. Duração: 50 minutos. Até 14 de dezembro.
“Medusa de Ray Ban” vê do olho do furação
São Paulo – “Medusa de Ray Ban”, a montagem do grupo paranaense Cemitério de Automóveis, estiliza a violência banalizada sem derrapar no sensacionalismo fácil ou na caricatura idem, tão comum nos meios de comunicação. O texto de Mário Bortolotto, aqui também dirigindo e atuando, faz troça das intenções pequeno-burguesas; ri literalmente dos medos de quem é vítima mas, no fundo, conspira para sê-la.
A partir do mito de Medusa, a qual petrifica o olhar, a peça discute a violência contemporânea. Em xeque, a frieza dos assassinos de aluguel. Desde o garoto que deseja contratar um cara para matar sua mãe, até o cúmulo de uma entrevista de um assassino num talk-show a la Jô Soares, o humor negro dá o tom.
A crítica ácida deste “westem spaguetti”, como define um dos personagens, apaga qualquer rastro de esperança cega. “Excesso de amor pode ser mais violento do que um tiro na testa”, observa um rei do gatilho.
Na sua desventura com seres desconectados do meio social, perambulando ao léu pelas ruas da urbe, o dramaturgo Mário Bortolotto atira para todos os lados (a família, a televisão, o ideal romântico etc).
Curiosamente, porém, não dá um tiro em cena, apesar das armas que aparecem aqui e ali.
À vontade no palco nu e decadente da sala do Teatro Brasileiro de Comédia, o lendário TBC, Everton Bortotti, Fernanda D’Umbra, José Pimentel, Pedro Roberto Fiori (impagável o seu Jô) e Bortolotto atuam com desprezo total à convenção.
Vão sempre além, na gestualidade e na fala, reinventando tipos que se aproximam da comicidade dos quadrinhos ou do cinema.
“Quando você for visitar a Medusa, não vá de óculos de ray ban; vá de óculos espelhados”. A sentença final é a perspectiva de quem vê do olho do furação, e não de fora. Perseu se aproximou de Medusa e atingiu seu objetivo: decaptou-a. Quem está disposto a tirar os óculos escuros ao invés de perder as asas para a violência, como a que sofreu a corujá na parábola final do texto?
Medusa de Ray Ban – De Mário Bortolotto. Com a Cia. Cemitério de Automóveis. Terça e quarta, 21h. Teatro Brasileiro de Comédia (rua Major Diogo, 165, Bela Vista, tel 606-4408). R$ 10,00. Duração: 70 minutos. Até 17 de dezembro.