17.8.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 17 de agosto de 1997. Caderno A – 4
Nova coreografia traz grupos de menores carentes da periferia e cidadãos-dançantes
VALMIR SANTOS
São Paulo – Mesmo a abundância de uma Carla Perez não traduz o repertório do corpo brasileiro. A vastidão das possibilidades corporais é maior do que nossa vã imaginação. Ivaldo Bertazzo vem batendo nessa tecla, ou nesse quadril, não é de agora. Suas idéias ganharam maior visibilidade no ano passado, através do projeto “Cidadão Corpo”, espetáculo e livro. A segunda fase vem com “Palco, Academia e Periferia – O Penhor Dessa Igualdade”, também um espetáculo, no Sesc Pompéia.
O que Bertazzo começou a fazer no ano passado, com uma éspécie de “desmontagem” corporal, percorrendo todos os ossinhos com coreografias que privilegiam a movimentação coletiva, desta vez surge ampliado em cena. Num processo que ernerge do particular para o universal, o trabalho vai de encontro à margem.
Além dos bailarinos que desenvolvem um processo mais profundo sob seu comando, e dos cidadãos dançantes, como chamam as pessoas “comuns” (profissionais liberais) que foram incorporados à pesquisa, Bertazzo convoca grupos de percussão que atuam na periferia, vindos de vários pontos do Brasil.
Toda essa reverberação, somada ao gênio musical Naná Vasconcelos, desemboca num espetáculo contagiante. A perspectiva de uma cidadania através da manifestação do corpo coincide com este momento agudo da sociedade brasileira, onde o social se tornou pauta obrigatória, ainda que bastante desprezado.
É assim que “Palco, Academia e Periferia” chama para a cena grupos como Lactomia (Salvador), Banda Bate Lata (Campinas), 16 Meninos da 13 de Maio (bairro paulistano da Penha), Favela Monte Azul (também da Capital) e Funk’n Lata (da Estação Primeira da Mangueira, Rio) – todos formados por crianças carentes que vêem no exercício da arte um alento para a sobrevivência. Cada um se apresentou por dois dias consecutivos dentro do projeto. No domingo passado, O Diário conferiu a performance do Funk’n Lata.
Os meninos da escola de samba carioca estão acostumados a se apresentar para grandes massas, em quadras ou casas noturnas onde são realizados os tradicionais bailes funk. No palco do Sesc Pompéia, o impacto da bateria foi arrebatador. A participação em si – e deve ter acontecido o mesmo com os outros convidados – constitui um capítulo à parte. Quando destoa, complementa pela diversidade verde e amarela.
Antes deste coroamento da noite, acontece propriamente o espetáculo coreografado e dirigido por Bertazzo. Durante 16 músicas interpretadas ao vivo por gente do quilate de Nelson Ayres e Rodolfo Stroeter, mais a magia percussiva de Naná Vasconcellos, e o que se descortina e uma identidade cultural, jeito brasileiro de ser.
O maculelê, a capoeira, o balé clássico, a dança moderna e até um gestual oriental, enfim, o espetáculo é um leque expressivo. Além do estilo, a diversidade é representada ainda pelo perfil corporal. São magros, gordos, baixos, altos, até gente de óculos entra na dança. Essa comum-união é uma das principais virtudes do trabalho de Bertazzo.
Ele descarta uma estética pré-estabelecida, calcada em códigos rígidos, e deixa vir à tona uma espontaneidade que aflora o jogo cênico. Daí o espírito lúdico, a celebração como um rito de festa, de encontro. Como a quadrilha junina afrancesada, um dos melhores momentos. Nada é certinho e o efeito coreográfico nasce disso.
“Palco, Academia e Periferia envolveu cerca de 190 pessoas, entre amadores e profissionais. A harmonia só foi atingida por conta de uma direção aberta e da entrega das pessoas em cena. Democratizar o acesso e desmitificar o estabelecido – as bases do projeto estão bem claras.
Palco, Academia e Periferia – O Penhor dessa igualdade – Coreografia e direção: Ivaldo Bertazzo. Última apresentação hoje, às 19h, com participação especial dos Meninos da Favela Monte Azul (SP) e Lactomia (BA). SESC Pompéia (rua Clélia, 93, Lapa, tel. 872-7700). R$ 20,00 (R$ 10,00 estudantes e comerciários).
“Prometeu Engaiolado” é maior que a encomenda |
São Paulo – Voz pausada, andar vagaroso, Jorge Dória se esforça para driblar as limitações da idade – 61 anos – em mais uma comédia da carreira que está completando meio século. A figura carismática do ator é a razão de ser de “Prometeu Engaiolado”, um rasgo de atuação caipira em temporada no Teatro Maria Della Costa. Pena que o tamanho do texto e a duração da montagem, deponham contra o elenco.
Diante das limitações físicas de Dória, o autor Chico de Assis e o diretor João Bethencourt fariam um bem danado se reduzissem o tempo da peça, que se torna arrastada porque todo o ritmo está praticamente nas costas de Mauro de Almeida, o Prometeu, que constrói com talento a figura de um jeca. Mas haja fôlego para carregar um espetáculo!
Eliana Barbosa, a Minervina, não ousa um milímetro além da caricatura fácil da noivinha submisa. Anna Cavazzani, com o papel reduzido da empregada, não tem sequer chance de dizer a que veio. Já Dória, o poderoso Coronel Procusto, uma mistura daqueles personagens pervertidos das histórias de Jorge Amado com o brucutu ACM, o senador, vai de encontro ao desbragado humor popular do qual o público já é conhecedor – quer no palco, quer na televisão.
Jorge Dória traz a virtude de quem domina a cena aberta com muito jogo de cintura. Quando percebe que lhe escapou uma fala ou uma marcação, não titubea em recorrer aos “cacos”, os acréscimos de supetão ao texto original. Mas quando a interpretação exige muito esforço físico, como é o caso aqui, as limitações ficam patentes.
Longe do preconceito à idade, mas quando o trabalho artístico conjuga também o desempenho corporal e espiritual, o resultado é indiscutível.
“Prometeu Engaiolado”, que nada tem que ver com a tragédia seminal de Ésquilo, é uma comédia que exige muito. E, nunca é muito repetir, um remanejamento do autor ou do diretor – ou de ambos – não traria prejuízo algum. Como está, com variações abissais de ritmo, com “brancos” constrangedores para. o potencial de Jorge Dória e Mauro de Almeida, enfim, como está é frustrante. Pelo menos foi assim na estréia.
Prometeu Engaiolado – De Chico de Assis. Direção: João Bethencourt. Com Jorge Dória, Mauro de Almeida e outros. Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Teatro Maria Della Costa (rua Paim, 72, Bela Vista, tel. 256-9115). R$ 20,00 (quinta e sexta), R$ 25,00 (domingo) e R$ 30,00 (sábado). 120 minutos. Até 21 de dezembro.
Espetáculo se equilibra no caos humano
São Paulo – Depois de Fernando Arrabal, montado há pouco por alunos da Unicamp, na excelente encenação dirigida por Márcio Tadeu, outro autor espanhol filiado ao teatro pânico ganha os palcos paulistanos. É a vez de Fernando Nieva, um dos mais importantes nomes da dramaturgia contemporânea na terra de Gareia Lorca. O resultado alentador está a cargo da Companhia dos Lobos, sob direção de Marcos Azevedo, ex-integrante da Companhia de Opera Seca – leia-se Gerald Thomas.
“Trilogia da Danação”, o espetáculo, reúne três peças curtas de Nieva. São textos que penetram fundo na condição humana. Os personagens transitam sempre no limite da existência, tataendo porões que conduzem à iminência do instinto animal em seu estado mais bruto.
Abre com “Não É Verdade”, uma intrincada história de terror com fortes tintas kafkianas. Uma mulher decide experimentar fortes emoções com um aventureiro que se mete na floresta para se reunir com um grupo de lobos. Em nome da voragem, ela desbanca a ordem da vida cotidiana, deixando perplexos o primo e a empregada que termina assassinada violentamente. “Os bichos, os bichos sãos austeros”, comenta um personagem, imerso na loucura.
Na segunda peça, Nieva faz blague da universal historinha de Chapeuzinho Vermelho. Cansada do marido fleumático demais, a mulher o troca por um sujeito beberrão, com pinta de lobo mau, que a faz experimentar pervertidas taras sexuais.
“Trilogia da Danação” encerra com “Paixão de Cachorro”, a peça mais impactante. Nela, os protagonistas perdem os sentidos e o instinto animal é quem impõe as regras. Em certo dia, uma prostituta amanhece com um rabo peludo que brota do bumbum. A mulher encara o fenômeno com resignação cristã. Subumana frente ao espelho, acredita que o pecado veio a calhar. Mas o “rabo” lhe traz muitas revelações quanto a conceitos como amor e amizade.
Mesclando ingredientes como a antropofagia e a animilização do ser humano, a dramaturgia de Fernando Nieva faz um corte deste fim de século com uma crueza impressionante. Tudo se move a partir da pulsão interior dos personagens.
A montagem dá conta do recado. O elenco tem fôlego para se revezar nas três histórias. Virginia Jancso, Lia Armelin, Antonio Peyri, Melissa Vettore e Cesar Ribeiro fazem interpretações viscerais, desenhando personagens bizarros, como convém ao autor
Marcos Azevedo também não fica atrás na direção. Retrata muito bem a atmosfera dos textos, o estranhamento gestual dos personagens, verdadeiros tipos. Com exceção da voz em off, faz pouca concessão ao tea tro de Gerald Thomas. Este o influencia, sim, mas Azevedo relê a cena a seu modo, num trabalho que reflete um intercâmbio efetivo com o elenco. “Trilogia da Danação” é um espetáculo surpreende por conciliar equilíbrio cênico e interpretativo com demasiado caos humano.
Trilogia da Danação – De Fernando Nieva. Direção: Marcos Azevedo. Com A Companhia dos Lobos. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro João Caetano (rua Borges Lagoa, 650, Vila Mariana, tel. 573-3774). R$ 10,00. 100 minutos. Até 14 de setembro.