29.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 29 de março de 1998. Caderno A – 3
VALMIR SANTOS
Curitiba – A melhor coisa do Fringe é o tiro no escuro, o sabor da aventura de ir ao teatro sem quaisquer expectativa. A mostra paralela que o Festival de Teatro de Curitiba inaugurou em sua sétima edição conseguiu atingir a meta saudável da diversidade. Houve espaço para tudo, como O Diário notou em pelo menos quatro das 32 peças que participaram do Fringe – nome importado do tradicional Festival de Edimburgo, que também abre suas portas para grupos que tenham coisas interessantes a dizer; ou melhor, a encenar.
A montagem de “Killer Disney , por exemplo, trouxe para o palco brasileiro o primeiro texto do inglês Philip Ridley, escrito em 1990. É uma história, no mínimo, perturbadora. Os jovens Presley (Ivan Cabral) e Haley (Andressa Medeiros) são dois irmãos que vivem sozinhos depois da morte dos pais. Em casa, isolados na bolha que inventaram para si, eles se escondem do medo do mundo exterior. Para suprir a resistência, se alimentam quase que exclusivamente de chocolate.
Aos poucos, os irmãos vão desnudando seus horrores. A narrativa é escatológica, beira o teatro pânico do qual o dramaturgo espanhol Fernando Arrabal é um dos expoentes (“Jovens Bárbaros de Hoje”). A doce e angelical Haley, por exemplo, conta sua escalada à estatua de Cristo, fugindo de uma matilha. Os cães rosnavam ao pé do monumento, enquanto ela beijava os lábios frios do Salvador.
Presley, por sua vez, descreve como comprou uma cobra verde, feito cor de grama, e a mastigou depois de fritá-la. As imagens de “Killer Disney” são poderosíssimas. O autor é devassador. Um terceiro personagem, Cosmo Disney, surge para aumentar ainda mais o pesadelo dos irmãos. Entre os desejos mais primitivos, a sexualidade latente e prisão do imaginário, a peça é uma crítica feroz ao isolamento do homem moderno.
“Killer Disney” uniu a Companhia de Teatro Os Satyros, sediada em Lisboa, e o grupo paranaense Resistência de Teatro. A direção é assinada por Marcelo Marchioro. A montagem transmite a atmosfera etérea do texto; as interpretações são viscerais, no limite da loucura em que os personagens estão metidos.
Outro destaque do Fringe foi “A Perseguição ou O Longo Caminho Que Vai de Zero a Ene”, com a paranaense Cia. do Drama 2. João Paulo Leão dirige e contracena com Hélio Barbosa no texto de Timochenco Wehbi.
E uma peça coerente com a abordagem existencial – e social, por extensão – que Wehbi imprime em seus textos. Na relação do outro com o mundo que o cerca, Zero e Ene fazem como Uroborus, a cobra mitológica que engole o próprio rabo. Leão e Barbosa estão à vontade no palco; estabelecem paralelismo nas falas, nos gestos, na ocupação do palco que traz latões amontoados como cenário. O silêncio beckettiano, o mergulho no vazio das almas, transformam o espetáculo em uma experiência intimista, na qual a palavra ecoa com dor e lirismo.
Em “Cara Metade”, o Caos & Acaso, outro grupo de Curitiba, encena um dos textos pouco conhecidos de Flávio de Souza (“Fica Comigo Esta Noite”, “Repetition” e “De Pernas Pro Ar!”). Trata-se de uma incursão do autor pelo mesmo tema que atraiu o francês Roland Barthes no clássico “Fragmentos de um Discurso Amoroso”, livro que já recebeu algumas adaptações para o palco.
Estão lá as neuroses comuns dos enamorados, como a angústia da espera, o ciúme e a perda amorosa. “Cara Metade”, o título, é atribuído à dupla personalidade que acomete a todos; diapasão que abriga a disputa entre razão e intuição. O tratamento do diretor Chico Penafiel, que também encabeça o elenco, beira o do teatro infantil, com direito a figurinos coloridos e anjinhos saltitantes. É uma farsa descomprometida, que se não vai além do olhar raso do tema, deve-se muito ao texto pouco feliz de Souza.
Como se disse, Fringe também é susto. E um deles foi “Dois? Somente Um!”, de Pedro Pires, que também assina a direção e participa do elenco. O que se viu no festival foi um engodo, um espetáculo distante do mínimo para se levar ao palco. Nas desilusões e embates de casais em crise, a rotatividade dos seis atores se assemelha a um jogral escolar. As coreografias são preguiçosas, repetitivas.
Sob a justificativa de “falar com a maior simplicidade do mundo”, as interpretações são de um naturalismo fácil. Realmente, os atores parecem que estão falando em um boteco ou numa sala de estar. Mas o palco, convenhamos, prescinde de brilho na fala, de verdade – o que falta em “Dois? Somente Um!”.
Enfim, o Festival de Teatro de Curitiba chega ao seu sétimo ano com a certeza de que o Fringe veio para ficar. O leque de estilos, de trabalhos experimentais, de grupos que ousam dar um passo além – pelo menos a maioria deles – resulta em riqueza maior da mostra paralela. Dá gosto participar da maratona (sessões às 18h e 24h), sobretudo pelas gratas surpresas.