25.3.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 25 de março de 1997. Caderno A
VALMIR SANTOS
Curitiba – Poucas vezes Gerald Thomas pôs tão a nu seu processo artístico como em “Os Reis do Iê-Iê-Iê”, o “evento” (sabe-se lá o que é isso, mas está mais para instalação ou happening) apresentado no Festival de Curitiba, no fim da semana. A volta de Bete Coelho ajuda a expor a crise dos últimos espetáculos, espécie de revisão dos 11 anos da Companhia de Ópera Seca. Agora já não importa entender o não seu teatro. O público encontra mais elementos para construir o “fio”, via verbo, imagens. Thomas equilibra a erudição, a “masturbação”, com enxertos narrativos, com transparência nos signos visuais, com uma fragilidade desesperadora e urgente que parece acenar para o espectador e dizer algo como: “Olha, eu estou aqui, vagando neste vazio de poucas certezas”.
É o “eu como recurso artístico” no “laboratório pessoal” montado em menos de 15 dias, com dificuldades técnicas de toda ordem, adiamento da estréia. Uma tensão que o encenador preferiu citar e diluir dentro do próprio “evento”.
“O que é fazer teatro?”, se pergunta o manjado off de Thomas, projetando a angústia do presente para a situação ficcional de seis horas depois da apresentação de estréia. Enquanto isso, a cena mostra o Thomas-ator-ele-mesmo (John Lennon por acaso) prostado na cadeira. Usa o “atraso” que vê no teatro brasileiro.
Crítico do horizontalismo cristão, Thomas encarna ele mesmo a imagem do crucificado (mãos abertas, pés cruzados). Ao contrário dos Beatles, não pretende ser mais famoso que Jesus Cristo.
Luiz Damasceno (Ringo Star), único remanescente do embrião da Ópera Seca, tenta “atirar a primeira pedra”. Na sua fidelidade de 11 anos, Damasceno sempre foi a pedra no sapato de Thomas. Ator e encenador se correspondem por oposição. É o que estimula. Bete Coelho (Paul McCartney), por sua vez, é a complementariedade, tábua de salvação para os riscos e vôos de Thomas.
É intérprete maior (deu saudade do seu brilho, desde “Pentesiléias”, há dois anos. O quanto o teatro perde, e provavelmente muito mais ela em sua insistência com a televisão).
Damasceno/Star não agüenta mais a relação. “Até quando você vai fazer trocadinho com tudo que é básico?”, questiona. “Foram 11 anos de respostas enigmáticas”. O primeiro-ator reivindica a concretude do palco, das roupas, dos prédios, das pontes erguidas pelo Homem. Mas “a única coisa de concreto aqui é o verbo”, retruca Bete/McCartney.
Domingos Varella, que fecha quarteto incidental da companhia, assume o silêncio “zen” do papel, se é que se pode dizer assim, que lhe cabe, o de George Harrison.
Muito mais do que paralelo com as divergências dos rapazes de Liverpool, pinceladas levemente, e a corrosão do pop, são conflitos da Ópera Seca com seu criador que sustentam o roteiro. “Os Reis do Iê-Iê-Iê”, em se tratando de Geraldo Thomas, surpreende por escancarar a emoção. Quer – e consegue – tocar, dispensando a inteligência “hermética” de praxe.
Canções menos concessivas dos Beatles pontuam o “evento”, revezando com os Rolling Stones – dois caminhos distintos do mesmo mercado, Lennon e Jagger. Vertendo para o rock nacional, surge “Será”, de Renato Russo, líder messiânico do Legião Urbana morto no ano passado, com voz e violão de Luiz Frias, namorado de Bete Coelho – e clonando-o na execução ao vivo do convidado.
O cenário espaçoso e “hospitaleiro”, sugestão de um manicômio, com camas e cadeiras brancas, abriga outros desgarrados da Ópera Seca, como Marcos Azevedo e os recentes César Almeida e Raquel Rizzo. Tem o desembestado Dionísio Neto, como o assassino Mark Chapman, que chamou a atenção do mundo numa esquina de Nova York, em 1980, e Renata Jesion (ambos de “Perpétua” e “Opus Profundum”). Foram “convidados” quatro atores de Curitiba.
Gerald Thomas tem vontade de largar da camisa-de-força criada por ele. Termina por reinventar a si, uma necessidade coerente para o exercício de teatro nesse tempo veloz, à beira do milênio. Polemizar e contemplar são conjugações possíveis.
O jornalista Valmir Santos viaja a convite do FTC.