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contracena

Diálogo inventivo com a tradição [crítica O ruído branco da palavra noite]

16.3.2010  |  por Valmir Santos

ruido_cascascontracenaCrítica de O ruído branco da palavra noite
Formada em 2000, a Companhia Auto-Retrato, de São Paulo, concebe um espetáculo devotado ao espírito de formação da modernidade russa, no início do século XX, com reverberações fundamentais para o artista do mundo atual. O resultado é uma experiência marcante da encenação entrelaçada a trechos de peças de Tchekhov ao cotidiano de ensaios, afetos e idiossincrasias de Stanislavski, Dantchenko, Meierhold e outros mestres.  

 

ruido

“Traga ao palco, se necessário, 

a beleza encoberta com lama 
e limpe-se dessa lama para todos verem”
Stanislavski

Valmir Santos

A imagem do título suscita as razões e as emoções sampleadas em O ruído branco da palavra noite. Um espetáculo para escutar, nem tanto para ver – uma contradição em partes, plenamente amparada na saudação incondicional ao teatro.

 

O espetáculo da Companhia Auto-Retrato ergue-se sob uma atmosfera poética austera na forma e um atavismo humanista transbordante no conteúdo. Sua concepção é assertiva, invulgar em todos os elementos que elege para a cena e conectada ao espírito revolucionário de uma época: um corte profundo na paisagem teatral da Rússia sacudida por transições socialistas e comunistas naqueles anos de virada dos séculos XIX para o XX.

 

Estão justapostos dois períodos distantes no calendário, mas próximos em suas urgências em experimentar novos caminhos para o trabalho de criação: o centenário florescer da modernidade no teatro russo, por meio de artistas que balizaram saberes éticos e estéticos nos palcos do mundo, e a reverberação dessa arte presencial no Brasil contemporâneo, decorridas seis décadas de sua fase moderna.

 

O resultado é uma cena grávida de sentidos outros tateados por seis atores mobilizados por um autor, o médico Anton Tchekhov, cuja pena é epicentro naquela travessia. Por extensão, o espetáculo entrelê e ausculta com assumida nostalgia proativa os tempos de Stanislavski, Meierhold, Dantchenko, Gorki, Olga Knípper e outros homens e mulheres amantes do ofício e refratários à visão estreita do sistema dominante em que o primeiro-ator ou a primeira-atriz apoiavam-se na muleta das vozes declamatórias e desprezavam solenemente a etapa de treinamento.


Em contraponto a esse estado de coisas, sopravam ventos renovadores sobre os moinhos do Teatro de Arte de Moscou, o lendário TAM que abriu as cortinas em 1897 investido de ousadia nos campos da interpretação e da dramaturgia.

A montagem codirigida por Caetano Gotardo e Marina Tranjan enfeixa cenas de quatro peças de Tchekhov: A gaivota, Tio Vânia, As três irmãs e O jardim das cerejeiras. Elas dialogam com trechos das cartas que versam sobre a cultura teatral, os bastidores dos processos criativos, da temporada e da circulação; a recepção do público e da crítica; as dificuldades para se produzir; as idiossincrasias dos artistas postas em xeque, etc.

Misturam-se os fluxos do inconsciente, da ilusão cênica e da angústia inerente ao ato criador. As peças dentro da peça são entrelaçadas ao formato epistolar da amizade e do amor à arte em que são enredados os protagonistas desse núcleo singular – artistas cultos, amadores (na acepção mais sublime da palavra) e praticantes da crítica e da autocrítica em seu dia a dia, o que nem sempre quer dizer imunidade às vicissitudes.

Essas pessoas escreviam-se frequentemente em tom confessional. Suas correspondências foram editadas por Cristiane Layher Takeda em O cotidiano de uma lenda – cartas do Teatro de Arte de Moscou e subsidiam uma teatralidade atípica para os dias céleres de hoje. Uma encenação no osso, encarnada por ideais colaborativos plantados na São Petersburgo ou na Moscou de antigamente e que, nesta década, pontuam a trajetória de alguns coletivos de São Paulo e do Brasil.

A nostalgia citada linhas atrás não implica contemplação museológica. Em sua radical simplicidade na adoção da narrativa épica, da interpretação sob fusões naturalistas e realistas, do representar e não representar num espaço cênico no qual a tônica é o vazio, essas opções todas são traduzidas no jogo direto com o público, uma ciranda de situações e evocações montadas e desmontadas olho no olho. Um chamado ao espectador do século XXI para mover-se de si por meio do imaginário, sem as rédeas da sedução pelo espetacular.

A fala escrita, que é carta e é dramaturgia, ganha tonalidades variadas sem trair os sentimentos. A mediação pelo ator ou pela atriz transcorre em semitons, reduz as camadas dramáticas à essência que Meierhold chamaria de energia. Nas janelas propriamente dramáticas, diálogos ou solilóquios das peças de Tchekhov, aí sim resvala um agudo ou outro, altissonante, a contrastar o quanto o exagero pode estorvar a beleza.

Uma das virtudes de O ruído branco da palavra noite é conciliar o distanciamento técnico da ação com o equilíbrio suficiente para trazer à baila o intangível. Como no recurso do canto coral à capela para Meu primeiro amor, uma guarânia paraguaia (Lejanía, de Herminio Gimenez) vertida para a moda caipira, sucesso na voz da dupla Cascatinha e Inhana, um cruzamento com a dolência e a saudade tão luso-brasileiras.

É como se o espetáculo se estruturasse feito um suporte para uma tela em branco na qual pintamos imagens através das palavras e dos silêncios. Seu caráter despojado espraia-se em signos elementares como as mesas e cadeiras rústicas, a fita crepe, as velas, as maças, os casacos, o assobio do vento e o coaxar noturno. Pouco importa a mimese; reforça-se a composição alegórica, como na passagem em que abajures de fibra óptica ocupam vários pontos do palco e suas luzinhas multicolores sugerem o “jardim” que Stanislavski esboçara como cenário para um drama de Tolstói, Tsar Fiódor, a primeira montagem do TAM.

Um quê de natureza-morta, suspeição de início, felizmente não vinga como moldura. O apelo artesanal dessa arte ajuda a desenhar os deslocamentos temáticos, temporais e espaciais ao sabor das cartas e do poder de convencimento dos atores narradores Caetano Gotardo, Camilo Schaden, Gilda Nomacce, Marcos Gomes, Marina Corazza e Marina Tranjan.

Indescritível o prazer de fruir as impressões de Dantchenko sobre um texto de Tchekhov em que Stanislavski contracena com Meierhold. Ou ainda a generosidade do autor de As três irmãs para com outro escritor que o admira, Gorki. Esses ícones não surgem por meio de personagens, mas por meio de suas ideias.

É um alento contar com uma companhia nascida no limiar deste século e disposta a lidar de maneira desafiadora e madura com vasto material expressivo da condição humana. Montagens anteriores, como Retornarse, de 2003, e Seis da tarde, de 2006, já esculpiam as relações entre espaço e memória circunscritas no presente.

Ao servir-se da metalinguagem pirandelliana em sua produção mais recente, a Auto-Retrato fala do lugar da experiência que aponta para o futuro sem medo de olhar para trás. Essa capacidade incrível de dialogar inventivamente com a tradição a faz alcançar sínteses raras.

 

(20 de março de 2010)

 

PS: A Companhia Auto-Retrato fará duas apresentações no Festival de Teatro de Curitiba, dias 25 e 26 de março.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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