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contracena

MODULO 1 – CAPA E INTERNA

31.3.2010  |  por Valmir Santos

 

dissidente1contracenaCrítica de Dissidente

A montagem da obra de Michel Vinaver, pelo Núcleo Caixa Preta, de São Paulo, ilumina o trabalho experimental desse autor de 83 anos, talvez o dramaturgo vivo mais importante da França. Em vez de apenas rechaçar o eixo dramático já implodido pela linguagem, a diretora convidada Miriam Rinaldi calça as colunas remanescentes por meio da ação física e conta com dois atores à altura, Cácia Goulart e José Geraldo Rodrigues.


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Valmir Santos

Descontada a modernidade matricial em Beckett, irlandês que radicaliza a desconstrução narrativa em plena língua de Molière, mas não só, o drama francês implode de vez no palco a partir dos anos 1970. Seus primeiros estilhaços chegam ao Brasil na década de 1990, após a morte de Koltès. E só recentemente assistimos a montagens de autores importantes daquela safra, como Novarina, Lagarce e Vinaver. Deste veterano de 83 anos conhecemos agora Dissidente (Dissident, Il Va Sans Dire, Dissidente, Sem Dúvida), espetáculo do Núcleo Caixa Preta com a diretora convidada Miriam Rinaldi.

 

O texto de Michel Vinaver data de 1976 e mantém irrepreensível sentido de urgência, injeta política nas bordas sem padecer do discurso. Sofisticado, ativa o espectador como coautor instado a preencher as entrelinhas tal qual o criador desafiado a montá-lo. Um diálogo que é criativo, de todos os lados, ou não é.

 

Mais de três décadas depois, aquele extrato inovador de linguagem manipulada sem unidades rígidas de tempo, de personagem, de espaço e nem mesmo de escrita no papel (inexistem sinais de ponto, rubricas) ainda emana contemporaneidade de tirar o fôlego.

 

Quem sabe o dramaturgo vivo mais importante da França, Vinaver expõe os arquétipos da mãe e do filho com a terceira ponta quebrada da dessacralizada trindade familiar: o pai e ex-marido socialista cujo espectro ronda a história.

 

História? Agora é que são elas. Vinaver não sustenta começo, meio e fim nas frases, que dirá nos enredos. As duas figuras, mãe e filho, Helena e Filipe, têm o cotidiano doméstico atravessado pelo mundo exterior. Sobrevivem em torno do verniz material da funcionária de estatísticas e do adolescente metido em atos de delinquência juvenil.

 

O pendor edipiano é sublinhado no desejo de consumo que os conduz da marca do automóvel ao pesadelo da renda mensal apertada, extremos vistos do sofá diante da televisão. Raramente se entreolham, miram um longe em que não se tocam. Uma classe média baixa comezinha, alienada, anódina. Mas as questões não são planas, como a encenação de Rinaldi demonstra com precisão ao lançar uma escrita cênica a um só tempo autônoma e afetada pelos enigmas do texto.

 

Em vez de chafurdar no aparente desmoronamento do eixo dramático, no vale tudo, o espetáculo cuida em calçar suas colunas. A ação física é reforçada para conversar à altura com essas palavras secas que doem, como reconhece o filho ao final. Pensando em signos, é como revestir o osso com carne para dimensionar a humanidade em jogo. Verbo incorporado.

 

O rosto e o olhar de Cácia Goulart concentram o conflito e a ironia. Uma atriz de gestos ora expandidos ora minimalistas, desafiadores e inerentes a quem já viveu o escriturário Bartleby e a prostituta Neusa Sueli. Ela contracena com José Geraldo Rodrigues, um ator acanhado em Rosa de Vidro, no ano passado, e agora senhor da cena, um filho convincente, transportado ao subúrbio parisiense por meio da expressão corporal, do modo de se vestir, falar.

 

A tradução da obra por Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald, homens de cinema afeitos à edição, encaixa-se à oralidade brasileira sem forçar – e ajuda a transitar pelos estranhamentos.

 

No terceiro andar do Sesc Consolação, o espaço cênico e a platéia são desenhados como que num polígono, derivado do/convergido para o canto. A rigor, não são quatro, mas três “paredes” de uma casa cujas divisas erguem-se por meio de caixas e frascos vazios de toda sorte de produtos, logomarcas estampadas, tudo envolto em plástico transparente – composição visual costurada pela cenografia de André Cortez, a luz de Lúcia Chedieck e os adereços e visagismo de Marina Reis.

 

Descartar ou pertencer é a bifurcação instaurada por Dissidente, um dilema sombrio que o Núcleo Caixa Preta ilumina com muita consistência.

 

(31 de março de 2010)

 

Em cartaz no Sesc Consolação até 1º de abril.

 

Segunda temporada:

14 de abril a 27 de maio
Quartas e quintas, às 21h
Teatro Comunne, Rua da Consolação, 1.218, telefone 11-3807-0792
R$ 30 e R$ 15
73 lugares

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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