contracena
12.5.2010 | por Valmir Santos
contracena Crítica de Vida
A Companhia Brasileira de Teatro captura como Paulo Leminski conseguia equilibrar capricho e relaxo em suas criações literárias. O espetáculo não tem nada do poeta e tem tudo. Ousado, inventivo, constrói uma galáxia particular ao apropriar-se da linguagem transgressora do escritor de Curitiba. Procedimentos da performance e a livre associação de conteúdos surgem conectados à cena contemporânea sem forçar a barra pelo novo.
Valmir Santos
O encontro das artes cênicas com a literatura é atávico, linguagens que se beijam não é de hoje. Em ano até aqui marcado por significativa incidência de escritores cuja vida ou obra são evocadas em cena (Ana Cristina César, Clarice Lispector, Lima Barreto, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Patativa do Assaré, Dostoiévski, García Márquez, etc.), um dos desafios dos criadores do teatro é convencer o espectador a deslocar-se do papel de leitor, deixar-se levar por outras veredas e expectativas que não aquelas desbravadas nas páginas de seu autor dileto. Sentir como a poesia, a prosa, o ensaísmo e a tradução podem ampliar distintos horizontes da arte ao vivo.
Vida é justo um exemplo. Não há Paulo Leminski e há todo o Paulo Leminski em Vida, a visita da Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba, ao universo do conterrâneo mais varrido das letras paranaenses, para espanto e deleite da cidade – agora é que são eles – e do Brasil.
Assim como a palavra não constitui signo absoluto na escrita do autor de Catatau – ela é sempre entranhada a outras pontes imaginárias, mesmo quando no osso -, o texto do diretor Marcio Abreu e a dramaturgia que assina com as atrizes Giovana Soar e Nadja Naira encerram desvios para alcançar o seu próprio objeto de desejo. Apropriam-se da liberdade de linguagem que caracterizou a existência e a produção literária desse artista para construir uma galáxia particular no palco.
O espírito é libertário, primo do literário. Lançando mão da fábula e da fantasia, Vida ergue-se sem dependência biográfica, sem a promissória estilística do poeta. A Companhia Brasileira de Teatro afirma ter investido mais de ano e meio em pesquisa de campo, bibliografia, experimentos. O espetáculo pode ser lido como um haicai performático em suas estruturas e conteúdos livres e inerentes à cena contemporânea. Descama expectativas dramáticas padrões para incorporar à narrativa procedimentos sintéticos mais evidentes da performance, das artes visuais e da música. E sem jamais ostentá-los. Um projeto afinado à trajetória de quem o move – o luminescente Leminski – e radica o ato criador à condição sem a qual não se respira.
A variante exposta linhas atrás entre texto e dramaturgia sugere um primeiro indício de estranhamento. Abreu assina o que plasma de si mesmo na lida com os escritos do poeta ou os coteja em citações transversais (Maiakóvski, Haroldo de Campos, Beckett, Mishima, Pina Bausch, Chagal, Cristo, Bashô e Cruz e Sousa, entre outros – os três últimos biografados por Leminski). Já as duas atrizes do núcleo juntam-se a ele para dispor o verbo no palco, uma dramaturgia inscrita também no desenho espacial, nos objetos, no trançado do elenco com eles.
O tempo é indefinido. O lugar, sem portas, sem janelas. Quatro figuras mal esboçadas no início aos poucos dão liga ao fluxo e ao território percebidos pelo espectador. Nada é elementar. Há duas mulheres (Giovana e Nadja) e dois homens (Ranieri Gonzalez e Rodrigo Ferrarini). Eles atendem pelo nome dos atores. Encontram-se naqueles dias para ensaiar. Tocam e cantam na banda escalada para se apresentar no clube social em plena festa de jubileu da cidade. A apreensão precipita inseguranças individuais e coletivas para além dessas quatro paredes de cores desbotadas – sendo a quarta a da platéia, derrubada desde o primeiro segundo: o narrador/Ferrarini surge no corredor da sala e caminha em direção ao espaço cênico. Tem-se a medida do desaguar desse quarteto desde si.
A genealogia da peça acolhe breves excertos biográficos dos artistas envolvidos. Desenha-se em cena a curva entre a tela em branco dessas figuras, no início, e a evolução para outros pontos de fuga, as constituições do drama humano sem retoques: desejos, inseguranças, frustrações, felicidades, medos, desamores, prazeres, virtudes, amoralidades, e por aí vão. Distraída, a noite vence com fortes sentimentos tragicômicos. Emoções que nos acompanham após a sessão e dão o que falar e pensar sobre o cotidiano lá fora, a qualidade das relações interpessoais ou em comunidade.
O narrador conduz e é conduzido no passeio pela incongruência das coisas, das pessoas, dos acontecimentos lembrados, vividos ou projetados. Acompanhamos uma expedição pelo aqui com apoio do mapa-múndi pênsil na parede de fundo. Uma parede inteiriça, como as demais, do pé ao teto. Uma parede móvel com uma portinhola quase clandestina. Essa parede é móvel e molda o campo de visão em vários momentos. Não demora, o impacto monumental da cenografia de Fernando Marés logo se revela um mecanismo funcional e afins com a despojamento da proposta coadunada ao desenho de não-luz de Naira. O espetáculo descarta o efeito espetacular.
Há cadeiras de madeira, uma mesa, um ventilador, um microfone, instrumentos musicais (bumbo, trompete, guitarra, pratos metálicos e voz), enfim, um essencialismo dissimulado para uma viagem tão complexa como envolvente no seu reparte de quatro histórias justapostas. Daí o bordão do narrador preocupado em divagar pelas ideias sem perder o chão de estrelas: “Alguém escapou?”, pontua, com seu jeito didático que seduz o público por reflexões sagazes.
A arte da música é capítulo à parte, está na razão de ser da banda e nos lembra com quantos descompassos é feita a presumida harmonia. Sampleia a diversidade sonora que ao cabo é ainda a da língua, a da diversidade sexual, a da pluralidade ideológica e a de todas as variações para o tema que não quer calar: como viver junto? Essa dimensão é capturada pela versatilidade dos atores; pela contracenação na boca de cena com o músico Gustavo Proença (sopros, teclados e percussão); pela trilha composta originalmente por André Abujamra, que flerta com o acaso e soa mais incidental que programado, tudo a ver com o ritmo da encenação; e ainda pela direção vocal do texto por Babaya, a preparadora que equaliza a partitura de cada criador em busca de outros pulsares.
Um dos méritos de Vida é conceber essa cartografia cênica, poética e musical sem abrir mão da capacidade de afetar seu interlocutor, de emocionar com suas metáforas em pencas. É um trabalho de apurada base científica formal e linguística, à altura da sofisticação intelectual de Paulo Leminski. E, como ele, não enverga a armadura do saber ensimesmado. Preza o poder de comunicar-se e persegue a dimensão popular da palavra sem barateá-la.
Em abril, no último fim de semana da temporada de estreia, no Teatro José Maria Santos, a Companhia Brasileira de Teatro lotou as sessões atraindo um público que, em sua maioria, encontrava-a pela primeira vez com os artistas desse grupo que já conta uma década. Boa parte desses espectadores não conheceu as criações anteriores com textos de Julio Cortázar, Philippe Minyana, Jean-Luc Lagarce, etc. A gente de Curitiba não fugiu da raia leminskiana e viu-se um pouco representada ali, bem como a cidade que transparece humana em seus humores. Como numa das passagens a respeito de uma cidade onde “as pessoas fazem cara de nada”, nas ruas ou nos elevadores, “como se a cidade estivesse vazia”.
Como se.
Vida é uma criação ousada, inventiva. Joga limpo, ligeiro, um instalar de dedos. Entre as cenas memoráveis, uma das mais difíceis – para quem faz e para quem vê – é quando mergulhamos no breu por cerca de dez minutos. Tudo permanece como está, inclusive o ir e vir no tablado, os diálogos sobre tentar acender um fósforo para minimizar o baque no clima de uma festa de aniversário. Sob tensão dos dois lados, no palco e fora dele, a teatralidade é sustentada, mais do que nunca, pela instância da escuta. A escuta tão cara nos dias de hoje e aliada fundamental da palavra. Eis a revolucionária imaginação no poder, faceira e flagrante feito um poema de Leminski.
(12 de maio de 2010)
Temporada no Rio
12 a 21 de maio
Quartas a sexta, às 21h
Teatro Tom Jobim, Rua Jardim Botânico, 1.008, telefone 21 2274-7012
R$ 40
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.