contracena
2.4.2011 | por Valmir Santos
Valmir Santos
O espectador assíduo de um núcleo teatral duradouro – e há muitos deles na faixa dos 20 aos 50 anos no Brasil – costuma depara com movimentos de retroação por parte dos criadores. Parece inevitável esse rasto atrás em busca de novos impulsos. Prestes a completar um quarto de século, a Armazém Companhia de Teatro olha o retrovisor do espelho e o atravessa. Incorpora relâmpagos de montagens anteriores. Quedas, ritos de iniciação, místicas pessoais que, afinal, constituem as veias de um coletivo. A matéria e o espírito da arte são agarrados à unha na metalinguagem do edifício ou barracão abandonado, cohabitado por seres fantasmais e de carne e osso. O grupo expõe as vísceras para inventariar o idílio de juventude legado da Londrina natal. Sua terra vermelha, seu café de “ouro verde” preso numa fotografia amarelecida. A utopia encontrou lugar na paisagem estonteante do Rio de Janeiro e ali cavou, de fato, uma ilha de experimentos num dos galpões da Fundição Progresso. Nada mal para quem comeu a poeira metafísica de Samuel Beckett com Esperando Godot, no final dos anos 1990, como sintoma de quem, recém-chegado, estava à deriva sob a árvore seca ora ensolarada ora enluarada.
Antes da coisa toda começar, o espetáculo de turno, espelha a visão angustiada do presente pelas dores do crescer e do envelhecer. Seus criadores fazem da autoanálise pública uma escolha arriscada. O recurso poderia vedá-los na redoma da expiação do passado. Ao contrário, lhes restitui justo os estilhaços com a vitalidade recalcitrante das atuações seguras e das belas composições sonoras e visuais. Um signo estruturante é a deformação. Ela impregna a dramaturgia espiralada de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes, o diretor – parceria de pelo menos 13 anos de paisagens e seres verbais. Grandes espelhos de superfícies borradas refletem a silhuetas de atores e de parte do público.
Nas canções, executadas ao vivo, rascantes de voz e de guitarra ampliam essa atmosfera melódica e melancólica. O rock, que costuma ser ostensivo nas mãos e nas trilhas de Moraes, aqui entremeia silêncios profundos com citações a Rolling Stones, Beatles, Supertramp e Nando Reis, entre outros. Há o acompanhamento de um músico integrado à cena, Ricardo Viana, além dos atores que se revezam em acordeão, teclado, contrabaixo, baterias e afins.
São três histórias de expurgação sobrepostas, fundidas e abduzidas, formaprocedimento parecido com o da peça anterior, Inveja dos anjos. Só que, aqui, toma-se como substrato as memórias reais de quem está no grupo ou em seu entorno. Os dilemas de juventude de Zoé, uma moça apaixonante pela convicção dos seus sentimentos, o que lhe custa um bocado, refletem a identificação de Patrícia Selonk com o papel, manifestam seus olhos marejados durante boa parte da sessão. Longe da hagiografia, os relatos processados como escrita teatral cortam a própria carne para ganhar tratamento ficcional. Não se faz terapia, se transpira.
Em Léa, a cantora de talento incomum que vai ao fundo do posso na sua ego trip, entrevemos a atriz Simone Mazzer com seu vozeirão blusie e jazzy, ela que cumpriu a temporada de estreia carioca e não pôde seguir para São Paulo por motivos profissionais. Em seu lugar, porém, Rosana Stavis também inscreve forte presença física – e voz é músculo -, arrebatando nos momentos mais tempestivos dessa personagem de mal com o mundo.
Téo, o ator veterano cansado dos amortecimentos do ofício, faz o balanço da vida para salvar-se da mediocridade que enxerga em todos, a começar por ele. Thales Coutinho é outro artista talhado para rir e chorar de si e dos seus pares divisados na ribalta e no esvaziamento da realidade. Dos três, eis o personagem que mais transita pela metalinguagem teatral no plano da memória, sendo um pouco do que se é em outros feito rei e bufão com Marcelo Guerra. O soberano e o fanfarrão, o homem e a mulher irmãos, o ator e o personagem, o verso e reverso: os sentidos duplos estão em jogo. (As atrizes Simone Vianna e Camila Nhary completam a equipe em cena. Verônica Rocha também foi substituída por Nhary nas apresentações em São Paulo).
O flashback pulsa constantemente no coração das narrativas autônomas. A ciceroneá-las, a voz e a presença de um hierofante, o Espectro, espécie de “materialização espiritual” da arte do teatro em atuação de Ricardo Martins. Vem dessa figura o distanciamento para situar o espectador quanto aos fluxos de consciência. Téspis e Hamlet são evocados direta ou indiretamente, como na escultura craniana explorada em excesso, diga-se, ou na aparição de escape, na medida, da fã hippie que resgata o botão do figurino que Espectro perdeu na vigésima apresentação da tragédia de Shakespeare no municipal, muito tempo atrás. Em seu trabalho mais inspirado na companhia, Martins proporciona ainda um contraponto na pele de Rufus, o travesti amigo de Téo e responsável pelos pontos de respiro diante das trajetórias que topam com a morte em seus caminhos.
A clareza a respeito da finitude pode estabelecer, por reflexo, uma condição de objetividade diante do cinismo, da covardia da esterelização dos sonhos de geração. Quando se é adolescente, em regra, não dá tempo para pensar nisso. Nunca é forçoso lembrar que o nome Armazém sucede, meses depois da origem, o incomensurável Bombom pra quê se Pirulito Foi Feito para Chupar. Mais de duas décadas depois, a percepção desses artistas é de que os adultos adolescem pelas tabelas, desvalorizam a palavra, temem o médio e o longo prazos, urgem da boca para fora, reféns das ideias fixas. A xícara de chá de Alice virou a xícara de absinto. Na montagem, autocrítica e cólera andam juntas em termos de conteúdo.
Na forma, a conceituação espacial é possante. As paredes móveis desse edifício “bem-assombrado” são prenhes de fendas que giram e levam a outros lugares num estalar de dedos, sejam eles descritivos ou abstratos. E sempre que possível a cenografia de Carla Berri e Moraes, outra feliz dobradinha, deixa à vista os mezaninos laterais onde estão posicionados os instrumentos e os atores-músicos e músicos-atores. Abaixo deles, as araras com os figurinos conotam de vez o teatro por dentro. O desenho de luz de Marcelo Quinderé valoriza tons lisérgicos ou hiper-realistas. Quando casados aos vídeos dos irmãos Vilarouca, banhados de luz ou de sombra umedecida, como diz uma personagem, os corpos pincelam quadros cênicos com aquela assinatura Armazém que mora nos detalhes e vibra o que se vê com o que se escuta. Seu espetáculo de passagem é dotado de senso artesanal e prognostica o que expira e o que reaviva nesse coletivo. Como no ciclo da larva e da borboleta no casulo: dói e dá asas.
(2 de abril de 2011)
Em cartaz no CCBB-SP até 3 de abril.
Em cartaz no Festival de Curitiba, de 7 a 10 de abril
Em cartaz no CCBB-DF, de 20 de abril a 8 de maio
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.