Crítica
O realismo sociológico pode abrigar formas libertárias, confirma Ivan e os cachorros. A narrativa sobre um garoto abandonado que sobrevive nas ruas de Moscou acolhido entre os 4 e os 6 anos por uma matilha, como noticiaram jornais russos no início da década de 1990, não fez a equipe de criação refém do sentimentalismo atávico quando se trata de assumir o ponto de vista de uma criança.
A história desse Pixote moscovita impúbere foi escrita pela inglesa Hattie Naylor a partir de fatos reais. Sua peça originalmente radiofônica, de mesmo nome, é transposta para o palco em solo de Eduardo Mossri traduzido e dirigido por Fernando Villar, pesquisador da UnB.
Uma meticulosa partitura física permite ao ator evidenciar as pulsações interiores do personagem cuja capacidade de fabular está à flor da pele, reflexo da idade, independente da infância roubada.
A dramaturgia constrói um labirinto invisível. O espectador é conduzido por ruas, becos, terrenos baldios e um conjunto habitacional sem que tais espaços sejam cenografados.
Antes, a concepção cenográfica de Ulisses Cohn é a de um território frio, chão e fundo neutralizados pelo branco, remissão à neve, e aquecidos pela luz de Marisa Bentivegna. Ela alterna cromaticamente cada cena, pontuando a briga dos pais, a morte do morador de rua lançado às chamas por outros embriagados e famintos, o cerco de uma gangue também formada por menores, a lenta conquista da cohabitação na toca dos cães, e por aí vai.
Em sua atuação sincrônica, Mossri ainda opera a mesa de som e um gravador antigo, de rolos. A modulação de luz e de som não institui automatismo à movimentação corporal. A multiplicidade de ações confere um caráter performativo que desvia o relato da identificação piegas e valoriza a experiência dos sentidos artísticos colocados em campo.
A encenação de Villar instaura uma sensibilização da escuta e da visão por meio da ambientação sonora, do off com diálogos em russo dos adultos feito radionovela (bem cuidada montagem de Gregory Slivar), das projeções que ilustram os cães e a autoimagem idílica do garoto (multimídia de Mônica Luni e Oriol Abella). Por vezes, esses mesmos recursos podem soar reiterativos ou ofuscar um fala ou outra, ofegante, mas não deixam de constituir uma janela onírica em contraste com o uivo dilacerante do terno Ivan na cidade que o consome nesse rito de passagem tão perverso quanto prematuro.
Observação: o autor do artigo fez parte da comissão que selecionou espetáculos do 15º Cultura Inglesa Festival, em 2011, quando Ivan e os cachorros, uma produção de Brasília, estreou na programação.
>> Temporada no Cultura Inglesa de Pinheiros até 1º/4/2012
>> O blog da peça