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Crítica

Dueto para subversões

Mãos trêmulas

30.6.2023  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Noelia Nájera

“Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam”. O neologismo “velhar”, por subentendido, salta das primeiras linhas do conto Fita verde no cabelo (Nova velha estória), de João Guimarães Rosa, de 1964, feito verbo a sugerir seres inertes diante da vida. Seres, por assim dizer, antípodas às personagens assalariadas, moradoras na periferia urbana e ora desempregadas em Mãos trêmulas, a peça em que a mulher que costura figurinos para teatro há 60 anos e o auxiliar de cozinha que exerceu a função por 50 anos são pródigos em nadar contra a maré. Coisa que a equipe de criação do espetáculo também o faz em termos de contrapés temporais e espaciais na narrativa e na encenação abertas ao insólito e ao cotidiano para falar de afetos transformadores profundos no encontro de sujeitos sociais atuados por Cleide Queiroz e Plínio Soares.

“Dança comigo?”, convida ela logo na abertura, na voz de Queiroz, atriz na casa dos 80 anos, estabelecendo a contracena com a personagem de Soares, ator na casa dos 60. Ambos trabalham continuadamente há décadas no teatro. A cultura do palco e adjacências surge envolvida como metalinguagem na história do casal protagonista. A mulher é quem ancora, inquilina anfitriã do homem convidado a dividir o teto e a intimidade. A casa está com o aluguel atrasado em razão da queda no serviço de figurinos prestado a produções de todos os gêneros. A dupla de atores dá materialidade física e anímica à cena imprimindo suas longas vivências artísticas na pele da linguagem urdida pela turma de criadores. São presenças estruturantes para as sensações e as ideias da dramaturgia de Victor Nóvoa e da direção de Yara de Novaes.

Primeiro, personagens de ‘Mães trêmulas’ investem no prazer do toque. Ela pede a ele para fazê-la gozar. Desejo e sexualidade conformam um poderoso contraponto embalado por canções interpretadas por Alcione. A ótica da mulher negra desejante e consciente de suas potências reluz nos menores gestos de Cleide Queiroz, com os quais Plínio Soares joga com reciprocidade desejante. Seus corpos seminus, em tons terrosos, traduzem latência e vigor, revolucionando atos e imaginações

Falar a partir da realidade de pessoas envelhecidas sem condescender está entre as radicalidades dessa montagem. As trajetórias de lutas pessoais não demovem o homem e a mulher da atitude proativa. Têm aversão ao conformismo. Parecem atravessar um estágio da existência em que prescindem de máscaras na relação, desde os primeiros passos até uma semana, dez anos, uma vida, não importa demarcar a linha de tempo. É a qualidade de ser e estar para com a outra, o outro, que desponta em sínteses e espessamentos nas corporeidades, nas palavras, visualidades, espacialidades e sonoridades deflagradoras de estados emocionais, metafísicos e gozosos.

Graus de invenção no modo de narrar quebram expectativas quanto ao amor entre pessoas velhas. Inclusive, rompem a presumida letargia de quem se abstém de posicionar-se por direitos e cidadania. As causas variadas do tremor das mãos na população idosa atingem em cheio a habilidade artesã de quem costura figurinos para outras pessoas brilharem sob holofotes, mas tem seu trabalho menosprezado pelo produtor de um grande musical, esse pleonasmo. Ou cozinha para um sofisticado restaurante e é descartado na rotina de montar pratos, pelo chef/chefe, aos primeiros sinais de oscilação rítmica das mãos.

Noelia Nájera Cleide Queiroz e Plínio Soares são dirigidos por Yara de Novaes em ‘Mãos trêmulas’, peça de Victor Nóvoa que fala de amor, marginalização e apagamento da população idosa; texto premiado na 2ª edição do programa Dramaturgias em Processo do Teatro da USP, o Tusp, e contemplado na 15ª edição do Prêmio Zé Renato, por meio da Secretaria Municipal de Cultural de São Paulo

Quem se apressar a ler maniqueísmos poderá ser surpreendido pela toada.

Suas sabedorias são ignoradas, mas ele e ela subvertem os traços de subalternização pelos patrões e pelo falso moralismo de parte da sociedade.

Primeiro, investem no prazer do toque. Ela pede a ele para fazê-la gozar. Desejo e sexualidade conformam um poderoso contraponto embalado por canções interpretadas por Alcione. A ótica da mulher negra desejante e consciente de suas potências reluz nos menores gestos de Cleide Queiroz, com os quais Plínio Soares joga com reciprocidade desejante. Seus corpos seminus, em tons terrosos, traduzem latência e vigor, revolucionando atos e imaginações.

É nessa segunda instância que Mãos trêmulas alarga ainda mais os horizontes. Os contornos apreensíveis de personagens já não as distanciam tanto assim do patamar difuso de figuras. Existem outras implicações. A dramaturgia dá margem a reparações de afronta e a encenação assina embaixo implodindo nexos de causalidade. O espetáculo amplia o terreno do onírico (realimentador do real) e seus protagonistas têm a chance de atualizar os desagravos que sofreram. A invasão do Theatro Municipal em plena apresentação de uma obra, palco onde ela jamais pisou, mesmo sendo trabalhadora do meio artístico, e a tomada de um estrelado restaurante de bairro nobre que o demitiu são casos saborosamente contados com criticidade e cumplicidade.

Em contrapartida, infiltrações ordinárias, como a ameaça de despejo e as violentas batidas à porta de presumidas forças de segurança a mando de um oficial de justiça emprestam ao ambiente um tom algo fantasmal e perigoso. Dão essa medida o ronco da cuíca e o agudo da sirene (como os alertas de risco de rompimento de barragem). Há um inimigo externo, ou inimigos, e o casal há de resistir a ele, a eles.

A possibilidade de fabular acerca do mar, um recurso improvável entre as demandas que ele e ela estão passando, liberam o casal para a sensorialidade das memórias de quando frequentavam rios e praias em outras cidades, na juventude. Falam do sororoca, peixe cujo nome deriva do tupi e pode significar “soluço no estertor da agonia”, segundo se lê no dicionário Houaiss. Contudo, para contrariar mais um tanto, ele e ela vão temperar a onomatopeia sororoca com a volúpia subentendida, no roçar das mãos e no rumor do mar aberto que os envolve no universo minimalista da casca de noz que coabitam, sua fortaleza ficcional para o que der e vier.

A capacidade de falar a um público mais amplo, de estimular a reflexão sobre a velhice com variantes sexuais, políticas e poéticas  capazes de conciliar feminilidade, negritude e cultura popular do samba personalíssimo de Alcione, mais citações às atrizes Ruth de Souza, Léa Garcia, Lizette Negreiros e Zezé Motta, dão a esse trabalho uma esperança equilibrista de abrir estradas e mentes.

Noelia Nájera Personagens investem no prazer do toque. Ela pede a ele para fazê-la gozar. Desejo e sexualidade conformam um poderoso contraponto embalado por canções interpretadas por Alcione

É auspicioso ainda o modo como se põe em relevo a gênese mínima de quem são essas personagens. Pistas quanto a um tio perseguido e assassinado pela ditadura civil-militar, que a introduziu ao mundo do teatro. E ao pai que foi um dos operários a construir a Via Anchieta nos anos 1940, primeira estrada a ligar a baixada santista ao planalto paulista, o mesmo provedor que o espancou na adolescência e o fez fugir de casa, para desespero da mãe. São pequenas inflexões biográficas que, vistas hoje da ponte metafórica entre realidade e ficção, permitem leituras mais plausíveis a propósito das histórias outrora bifurcadas e ora trançadas.

No conto de Guimarães Rosa citado no início, o escritor propõe uma recriação de Chapeuzinho Vermelho, revolvendo as convenções em torno de Lobo Mau e Vovozinha, de maneira que a menina Fita Verde é impactada “como se fosse ter juízo pela primeira vez”. Em Mãos trêmulas, a mulher diz que debaixo da pele de gata se esconde uma loba, e que já botou muito malandro para correr. O homem, por sua vez, afirma que não é rato, mas gente, refutando humilhações. Quem sabe, um retrato de pessoas comuns sob a expressão orgânica do instinto de sobrevivência.

Serviço

Mãos trêmulas

Sexta e sábado, 21h, domingo, 20h. De 16 de junho a 9 de julho de 2023

Centro Cultural São Paulo – Espaço Cênico Ademar Guerra (Rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 11 3397-4002)

Grátis. Ingressos esgotados, retirados pelo site https://rvsservicosccsp.byinti.com/#/ticket

60 minutos

16 anos

A temporada de estreia de Mãos trêmulas aconteceu no Sesc Pinheiros, em São Paulo, de 13 de abril a 6 de maio de 2023

Ficha técnica

Idealização e realização: Catarina Milani e Victor Nóvoa

Com: Cleide Queiroz e Plínio Soares

Direção: Yara de Novaes

Assistência de direção: Ivy Souza

Dramaturgia: Victor Nóvoa

Colaboração dramatúrgica: Salloma Salomão

Preparação corporal: Ana Vitória Bella

Figurinos: Fábio Namatame

Cenário: André Cortez

Iluminação: Marisa Bentivegna

Trilha sonora: Raul Teixeira

Direção audiovisual: Julia Rufino

Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli

Registro fotográfico: Noelia Nájera

Direção de produção: Catarina Milani

Assistência de produção: Paula Praia

Contrarregragem: Éder Lopes

Design e comunicação: Cuíca Comunica (Mauricio Prince)

Operador de som: Thiago Schin

Operador de luz: Henrique Andrade

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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