Reportagem
21.3.2014 | por Michele Rolim
Foto de capa: Leo Aversa
Há verdades que não podem ser reveladas, elas precisam ser descobertas. A frase, presente na trama Incêndios, sintetiza de forma contundente o que está por vir. Muitos já conhecem o desfecho surpreendente e devastador da história, pois foi transformada em filme – com direção do canadense Denis Villeneuve e indicado ao Oscar de título estrangeiro em 2011.
O roteiro do longa foi adaptado da peça de teatro de autoria de Wajdi Mouawad, dramaturgo libanês radicado no Canadá, e ganhou sua primeira montagem brasileira com Marieta Severo como protagonista e Aderbal Freire-Filho na direção. O espetáculo, que estreou no Rio de Janeiro, chega a Porto Alegre nesta quinta-feira. As sessões vão até sábado, sempre às 21h, no Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/nº).
Em Incêndios, Marieta vive a árabe Nawal Marwan, que atravessa décadas de uma guerra civil, embora o autor nunca identifique claramente o local geográfico de seus acontecimentos. Tudo indica que é no Líbano, país de origem do dramaturgo.
Nawal passa seus últimos anos no Ocidente, onde morre e deixa em testamento uma difícil missão para seus filhos: entregar duas cartas. Uma, para um irmão, cuja existência desconheciam. Outra, para o pai, que julgavam morto. “São os incêndios que precisam acontecer, para das cinzas renascerem”, diz Marieta sobre a trama.
Aderbal, que ganhou recentemente o Prêmio Shell de Teatro do Rio de melhor direção, explica que mesmo quem já assistiu ao filme vai se surpreender de alguma forma. “O teatro se expressa mais por palavras do que por imagens, não podemos literalmente fazer um ônibus pegar fogo no palco.” Ele acrescenta que, na peça, há personagens que foram retirados do roteiro do cinema, assim como cenas sobre o julgamento de crimes de guerra, tão presentes na dramaturgia. “No filme, as pessoas acabam mais impactadas e, no teatro, mais emocionadas”, declara o diretor.
Para compor a personagem, Marieta se valeu de suas experiências na época da ditadura militar. Inclusive, o programa da peça está dedicado a Zuzu Angel – uma das estilistas mais engajadas da história da moda nacional, que se tornou ícone da luta contra os desaparecidos políticos quando teve seu filho, Stuart Angel, preso durante o regime. “Por mais que não tenhamos uma guerra civil declarada no Brasil, tivemos uma guerra, uma ditadura que propiciou uma coisa que é dita na peça: irmão matando irmão”, comenta a atriz. “Também vivemos uma guerra civil de uma forma camuflada, temos número de mortos que equivalem a isso por conta da violência do tráfico”, diz.
Ela se interessou pelo projeto após receber o texto, enviado por alguém que ela não conhecia, o ator Felipe de Carolis, que comprou os direitos da peça, alegando que teria como parceiro Freire-Filho e a própria Marieta Severo. Detalhe: ele não havia consultado nenhum dos dois. A ousadia de Carolis rendeu a ele o papel do filho e uma peça de sucesso de crítica e público. “Eu já havia visto o filme e sabia do quão envolvente era. As pessoas comentam que, há muito tempo, não assistiam, no teatro, uma grande história”, diz a atriz, que divide o palco com Keli Freitas (a outra filha), Marcio Vito, Kelzy Ecard, Isaac Bernat, Fabianna Mello e Souza e Julio Machado.
O autor estrutura o texto em quatro partes, conforme explica Freire-Filho. A primeira delas é Incêndios de Nawal, que se passa no Canadá. A seguinte é Incêndios na infância, composta por relatos de sua vida no Oriente Médio. A terceira, Incêndios de Jeanne, quando a filha resolve ir em busca do pai, e a última é Incêndios de Simon: o filho sai procurando a verdade. “A peça é um jogo no tempo, espaço e lugar”, conta o diretor.
A parceria entre Freire-Filho e Marieta acontece na vida e na carreira artística. Além de namorados, ele realiza a curadoria do Teatro Poeira, espaço que ela mantém no Rio com a atriz Andréa Beltrão há quase nove anos. “Temos interesse comuns, trabalhar com quem nos conhece é sempre muito bom, as pessoas já sabem teus defeitos e qualidades”, comenta a discreta intérprete, que se despede da personagem Dona Nenê neste ano. Ela está gravando o décimo quarto e último ano da temporada A grande família, seriado da Globo.
.:. Publicado originalmente no Jornal do Comércio, capa do caderno Panorama, em 20/3/2014.
https://www.youtube.com/watch?v=zHmZP5m6F74&feature=player_embedded
Ficha técnica:
Texto: Wajdi Mouawad
Tradução: Angela Leite Lopes
Direção: Aderbal Freire-Filho
Diretor assistente: Fernando Philbert
Com: Marieta Severo, Felipe de Carolis, Keli Freitas, Marcio Vito, Kelzy Ecard, Julio Machado, Isaac Bernart e Fabianna Melo e Souza
Luz: Luiz Paulo Nenen
Cenário e objetos: Fernando Mello da Costa
Figurino: Antônio Medeiros
Trilha sonora: Tato Taborda
Direção de movimento: Marcia Rubim
Idealização do projeto: Felipe de Carolis
Produtores: Felipe de Carolis, Maria Siman e Marieta Severo
Produtor associado: Pablo Sanábio
Produtor executivo e administrador: Luciano Marcelo
Direção de produção: Maria Siman
Realização: E_Merge e Primeira Página Produções
Jornalista e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desenvolve pesquisa em torno do tema curadoria em festivais de artes cênicas. É a repórter responsável pelo setor de artes cênicas do Jornal do Comércio, em Porto Alegre (desde 2010). Participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da Prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival internacional Porto Alegre Em Cena. É crítica e coeditora do site nacional Agora Crítica Teatral e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro, AICT-IACT (www.aict-iatc.org), filiada à Unesco). Por seu trabalho profissional e sua atuação jornalística, foi agraciada com o Prêmio Açorianos de Dança (2015), categoria mídia, da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre (2014), e Prêmio Ari de Jornalismo, categoria reportagem cultural, da Associação Rio Grandense de Imprensa (2010, 2011, 2014).