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Reportagem

A dimensão política da estética

Roda de Memória do Futuro - 3

10.4.2024  |  por Teatrojornal

Foto de capa: Fabio Resende

No terceiro encontro da Roda de Memória do Futuro, sob o mote Teatro e política: dissidências e resistências, a atriz e diretora Georgette Fadel, da Cia. São Jorge de Variedades e colaboradora em outros núcleos artísticos, o ator, diretor e dramaturgo Ademir de Almeida, da Brava Companhia, e o dramaturgo e diretor Alexandre Dal Farra, do grupo Tablado SP (novo nome do Tablado de Arruar) refletem de que maneira a luta por políticas de Estado incidem sobre suas cenas e de seus pares, bem como triangula ou não com os públicos na cidade de São Paulo.

A terceira noite do projeto aconteceu em 3 de abril de 2023. Ocupou a sala principal do Teatro da Universidade de São Paulo, o TUSP da Rua Maria Antônia, na região central. Sob mediação do professor e pesquisador Luiz Fernando Ramos, idealizador da ação transcorrida em nove etapas semanais, ao longo de três meses, ora transcritas e editadas pelo Teatrojornal – Leituras de Cena.

Segue o diálogo que tocou em questões caras às ideias e paradoxos da experiência do teatro político, sobretudo desde a vigência do Programa de Fomento ao Teatro, tornado lei em 2002. De como conciliar ou atritar ambições estéticas a conteúdos que urgem. As demandas éticas em torno do trabalhador da cultura. A subsistência. Os malefícios da arte como mercadoria. A mirada e a miopia aos públicos da periferia. A formação de artista periférico. As mutações dos fazeres e pensares na perspectiva do teatro de grupo. E as armadilhas no território ideológico do bolsonarismo.

*

Luiz Fernando Ramos

A Roda de Memória do Futuro é a nossa iniciativa de tentar mobilizar uma inteligência coletiva para pensar criticamente os últimos 20 anos e projetar perspectivas de políticas para os próximos 20. Preciso dizer que essa ideia surge numa conversa que eu tive com o Dal Farra durante a arguição do doutorado dele. O doutorado dele é um balanço, de alguma maneira, sobre o ciclo que aconteceu no teatro brasileiro, principalmente no teatro de São Paulo. Ele foi mais ou menos entre 2009 e 2015, mas vinha exatamente essa urgência da gente fazer um balanço desse período.

A partir daí eu comecei então a conversar com outras pessoas, fomos construindo e chegamos a essa programação que está mantida até agora e com grandes perspectivas de se manter integralmente. E a ideia também foi fatiar em temas para que a conversa não ficasse patinando, misturando muitas camadas.

O tema de hoje é Teatro e política: dissidências e resistências. Os títulos são um pouco intuitivos para tentar provocar uma discussão. Nem sei bem onde que eu queria chegar com esses dois apostos, mas convidei pessoas que eu sabia que teriam posições interessantes para compartilhar, que respeito e acho inteligentes. A ideia não é que ninguém faça uma palestra sobre esse tema, mas é simplesmente estar na posição de disparador, de fazer a roda girar. Todo mundo aqui tem alguma coisa a dizer por certo, sobre isso, e todos serão ouvidos.

Queria dizer ainda que estamos gravando essa conversa, não só para depois ter um documento registrando de todas as falas, mas porque o TUSP está com um programa na Rádio USP, o Rádio TUSP, que vai ao ar todos os sábados às 6 da tarde e inclusive o próximo sábado irá ao ar o registro da roda que aconteceu semana passada aqui, com a Dione Carlos, com a Lucélia [Sergio], d’Os Crespos, e com a Naruna [Costa], do Clariô, e foi um debate superbacana, O cordão de ouro da periferia, discutindo a questão do teatro periférico e a questão do teatro negro. Não necessariamente essa conversa de hoje virará programa de rádio, mas, de qualquer maneira, eu gostaria que cada um que fosse falar, falasse ao microfone, bem pertinho, assim como eu, para a gente garantir o registro. Semana passada a gente testou isso e funcionou. As vozes estão captadas e estarão ecoando pelas ondas do rádio no sábado.

A visão do ser humano está plastificada, está doente, está pequena. Tudo na gente é muito restrito, muito bípede, comportado, pudico. A gente está sem uma inteligência poética. O que existe é todo mundo tentando literalmente se plastificar, se tornar igual, atacar o outro que tem pensamento diferente. Há uma falta de ponderação ampla, uma falta de noção de todas as lutas

Georgette Fadel, Cia. São Jorge de Variedades

Então para começar vou apresentar nossos convidados de hoje, se já não fosse ocioso fazer isso porque são pessoas muito famosas, mas vamos fazer. A Georgette Fadel, que é atriz, diretora, professora, cofundadora da Cia. São Jorge de Variedades, é atriz formada pela Escola de Arte Dramática da USP e formada também como diretora pelo Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP, professora de interpretação, ganhadora de vários prêmios por suas atuações em trabalhos audiovisuais e no teatro, entre eles o Prêmio Shell de melhor atriz por Gota d’água, um breviário.  O Ademir de Almeida, que é ator, diretor teatral, integrante da Brava Companhia, grupo teatral paulistano sediado na periferia sul da cidade. É também pesquisador de teatro e mestre em artes cênicas pela Universidade de São Paulo, autor da dissertação A cena ativista do Teatro Núcleo Independente durante a década de 1970, defendida em 2021 na ECA-USP, que é um trabalho no qual ele mapeia e analisa a experiência do grupo Núcleo, coletivo teatral responsável por uma importante ação cultural junto ao movimento estudantil e organizações populares durantes os anos da ditadura civil-militar do Brasil – e sei também, pelo seu orientador, o Sérgio de Carvalho, que você está fazendo o doutorado também com um tema, que eu não lembro qual é, que está ligado a nossa discussão. E, por último, não por isso menos, o Alexandre Dal Farra, dramaturgo, diretor, pesquisador e fundador do Tablado de Arruar. Possui mestrado e doutorado pela Universidade de São Paulo, lançou em 2013 o seu primeiro romance, Manual da destruição, e por suas peças, mais de 19 delas encenadas, foi indicado e recebeu diversos prêmios, internacionais, brasileiros e paulistanos, como APCA, Aplauso Brasil, Questão de Crítica, Prêmio Governador do Estado de São Paulo e Prêmio Shell, entre outros. Bom, esses são os nossos disparadores, que vão fazer essa roda girar. Eu vou tomar a licença de pedir para a Georgette começar.

Georgette Fadel

Sabia [risos]. Estou sem o compromisso de gerar uma palestra, mas vou começar por algum lugar. Vou realmente começar a roda… Estou aqui com companheiros muito antigos, a gente já está com uma trajetória, a gente já está se assistindo há muitos anos já. Nesse mesmo espaço a gente fez tanta reunião do Arte contra a Barbárie, há uns 20 anos, e aqueles acontecimentos políticos pareciam ser assim os primeiros acontecimentos políticos da minha vida, no embate direto, profissional. A gente aprendendo muito, ouvindo, a gente era força bruta, ia diante dos vereadores, conversava com vereadores. Principalmente homens, mas já algumas mulheres, mas naquele momento político a discussão política estava mais nas mãos dos homens da esquerda. Tanto é que o Arte contra a Barbárie, o grupo original, acho que era [formado] só [por] homens. Depois que fomos entrando, devagar, a Ana Souto também foi se metendo, a gente, assim, pegando na mão, aquela luta. Estou falando do Arte porque acho que é um ponto comum, onde a gente começa a se politizar um pouco e pelo menos a usar os mesmos termos, e tem textos em comum, e a gente começa a se conversar mais sobre o que é uma companhia, o que não é uma companhia, se é que isso é alguma coisa que se possa definir. Mas pelo menos as discussões começam a surgir. Então foi uma escola para a gente. Fomos aprendendo com esses caras que hoje continuam alguns aí, outros já foram.

Eu lembro que foi um momento anterior a esse momento 2013 pra cá, em que parece que o Brasil de alguma maneira se politizou por uma questão emergencial. Mas a gente que estava fazendo teatro lá para os 2000, 2001, também teve que se levantar e se juntar porque realmente o teatro em São Paulo estava muito esquisitão. Eu lembro da gente fazendo arte no metrô. Aí a prefeitura lançava: “500 pilas para arte na rua”. Aí todo mundo ia para o teatro de rua. Tinha aquelas coisas muito pontuais. Talvez o Prêmio [Estímulo] Flávio Rangel [da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo]. Sabe, umas coisas realmente muito pontuais, uma política cultural zerada, mais do que é hoje.

Quando cheguei em São Paulo realmente a gente tinha algumas estrelas, Antunes Filho e Gerald Thomas, mas Tó [Antônio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem e professor na ECA-USP] e Sérgio de Carvalho [Companhia do Latão e professor na ECA-USP] estavam começando a trabalhar, e outras figuras desse tipo. E também mulheres como Maria Thais, essa “rempa” de mulheres professoras também. Isso tudo estava começando e o terreno era muito mais árido do que agora, é assim que eu vejo pelo menos.

Mesmo para a burguesia branca, amante de teatro e fazedora de teatro nas universidades e tudo mais, era um terreno muito mais árido, com muito menos entradas, muito menos editais. A gente também tinha que se adaptar ao quadro onde companhias não estavam dadas assim, não tinha um florescimento de companhias. Eu lembro de assistir o Boi Voador, por exemplo, com direção de Ulysses Cruz, era uma companhia de teatro, e era muito legal ver (montagens como Corpo de baile, Despertar da primavera, Velhos marinheiros]. Algumas peças do Gabriel Villela também, mas que não era exatamente um grupo, mas parece que tinha um espírito de grupo ali, não sei por quê, era um teatro que a gente já chamava de não comercial. Mas a gente não tinha muitas diretrizes do que seriam as diferenças éticas mesmo ou de intenção de um teatro para o outro, de um tipo de coisa para a outra.

E as coisas começaram a se desenhar com esse movimento do Arte contra a Barbárie e, portanto, com a Lei de Fomento que vem com tudo e começa a repetir a formação desses coletivos. Não vou chover no molhado porque todo mundo que está aqui sabe dessa história e participou dessa história. Mas só para começar o assunto do quanto eu comecei a entender essa extensão da ideia de grupo como um bando de gente, como muitas pessoas que vivem e entendem a onda toda sob essa perspectiva. Então eu posso estar trabalhando com a Estável, eu não preciso estar trabalhando só com a São Jorge. Eu posso trabalhar com a Jana [Janaina Leite]. Porque a gente vai trabalhar dentro de uma certa visão, de uma certa escuta, de um certo funcionamento de escuta, um certo funcionamento, não digo igual, mas igualitário e fraterno em termos de divisão dos recursos e de conversa sobre tudo. Isso não quer dizer que os papeis não estejam ali ainda, não haja ali uma direção, não haja uma dramaturgia e “papapá”, mas existe um tipo de funcionamento quase que utópico que poderia ser inclusive um laboratório de novas sociedades, de possibilidades de sociedades comunistas, comunitárias, de uma construção diferenciada do que a gente estava vendo acontecer cada vez mais dentro da ideia da mercantilização da arte. Tanto é que um dos primeiros lemas era “Arte não é mercadoria”. Isso se espalhou muito em cartaz e adesivos, tem em banheiros até hoje, arte não é mercadoria.

Isso por incrível que pareça não era uma coisa tão clara como discurso para todo mundo, essa ideia, porque até hoje a gente funciona dentro desse mercado. Então a gente produz produtos, a gente faz isso, e a gente vende, a gente tem uma preocupação muito grande com isso, com a nossa sobrevivência, com essa venda. Então, arte não é mercadoria, mas é mercadoria. A gente vive esse dilema, essas competições, essas comparações. A gente vive sendo premiado ou não premiado, a gente descreve uma pessoa pelos prêmios que recebeu, pelo Shell, por exemplo, que deveria ser uma vergonha no nosso currículo, receber um prêmio de uma das sete irmãs do mal, né, assim, que financia a guerra no mundo inteiro. Mas, não, a gente carrega isso, esse espírito que… Eu sei que na nossa categoria é uma coisa também: Pô, tal pessoa ganhou o prêmio…  Eu sei que não existe essa pecha, essa onda da competição, mas vai, porque o carimbozinho de um prêmio é isso, é um cara premiado: “Eu sou uma pessoa premiada, entendeu? Eu sou premiada, eu me diferencio.” Sabe por que? E se não tivesse nenhum prêmio aí? Mas também quem endossou essa liberdade, não é? [com ironia] Tem que ser, sei lá, de alguma maneira endossado dentro desses critérios de comparação e competição que regem a gente.

Então eu sinto que o teatro hoje em dia, para nossa alegria, embora seja muito difícil fazer, porque cada palavra de um texto entra em discussão – hoje em dia você não pode, “Ah, vou lá fazer isso aqui” –, tudo o que você fala é carta na mesa, tudo o que você fala é bode expiatório. Todas as dramaturgias e todas as atuações são consequentes hoje em dia, você não entra para brilhar, você entra para provocar ou para realmente ser alvo de reflexão, alvo de pensamento, de elaboração de pensamento.

Otacilio Olacran A partir da esquerda, artistas convidados Alexandre Dal Farra, Georgette Fadel e Ademir de Almeida ao lado do mediador Luiz Fernando Ramos no início da conversa em torno do tema ‘Teatro e política: dissidências e resistências’, razão da terceira noite da Roda de Memória do Futuro, no TUSP da Maria Antônia, em 3 de abril de 2023

Eu sinto uma diferença muito grande do estar em cena em outros tempos, um certo glamour ainda que cercava, inclusive as escolas de teatro. Quando você vê por exemplo, a EAD e a ECA, quando a gente entrava – vocês são os 20 escolhidos do Olimpo, né, os que entravam na EAD. E hoje em dia, bicho, os professores estão rolando e tendo que se rever a cada milímetro proferido diante daquela população negra, trans, mulher, cis, todo tipo de não-binarismo e todo tipo de propostas, que muita gente que está com mais de 50 nem sempre domina e aceita com tanta facilidade uma discussão que coloca em xeque toda uma vida de conhecimento e, portanto, poder. Então é muito difícil um professor enfrentar o não saber, o não poder, o abrir mão de uma posição de poder, de um conhecimento que ele não tem. A gente está assistindo muita coisa. Tem até uma camiseta (estou repetindo isso para todo mundo, que achei muito genial) que estão vendendo no Instagram que é: “Estou farta de viver momentos históricos”. Chega de viver momentos históricos porque há um tempo atrás a gente era uma geração que não vivia porra nenhuma, não viveu a ditadura, vivia nessa onda: “Vocês não sabem o que é ter um inimigo real, porque aí sim o teatro ia se desenhar enquanto força política e tal”.

E aí a gente tem uma desgraça atrás de desgraça e o teatro se desenhando, tendo que se desenhar com muita complexidade. E acho que o que mais lindo é o teatro saindo de um pedestal de intocável e entrando na roda mesmo da arena das discussões mais imbricadas que a gente está assistindo. Inclusive movimentos e opiniões muito divergentes dentro do mesmo tipo de pensamento, as questões vão aparecendo, e elas são múltiplas, dentro do movimento negro, dentro do movimento trans, dentro do movimento feminista. As discussões imensas, complexas, elas se batem, são contraditórias, são ambivalentes, são duras, e a cena é o melhor lugar para a gente ver isso tudo rolando. A gente sabe, por exemplo, das dramaturgias do Dal Farra, que são provocativas nesse sentido, ou seja, sem medo de colocar na roda o que tem que ser colocado, ou seja, sem a necessidade de ser o tempo todo politicamente correta, sem a necessidade de se defender o tempo todo como uma celebridade intocável que está sempre sobre as discussões, sempre em cima das discussões, sempre “bem na fita”. Não, a gente poder se colocar, com o nosso ego dilacerado, que seja, mas a serviço dessa roda girante, mesmo, que tem que girar, e a gente sabe que tem que girar rápido para a gente ganhar novas liberdades e ir para a nova fase do joguinho, pelo menos no campo da arte, pelo menos nesse campo empírico da cultura. Joguei alguma coisa? Ou não…

Alexandre Dal Farra

Vou eu? [para Luiz Fernando]

Luiz Fernando Ramos

Acho que podia ir para o Ademir. Acho que fez uma síntese incrível [para Georgette].

Ademir de Almeida

Peço licença para apresentar algumas ideias. Eu organizei umas coisas aqui. Acho que pode ser útil trazer uma fala mais organizada porque não sou muito bom de improviso. E acho que vai dialogar bastante com o que a Georgette já disparou aqui porque eu sou um produto desses momentos aí. Eu sou velho já de idade, mas sou um pouco mais jovem dentro do teatro. Sou um pouco produto desse período que você comentou.

Então, para mim, pensando teatro e política na perspectiva de resistências e dissidências, conforme a proposta dessa atividade, eu creio que a contribuição que posso trazer para essa conversa tem a ver com alguns elementos da minha experiência.

Como cidadão trabalhador, nascido na periferia sul da cidade de São Paulo, onde vivo até hoje, integrante de um grupo de teatro que já há 25 anos tem sede e atua nesse mesmo território, e, mais recentemente, como pesquisador de teatro…

Como filho de um operário da construção civil e de uma mulher dona de casa, nascido no bairro Jardim Ângela, periferia sul, em 1973, e crescido naquela região, durante as décadas de 1980 e 1990, não tenho como começar minha fala aqui de outra forma, senão dizendo que não há como pensarmos o futuro do teatro e das políticas públicas para o teatro, sem pensarmos, ao mesmo tempo, no futuro e nas políticas públicas para as populações pobres de periferia – que são a maioria da população desse país.

A presença e a importância do teatro fora dos circuitos e corredores culturais tradicionais da cidade têm sido mais notadas nos últimos tempos, é verdade – resultado do esforço de muitos artistas e das políticas públicas implantadas em São Paulo em anos recentes. Mas ainda estamos longe do ideal. E eu creio que ainda não é possível dizer que o teatro seja uma realidade presente em toda a cidade. O que nos leva a pensar, seguindo essa lógica, que também não seja possível dizer que o teatro faça parte da vida da maioria dos cidadãos, e isso é um fato. Um fato que expõe uma divisão, uma dissidência, como também está lá no título da atividade, pois no Brasil – e aqui todo mundo sabe – existe um abismo social entre a maioria de gente pobre e uma minoria que concentra as riquezas do país – e o teatro, sendo ainda algo para poucos, se torna mais um privilégio que alimenta esse abismo.

No entanto, quando consegue furar a sua bolha social o teatro pode ser útil no empenho para mudar esse quadro, pois é uma arte com alto potencial mobilizador. O teatro pode unir teoria e prática, pode juntar pessoas diferentes e linguagens diferentes, pode gerar processos coletivos e organizativos e pode servir como disparador de ações artísticas e políticas. O teatro tem essa capacidade. Entretanto, eu faço questão de sublinhar a palavra “pode”, porque essa potência política do teatro só se realiza quando há intencionalidade, quando os agentes envolvidos trabalham para isso e quando as circunstâncias em que se promove a atividade teatral permitem.

Aqui eu vou fazer um breve relato para expor o meu primeiro contato com o teatro, porque considero que é um exemplo dessa importância que o teatro pode ter na formação cultural e política de uma pessoa, sobretudo, quando se criam ou surgem condições para que o fazer teatral extrapole a sua bolha social.

Sendo morador de um bairro pobre e afastado, eu só fui ter contato com teatro aos 20 anos de idade, em meados dos anos 1990. Como filho de pais pobres e com pouca instrução, fui aluno de escola pública e tive uma primeira educação pouco sofisticada, com raras leituras de livros, pouquíssimo cinema, muito rádio e televisão, e nenhum teatro.

Nos anos 1990, a periferia sentiu no bolso, na pele, no estômago e no espírito, os efeitos do avanço das políticas econômicas liberais, ou neoliberais, com a precarização dos serviços públicos, as privatizações, a perda de renda e o desemprego – que vinham acompanhados de uma cultura consumista, que era fomentada, e que entre os mais jovens gerava frustração, desesperança e violência. Foram os anos de estabelecimento do crime organizado e de suas facções nas periferias paulistanas e da multiplicação das igrejas evangélicas nesses territórios.

Durante muito tempo, o Jardim Ângela, que é o bairro onde eu nasci, juntamente com o Capão Redondo e o Parque Santo Antônio eram conhecidos como o “Triângulo da Morte”. Era um nome dado pela imprensa, pois era a região considerada a mais violenta do mundo naquele momento, por contabilizar mais mortes brutais do que em outros locais do planeta onde havia guerras em curso.

São Paulo estava em um processo acelerado de desindustrialização, se tornava uma cidade de serviços, e foi por esses dias que eu terminei o terceiro ano colegial e comecei a trabalhar em uma empresa de telemarketing. Com o salário e a ajuda financeira dos meus pais, consegui ingressar em um curso técnico de processamento de dados – que consistia, basicamente, em aulas que ensinavam a manusear computadores e também a usar as primeiras versões do sistema Windows.

Como a universidade parecia algo inacessível, ao menos naquele momento, o curso técnico era uma tentativa de melhorar minhas condições de competir no mercado de trabalho, afinal, como diziam meus pais, era preciso ajudar em casa.

E foi nesse ambiente de formação para o mercado de trabalho, em uma escola técnica no bairro de Santo Amaro, talvez alguns aqui conheçam, o Colégio Radial, que acabei tendo meu primeiro contato com o teatro – já na prática, improvisando e criando cenas, sem nunca ter visto antes uma peça de teatro. A aula de teatro nessa escola era uma espécie de “brinde” para alunos pagantes. Não era obrigatória, acontecia em um horário alternativo e, portanto, não deveria interferir no curso que os alunos estivessem frequentando.

Quem coordenava a atividade era o professor Celso Solha – ator formado na Escola de Arte Dramática, na EAD [na ECA-USP], que tinha sido aluno de Antunes Filho e passara a se dedicar ao ensino do teatro para jovens. As aulas de teatro faziam parte do que ele chamava de Projeto Criação, que também agregava a montagem de peças com as várias turmas e a realização de uma mostra de teatro dentro da escola.

O professor Celso tinha extrema habilidade no teatro com os jovens, e suas aulas eram dinâmicas e muito divertidas. O teatro era ensinado, basicamente, na prática, e de maneira muito livre e coletiva, com diversos jogos e exercícios de improviso em grupo, e com todos os alunos se envolvendo nas tarefas necessárias para a montagem de uma peça. Como o ambiente que se instaurava nas aulas era muito acolhedor, aqueles que chegavam ali, por acaso – como eu – movidos, muitas vezes, pela curiosidade, acabavam ficando e trazendo outros. Participei do Projeto Criação durante os três anos que fiquei naquela escola.

Entre os grupos daquele período, citados nesta rápida exposição – o Grupo Núcleo Independente, o Teatro de Arena e o Teatro Popular União e Olho Vivo –, havia algo que orientava sua estética e seu pensamento político, e que mobilizava suas ações. Um horizonte que, acredito, precisa ser recuperado para que as nossas práticas teatrais se fortaleçam, se multipliquem e ajudem a impulsionar transformações necessárias em outros setores da sociedade. Falo aqui da ideia de um projeto de país. Pode ser que seja um debate amplo demais para esse tipo de roda de conversa, mas penso que ele possa, pelo menos, permear a nossa reflexão sobre o futuro do teatro

Ademir de Almeida, Brava Companhia

Depois que terminei o curso técnico, participei do projeto ainda durante mais um ano, em uma turma de ex-alunos que se reunia aos sábados. Com a direção do professor Celso Solha, trabalhei em quatro peças. Assim como eu, depois da participação naquele projeto de teatro, muitas pessoas reorientaram suas trajetórias de vida. Foi com amigos que conheci ali, que, mais tarde, iniciei o grupo de teatro em que estou até hoje.

O que considero relevante nesse meu relato é a contradição que ele apresenta. Eu, e muitos outros filhos e filhas de trabalhadores, que chegamos ali naquele espaço com a intenção de se preparar individualmente para competir no mundo do trabalho, descobrimos, por meio de uma aula de teatro, que era possível se organizar e trabalhar em grupo de maneira livre, inventiva, coletiva e prazerosa; e também que a nossa criatividade não precisava ficar limitada, necessariamente, a uma lógica utilitarista e mercadológica. Ou seja, descobrimos outra possibilidade de estar e agir no mundo.

Alguns dos meus amigos, naquele momento, além de participar do Projeto Criação, também frequentavam aulas de teatro aos finais de semana na Associação Comunitária Monte Azul, organização que atua, ainda hoje, dentro da favela de mesmo nome [no distrito Jardim São Luís, zona sul].

Aqui, vale lembrar um outro dado histórico importante sobre a década de 1990: que foi nesse período que proliferaram pelas periferias das grandes cidades as chamadas Organizações Não Governamentais, as ONGs, implantadas como dispositivos de atenuação dos conflitos sociais naqueles territórios, e que utilizavam, entre outras coisas, a arte – inclusive o teatro – como ferramenta para a tarefa de redução da violência

Meus amigos, que faziam teatro nessa entidade, tinham como professor Reinaldo Maia [1954-2009, dramaturgo, diretor e ator cofundador do grupo Folias d’Arte], que na época atuava também como um dos articuladores do Movimento Arte contra a Barbárie. As aulas de Reinaldo Maia eram diferentes das aulas do Projeto Criação. Eram marcadas pela preocupação com a disciplina relacionada ao ofício do ator e por um fazer teatral comprometido, eticamente, com a ideia de justiça social.

Essas duas experiências teatrais (o Projeto Criação, no Colégio Radial, animado pelo professor Celso Solha, e o Grupo de Teatro Monte Azul, dirigido por Reinaldo Maia) foram os primeiros referenciais artísticos e políticos em teatro que inspiraram a mim, e aos meus amigos, a criar nosso próprio grupo, no ano de 1998.

Essas vivências também forjaram em nós uma primeira concepção do que seria política, nos mostrando outras formas de estar e agir no mundo, e nos despertando a vontade de interferir, de alguma forma, na nossa realidade.

O grupo é fruto desses primeiros referenciais práticos, em diálogo com as experiências e vontades dos seus integrantes, naquele momento e naquelas circunstâncias históricas. Em seu início, inclusive, por conta disso, predomina no grupo uma atitude com forte viés social e territorial – movida naquele momento pela vontade legítima de colaborar com a melhoria da realidade da periferia por meio do teatro, mas muito influenciada também por práticas e discursos voluntaristas que eram dominantes naquele período. Uma fase de uma prática excessiva do grupo, mas de pouca reflexão política sobre essa prática.

Para a leitura crítica desse momento e a sua superação foi determinante o encontro e o diálogo com outros grupos e parceiros que já tinham uma ação e um pensamento político mais desenvolvidos. Aprendemos com esses parceiros que existia uma cooperativa que reunia artistas e grupos de teatro, e que, além de estar organizado em grupo, era importante estar também organizado com outros grupos, porque havia lutas da nossa categoria em curso na cidade.

É quando se inicia uma fase menos territorialista e de conexão com a categoria teatral. Foi também um período de muito estudo e de contato com sindicatos e movimentos organizados das cidades, movimentos ligados às lutas por moradia, saúde e educação. Essas experiências preparam o nosso grupo para uma terceira fase, que chega até os dias de hoje. É uma etapa que nós descobrimos e nos assumimos como trabalhadores do teatro e da cultura – consciência que orienta a nossa arte no sentido de buscar, cada vez mais, conexão com as lutas do povo periférico, que são, basicamente, as lutas da classe trabalhadora.

Essa trajetória da Brava Companhia que eu resumi até aqui é a trajetória do meu aprendizado político ao longo desses anos. E é um aprendizado que se deu a partir do teatro.

Para encaminhar aqui para o final (virou palestra, né, desculpa aí), farei também uma breve intervenção como pesquisador de teatro, para expor uma conexão histórica entre a experiência da Brava Companhia e a experiência de um importante coletivo teatral dos anos 1970 – salientando que, certamente, essa experiência da Brava tem pontos em comum com a experiência de outros grupos e coletivos da cidade, hoje, que também têm origem e atuação em territórios periféricos, como Pombas Urbanas, Dolores Boca Aberta, Clariô, Buraco d’Oráculo, Capulanas, para citar alguns.

Eu falo de um vínculo histórico entre a experiência desses grupos com a experiência do Grupo Núcleo Independente. O Grupo Núcleo foi criado por Celso Frateschi, Denise Del Vecchio, Dulce Muniz, Hélio Muniz, Edson Santana, entre outros, em 1969, e foi o meu objeto de pesquisa durante o mestrado acadêmico.

Esse grupo nasceu dentro do Teatro do Arena de São Paulo, a partir de um curso de interpretação proposto, inicialmente, por Cecilia Boal e Heleny Guariba, durante a vigência do AI-5. Esse curso, após alguns meses, sofre uma interrupção traumática por conta do desaparecimento de Heleny Guariba, que, além de brilhante diretora e professora de teatro, era militante de uma organização política de esquerda que lutava contra o regime autoritário daqueles dias. Heleny, mais tarde se descobriu, foi torturada, assassinada e teve seu corpo desaparecido pela ditadura civil-militar.

Quanto ao curso no Arena, chegou a ser retomado e finalizado com a supervisão de Augusto Boal, que também incentivou que parte da turma de alunos permanecesse ali, como elenco de apoio do Arena. Aqueles jovens artistas acabaram, na prática, se tornando o último núcleo criativo do Teatro Arena. Com a falência financeira daquele espaço, formaram um novo coletivo teatral, que adotou o nome de Grupo Núcleo.

Resumindo bastante a história, esse grupo realiza, durante a fase mais aguda da ditadura, uma importante ação militante, sobretudo, junto ao Movimento Estudantil daquela época, formando células teatrais a partir das técnicas do Teatro Jornal – técnicas que foram criadas por eles, em parceria com Boal. Com o aumento da repressão do regime autoritário, o Grupo Núcleo planeja e realiza uma mudança em seu modo de ação e se transfere da região central para a periferia da cidade, onde passa a circular com espetáculos por bairros pobres e instalam uma sede, na Penha, zona leste de São Paulo.

Essa experiência do Grupo Núcleo durou 10 anos e agregou muitos artistas diferentes, inclusive o próprio Reinaldo Maia, já citado aqui, que participou do grupo entre os anos de 1974 a 1976. Essa experiência também deixou sementes – grupos e espaços que se formaram a partir do contato com o Grupo Núcleo, participando de suas oficinas e acompanhando seus espetáculos.

O Grupo Núcleo, obviamente, não foi o único que realizou, naquele tempo, esse tipo de ação artística e política por meio do teatro. Ele conviveu, por exemplo, com o Teatro Popular União e Olho Vivo, que se mantém na ativa até hoje, e conviveu também com outros agrupamentos que, naquela época, formaram o Movimento de Teatro Independente, que tinha como bandeira a popularização do fazer teatral, e se alinhava às lutas dos setores mais progressistas da sociedade contra a ditadura.

Entre os grupos daquele período, citados nesta rápida exposição – o Grupo Núcleo Independente, o Teatro de Arena e o Teatro Popular União e Olho Vivo –, havia algo que orientava sua estética e seu pensamento político, e que mobilizava suas ações. Um horizonte que, acredito, precisa ser recuperado para que as nossas práticas teatrais se fortaleçam, se multipliquem e ajudem a impulsionar transformações necessárias em outros setores da sociedade. Falo aqui da ideia de um projeto de país.

Pode ser que seja um debate amplo demais para esse tipo de roda de conversa, mas penso que ele possa, pelo menos, permear a nossa reflexão sobre o futuro do teatro. Obrigado.

Otávio Dantas A atriz Gabriela Elias contracena com Clayton Mariano (máscara) em ‘Verdade’ (2002), dramaturgia e direção de Alexandre Dal Farra, com o grupo Tablado SP (novo nome do Tablado de Arruar), acerca das relações do governo Bolsonaro com militares

Alexandre Dal Farra

Valeu. É isso mesmo. Bem, obrigado pelas falas iniciais. Eu vou tentar não repetir muito porque na verdade acho que a gente escutou duas vivências que falam mais ou menos do mesmo período de certa maneira e que eu acho que, batendo o olho, para vários de nós, isso é um pouco a nossa história. O que constituiu um pouco o terreno que talvez muitos de nós tenham passado por ele. Estou falando da primeira década dos anos 2000. Acho que estava sendo uma onda bem direta, continuando do que você falou do Arte contra a Barbárie e todo esse momento, década de 1990.

Outro dia ouvi um cara falando: “O lulismo é muito maior que o Lula”. É interessante, porque esse relato que você dá [para Almeida] é uma espécie de pré-lulismo que já é lulismo. Quer dizer, já tem ali essa tendência à criação de sistemas de trazer a participação de outras populações para um território que era muito restrito, que vai ser o carro-chefe, vai estruturar o lulismo, vamos dizer, em vários níveis, e acho que no teatro também, e que vai dar de certa forma no que a gente está vivendo agora.

Na minha tese [O transe brasileiro no teatro: dinâmicas de diferenciação e ascensão autoritária vistas da cena, 2023, pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da USP] eu nem falei muito esse momento de agora, mas acho que é uma questão para pensar, o que está rolando. Porque é óbvio que eu não tenho como não pensar que no relato que você deu, me lembra da ELT [Escola Livre de Teatro de Santo André]. Várias pessoas aqui deram aula lá. Eu lembro disso que sempre me chama atenção. Hoje eu vi um vídeo da Linn da Quebrada dançando na Globo, e ela era aluna na ELT há pouco tempo atrás, eu estava dando aula lá e tal, ou seja, com pessoas que vieram logo depois disso, dessa época, enfim, a Liniker, o Jhonny Salaberg, todo esse pessoal.

De certa forma tem uma linha que é uma continuidade entre essa experiência que o Ademir traz e que todos nós sabemos que isso aconteceu de alguma maneira, na década de 1990 e no começo dos anos 2000, e depois continuou acontecendo e se ampliando. Se alterou aí, com certeza, o linguajar, a estrutura de pensamento é completamente outra. Isso eu vivi na ELT, o que você descreveu dos professores com medo de falar e não sei o quê, e aquelas rodas de alunos e tal. Na verdade, os alunos é que mandavam no rolê e tudo o mais. Porque, enfim, esse momento dessa novidade total em termos de estruturação de pensamento político, mas se você for ver num ponto de vista um pouco mais amplo existe uma linha de continuidade também.

Na minha tese eu estava muito falando sobre uma ruptura que eu acho que aconteceu mais ou menos em meados dos anos de 2010, 2015, por ali. Mas tem também ao mesmo tempo uma continuidade que vai paralela e que vai estruturando uma situação. Me incomoda também um lugar saudosista, assim: “Nossa, o teatro político de outra época” – estou falando de mim mesmo –, “aí, sim, a gente tinha umas elaborações e tal”.

Primeiro, eu nem me interesso necessariamente por teatro político, eu acabo fazendo teatro político porque me interesso por política, porque eu penso politicamente. Mas eu nem defendo que o teatro deve ser político, óbvio que sempre é político. Muitas vezes você tem experiências artísticas que não são políticas, entre aspas, mas que são muito mais criadoras de contradição e movimento, nesse sentido muito mais políticas, né. Então eu defenderia, assim, de saída, a coisa do teatro político. Mas mesmo que se pense assim, jogando, o Sem palavras, do Marcio Abreu [diretor da companhia brasileira de teatro, de Curitiba], peça do ano passado, se não me engano, é uma peça de teatro político, claramente, no sentido de que afirma posições, faz um discurso, defende pautas que são políticas com “p” minúsculo, inclusive. Então, nesse sentido, eu acho que tem uma espécie de continuidade também ocorrendo, embora eu ache que haja também uma ruptura.

Então é isso, eu penso na Linn da Quebrada na Globo agora e me lembro do Prêmio Shell do Dolores, né, que daí eles tacaram óleo na cabeça e tal [protesto do Coletivo Dolores na 23ª edição do prêmio contra a patrocinadora, em 2011]. Ou seja, essa coisa da vergonha do Shell não tem mais, acabou a vergonha do Shell. Ou seja, a ideia é que teatro não é mercadoria ficou velha, bastante ingênua, hoje em dia. Na época não era, então eu acho que tem algo aí que se moveu.

Georgette Fadel

O Bolsonaro fez pesar, né, tipo, a Globo virou esquerda, tudo caiu para o outro lado. Tudo é liberdade… 

Alexandre Dal Farra

Exato. Eu acho que também é uma semelhança que fiquei pensando esses dias. Todo mundo sabe da história de que a Globo, de quando caiu o golpe, o que eles fizeram, todo mundo conta essa história, em vez de contratar um monte de roteirista de direita contratou todo mundo do “PCzão” [referência ao Partido Comunista Brasileiro, o PCB, fundado em 1922, enquanto o Partido Comunista do Brasil, o PCdoB, surge em 1962]. E eu acho que a Globo fez algo semelhante agora. Na verdade, está fazendo mesmo. Então você vê: Linn da Quebrada, Luh Mazza, Clayton Nascimento já está lá…

Luiz Fernando Ramos

Dione Carlos…

Georgette Fadel

Grace Passô…

Alexandre Dal Farra

Ou seja, a nova tendência política da moda, eu vou usar essa palavra – ser de esquerda, marxista, era da moda também, entende –, então a moda se altera, hoje em dia não é o marxismo, é, sei lá, o identitarismo, essa palavra é ruim, que seja, mas ela é igualmente utilizada e a Globo pensa também igual. Então o que tem em comum entre esses momentos: estamos sob um golpe, estávamos, até agora há pouco. Só que o golpe nesse momento, e daí tem um pouco do que tentei falar na tese, eu acho que ele se deu de outra maneira.

Então, para mim, primeiro tem uma avaliação que eu acho incorreta, que eu já vi várias pessoas fazendo, de que o golpe dessa vez venceu inclusive na área da cultura, porque a cultura teria deixado de ser de esquerda. Eu não acho isso, isso é um dado factual. Você pega tudo isso que eu acabei de falar e pega a posse do Lula (a não ser que você diga que o Lula não é de esquerda também e que a esquerda não tem mais representatividade, tudo bem, você pode ir nessa radicalidade). Mas se estamos falando no campo da esquerda, no sentido mais amplo, o campo da esquerda continua tendo muito espaço na cultura e a Globo está fazendo a mesma coisa, os shows que desse momento estão na moda, assim como na época era o Vianinha [dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho]. Eu acho isso uma questão e queria jogar provocativamente. 

De certa forma, esse incômodo que uma pessoa acima de 50 anos tem com a questão não-binária, eu não sei se não se tinha com o PT também, as pessoas do PCzão. O PT era uma novidade, ele vinha com uma ideia de descentralização, de fim do stalinismo, não sei o quê. O que eu estou querendo dizer com isso: as ideologias dentro da esquerda sempre se moveram. Não é que a esquerda acabou, acho que elas [as ideologias] sempre estão se movendo e é problemático. Você pega texto de 1981 do [sociólogo] Chico de Oliveira [1933-2019] falando do PT e descendo o pau, dizendo que aquilo não era de esquerda. É tudo complexo, as coisas se movem e eu acho que existem continuidades que parece que não existem.

Por outro lado, eu acho que o Brasil tem uma tendência, no todo talvez – o Luiz Fernando falou no dia da defesa do doutorado de várias outras exceções, eu acho que daí eu não tenho capacidade de falar –, existe uma tendência de uma experiência de disputa muito acirrada no campo ideológico. Ou seja, de muita pressão. Então é o Estado Novo [1937-1945], é a ditadura [1965-1985] e é agora. Ou seja, as exceções são os momentos onde a gente tem, parece que um espaço para respirar e poder “complexizar’ mais a questão.

Tem um método, o exército lê manuais de guerra psicológica. Uma das ideias que circulam é essa de cismogênese, tipo, você dirige uma força muito grande em direção ao inimigo e a tendência natural é ele se defender do lado de lá. Daí, ele fica lá se autoafirmando por si só, você não precisa fazer mais nada. Eu acho que a gente caiu muito nisso, o que é compreensível, não estou fazendo uma mega autocrítica. Como tem muita potência de retroalimentação, de um meio sobre si mesmo, a gente sente que está indo para adiante, se desenvolvendo dentro de nós mesmos. Muitas vezes a gente acaba ficando num discurso menos complexo do que realmente aconteceu, como o país ali um pouco antes de 2015

Alexandre Dal Farra, Tablado SP

Daí eu acho que tem, sim, uma diferença entre o golpe de 64 e o Bolsonaro, é um pouco disso que eu tento falar na tese e que eu acho que vale para pensar agora. Um pouco a ideia é assim: mais ou menos ali por 2015, penso que houve um fechamento do território de disputa ideológica no sentido que a Georgette falou, quer dizer, o Bolsonaro puxou e a gente foi, mas isso se estrutura de uma maneira bem complexa. Ou seja, é uma espécie de autocensura, que se dá no seguinte sentido: a gente se sente atacado do lado de lá, com um inimigo forte demais, e faz o movimento de que a gente precisa saber o que a gente quer e dizer claramente o que a gente quer. Como se a gente estivesse numa guerra com eles, mas essa guerra não se dá. Quer dizer, eles não vêm ver as nossas peças e a gente não vai ver as peças deles. As nossas peças são feitas por nós mesmos e ficam aqui dentro e o resultado disso é que a gente fica repetindo as mesmas coisas sempre para nós mesmos.

Então a minha ideia na verdade é que isso nos enfraquece. Ao invés de se fortalecer com esse discurso, a gente se torna mais previsível à medida em que a gente só responde a esse estímulo muito violento que vem de lá e tenta fortalecer o nosso discurso achando que está fazendo frente a eles, mas a gente não está fazendo frente, porque não estamos encontrando com eles, a gente está na verdade se fortalecendo, entre aspas. Só que esse fortalecimento enfraquece, porque ele joga no lugar do medo, e a gente sempre consegue dizer uma única coisa em termos de leitura e em termos de complexização das questões. E daí eu estou falando de discurso mesmo, do que uma peça diz.

Acho que dali por 2015 a gente pode pensar em cinema.  Você pensa num mesmo diretor, Kleber Mendonça, compara O som ao redor [2012] e Aquarius [2016], para mim o primeiro está falando de uma época de abertura, onde você consegue falar de uma sociedade de maneira complexa, em que não dá para fechar uma narrativa única, com um único ponto de vista. Você tem uma ameaça meio disforme, você tem figuras que estão ali vagando em um mundo sem saber o que fazer e essas disputas territoriais influenciam essas figuras, cada uma de um jeito e tal, e cria um filme que não se fecha. Você não consegue falar: “O filme é isso”. É um filme aberto. Aí você pega o mesmo diretor poucos anos depois e faz Aquarius, que é, para mim, claramente militante no sentido de defesa de uma posição. Quase dizendo: “Somos a Dilma, esses cupins precisam voltar para o lugar deles, cupins igual ao Temer”, só faltava dizer, e colocar a equação no fim. E no fim [da sessão] todo mundo batia palma e gritava “Fora, Temer”. Tudo bem, não tenho nada contra a minha rede de internet até hoje chama “Fora, Temer” [risos]. Mas houve um fechamento, me parece, da possibilidade de se criar um espaço de debate onde as coisas podiam ficar em aberto porque a gente se sentiu muito acossado e sentiu que precisava dizer a que veio.

Isso tem um nome, e eu falo um pouco na tese. Tem um método, o exército lê manuais de guerra psicológica, você pode entrar na internet e tem lá o manual deles, e fala de vários métodos desse tipo. Uma das ideias que circulam é essa de cismogênese, tipo, você dirige uma força muito grande em direção ao inimigo e a tendência natural é ele se defender do lado de lá. Daí, ele fica lá se autoafirmando por si só, você não precisa fazer mais nada. Eu acho que a gente caiu muito nisso, o que é compreensível, não estou fazendo uma mega autocrítica. Como tem muita potência de retroalimentação, de um meio sobre si mesmo, a gente sente que está indo para adiante, se desenvolvendo dentro de nós mesmos. Muitas vezes a gente acaba ficando num discurso menos complexo do que realmente aconteceu, como o país ali um pouco antes de 2015. O que também é obvio, não é uma coisa total, é uma tendência, eu acho, do todo, da qual tem um monte de exceções em todas as áreas. E nesse sentido, para mim pouco importa qual é a ideologia dominante, se é marxismo, branco, homem… Ou se é o momento de qual seja ou tenha o nome que tiver a movimentação política de agora, todos os territórios ideológicos permitem uma postura provocativa, que permite movimento dentro dele, e uma postura que é conservadora, só de retroalimentação do mesmo. E acho que isso também acontece em todos os momentos.

Talvez seja isso que eu tinha para falar, esse momento da virada, do que eu acho que aconteceu mais ou menos ali em meados dos anos 2010, mas eu acho que ao mesmo tempo (que é uma coisa que não falo na tese) tem um outro vetor que é de continuidade, quer dizer, não foi uma ruptura total de cima abaixo, tem coisas que continuam num movimento muito direto. E isso é uma exceção na história brasileira, ter mais de uma geração que continua de alguma forma dialogando com a anterior, sem uma ruptura de cima abaixo. Agora também a gente tem um momento novo, em que me parece que o teatro brasileiro tem uma relação como mercado internacional, tenho a impressão que é maior do que nunca, os que sabem melhor podem me corrigir… Quer dizer, o mercado internacional do teatro, primeiro que ele é mais mundial hoje em dia, e daí a relação dele com o Brasil é muito mais direta. São as mesmas pessoas, né, que estão num festival não sei onde, que estão aqui também, quer dizer, os critérios são meio os mesmos, então isso também altera o cenário atual.

Eu sinto assim, a gente tem um momento que é uma exceção total que é a volta do Lula. Talvez se construa uma nova abertura, porque a gente não estará supostamente sob o mesmo nível de pressão. Mas, por enquanto, eu acho que isso ainda não se mostra, eu acho que o território ideológico brasileiro ainda está se estruturando em dois espaços totalmente separados e com forças equivalentes e a gente, mesmo estando no governo, sente que precisa fazer oposição constante ao lado de lá e eles sempre foram oposição, inclusive deles mesmos, vão continuar na mesma toada.

Essa armadilha é um problema para o teatro político, porque nos coloca num lugar onde a gente é forçado a dizer a que veio. O tempo inteiro a gente tem de dizer, porque tem um cara lá falando não sei o quê. O que me preocupa e o que eu defendo é essa coisa da possibilidade da polêmica, no sentido não só na multiplicidade de vozes, mas também na multiplicidade de discursos, a possibilidade de discursos que não digam sempre o mesmo. Do nosso próprio discurso não ficar nesse lugar da reafirmação do que já sabemos. Que a gente tenha a oportunidade para talvez não cair nisso.

Luiz Fernando Ramos

Bom, a roda está aberta.

Homem participante não identificado

Oi, gente. Eu queria saber dos três como veem especificamente a questão das censuras no nosso período, uma das mais recentes no Brasil, barra cancelamentos, porque para mim essas coisas também envolvem essa discussão. Só de memória assim eu lembro que os algoritmos do Bolsonaro montaram muito, lembro do Macaquinhos, depois eu acho que foi o caso da Priscila Toscano [diretora do Desvio Coletivo, junto com Marcos Bulhões]. Eles foram montando muito isso para fazer toda a discussão de costumes e a bancar o bolsonarismo. Acho que o ápice disso é com o Wagner Schwartz [artista que sofreu ataques em razão da performance La Bête, de 2018]. (…) São questões complexas e eu queria ouvir um pouco vocês. O Ademir também, que eu acho que talvez tenha outras visões sobre esses assuntos mais estruturais…

Georgette Fadel

A primeira coisa, acho que tem uma diferença entre a censura do Estado – quem está com o poder vai lá e censura, mata a qualquer divergência, esse tipo de coisa. Agora a luta dos povos, a luta dos movimentos, uma luta por espaço, a crítica – por exemplo, a história do espetáculo Entrevista com Stela do Patrocínio [em 2017, espectadores negros questionaram a atriz por ser uma mulher branca a interpretar uma poeta negra], que a moça e o moço interromperam o espetáculo com toda a legitimidade, elegância, por uma questão totalmente legítima, num espetáculo aberto, mesmo se não fosse, é dessa natureza, uma arena, um espaço democrático. A pessoa não está me desrespeitando, a pessoa está conversando comigo. Eu sou uma pessoa que estou me dispondo a estar em cena e portanto me dispondo ao diálogo. Se tem pessoas vivas diante de mim, essas pessoas podem se manifestar, ainda mais quando estão sendo violentadas há séculos, inclusive por esse teatro que eu estou fazendo.

É diferente do Estado censurar e impedir. Por quê? Eu poderia estar fazendo Stela até agora. Eu não fui censurada no sentido de não poder fazer, ninguém vai pagar, e você está fora e tem que se exilar. Não, as pessoas se manifestaram dizendo: “Presta atenção no que você está fazendo.  O que você está fazendo é violento com um povo, presta atenção”. Pessoas negras vieram falar comigo para continuar a fazer, inclusive para polemizar, para trazer a questão para a roda. Eu achei por bem não fazer, mas em nenhum momento eu me senti censurada, eu me senti convocada a pensar se aquilo não era real, se aquelas pessoas não estavam pleiteando uma reflexão real da minha parte, que eu me juntasse à luta, já que eu me dizia amante da Stela, que eu me juntasse às Stelas, vivas, nesse momento. E foi uma intervenção super linda, e eu não me senti ofendida em nenhum momento. Pelo contrário, me senti ofendida depois pelos meus amigos brancos, que vêm me defender, e só me jogando na lama. Aí foi foda porque era um bando de argumento tosco, porque naquele momento a gente estava muito menos ligados, ligadas, ligades em todo tipo de necessidade de reflexão política que a gente tem que ter agora.

Então acho que existem diferenças aí, o poder instituído censura e quem está lutando por espaço, pleiteia, se manifesta, luta, interrompe, faz greve, pleiteia espaço de comunicação, e às vezes são violentos.  Por quê? Alguém já viu alguém conquistar alguma coisa batendo de frente com o poder instituído que não seja de uma maneira violenta? Não existe isso, existe o pé no peito.

Eu acho muito diferente de um Estado que censura, que é realmente um bloqueio da possibilidade institucional de você realizar o seu trabalho. Muitos meandros disso. A gente poderia falar, por exemplo, da atuação do Sesc em relação a tudo isso, a esse período. Tentando defender a liberdade de artistas e ao mesmo tempo, em algum momento, censurando até antes os espetáculos para que eles não passassem pela questão da censura posterior.

Sobre os cancelamentos, existe um rosto que pode ser amplamente desenvolvido, o afeto distorcido, que é o oposto da compaixão, o oposto da compreensão, o oposto da reflexão, que é o ataque frontal e destrutivo a uma pessoa, que nunca é uma coisa só. Uma coisa é você pendurar de ponta-cabeça um Mussolini, outra coisa é você querer picar em 70 mil pedaços um Bolsonaro, que é um criminoso em grande escala. Outra coisa é alguém cometer um erro crasso e isso virar um show de horrores.

A visão do ser humano está plastificada, está doente, está pequena. Tudo na gente é muito restrito, muito bípede, comportado, pudico. A gente está sem uma inteligência poética. O que existe é todo mundo tentando literalmente se plastificar, se tornar igual, atacar o outro que tem pensamento diferente. A gente vê movimentos se atacando, o movimento trans atacando o movimento feminista, o movimento feminista batendo em movimento sei lá o quê… Há uma falta de ponderação ampla, uma falta de noção de todas as lutas. É muito difícil. Você leva na cabeça a vida inteira enquanto trans, aí você quer matar a mulher cis que se acha o último biscoito do pacote e fica falando em buceta, em útero, em menstruação o tempo todo, só que a gente está há milênios tentando falar da nossa buceta…

E aí, como fica? E aí é uma luta contra a outra. E aí cancelamentos entre pessoas que estão na verdade em busca de liberdades, autenticidades, particularidades, todo mundo ali. Isso é perigosíssimo, é capital financeiro de extrema direita articulando e colocando dinheiro nesses embates. A gente sabe que tem extrema direita financiando brigas entre esses movimentos para enfraquecê-los. Não é teoria de conspiração, a gente sabe que tem.

Otacilio Olacran Parte do público que interagiu durante o encontro reflexivo e gratuito realizado na sede do Tusp, em São Paulo

Então é muita coisa sob o guarda-chuva do que a gente chama de censura. Muita vontade de punir realmente agressores. Por exemplo, homens abusadores, isso é uma questão atual. Abuso, relacionamentos abusivos. Todo mundo está de olho hoje nos próprios relacionamentos – será que estou num relacionamento abusivo, será que não estou, será que meu amigo é abusivo, a gente está descobrindo. Agora, também tem a história do autismo, eu estou descobrindo que eu tenho muitos amigos e amigas autistas, o que eu não sabia. Então a gente está numa descoberta de coisas e possibilidades e o nosso coração se desenvolvendo muito pouco, a nossa incapacidade cardíaca de se colocar num lugar, sabe, de cuidar da própria vida. Sabe, de cuidar de aprender a plantar cenoura, sabe, assim? Escrever uma peça bacana sobre uma questão que você acha que é. A gente está florescendo muito pouco e querendo muito tacar o veneno na hortinha do outro. E ao mesmo tempo a gente se define a partir do pisar na cabeça do outro, então eu vou pisando ao redor para me destacar. Por isso que eu falei da crueldade. A gente vibra pouco com a vitória do outro. Tem muita inveja, tem muita raiva, muita competição, muita necessidade de se afirmar enquanto alguma coisa especial no mundo. (…)

Então, todo tipo de atrocidade começa a acontecer, e com as redes sociais ainda mais, nessa cadeia, nessa vertigem. Pronto, a pessoa cometeu um erro, ela pode ser crucificada pelo resto da vida. Assim como uma pessoa que cometeu erros a vida inteira pode passar muito bem ilesa e considerada uma grande celebridade, e ser desculpada até o último fio de cabelo.  (…)

Ademir de Almeida

Rapidamente, acho que só para acrescentar. Essa censura moral que está na moda agora, muito conduzida pela direita, acho que é só babaquice, é uma produção de ignorância que a gente, de alguma forma, tem que ter uma paciência quando vem da parte de gente próxima e tentar combater no nível do possível. Agora, pensando no teatro como intervenção artística no espaço público, quando a gente vai falar com o público, eu acho que também faz parte da nossa obrigação, a gente ficar quieto e tentar aprender o que está sendo proposto nesse momento na sociedade, quais são as novas sociabilidades, quais são as pessoas que hoje em dia precisam se colocar com mais espaço, onde a gente tem que abrir espaço, como a Georgette falou. Acho um pouco a nossa obrigação como artista aprender a lidar com isso da melhor maneira possível, e como ser humano mesmo, como cidadão. Nos transformar, nos reformar.

Pensando no teatro, como a gente circula muito na periferia com a Brava Companhia, a gente faz muito teatro de rua também, a gente está um pouco acostumado com essa reação imediata de quando coloca alguma coisa em cena ou fala alguma coisa em cena que não agrada e tem que lidar com isso.

Alexandre Dal Farra

Bom, acho que tem dois lados da pergunta, lógico. Tem esse lado da censura institucional que acho que para mim daí tem o capítulo Alvim [Roberto Alvim, diretor e dramaturgo, secretário especial de cultura no governo Jair Bolsonaro], que eu acho bem didático em relação ao que aconteceu no país naquela virada porque ele surfou nas duas ondas, vamos dizer assim. É obvio que o campo ideológico ele existe em disputa. Então existem momentos de hegemonia ideológica de uma determinada estrutura de pensamento. O lulismo foi uma estrutura de pensamento dominante por muito tempo, em expansão, como se tivesse acabado tudo aquilo de tão ruim. As coisas estavam melhorando e iam melhorar cada vez mais. Havia problemas, ninguém deixou de vê-los, mas eles iam diminuir gradualmente até sumir. E meio que todo mundo se sentia nisso e o teatro também – “Estamos nos sentindo parte do mundo de certa forma já”. Não era mais um teatro com os nossos problemas. Estou falando, aí, da leva Felipe Hirsch, Hiato… O teatro brasileiro deixou de dever para qualquer teatro do mundo. Isso estava um pouco assim como uma superação. Isso era a onda lulismo, me parece, que era única.

Depois isso se subdividiu em duas ondas, ali a partir de 2016, eu acho que o país se cindiu e ficou uma hegemonia por meio da duplicidade, que também é uma forma de hegemonia, eu acho: a hegemonia da guerra, que está até hoje. Então hoje em dia a gente não tem uma hegemonia dominante no Brasil, desde o Temer, se passou a pensar o Brasil como duas coisas e a gente nunca sabe quem vai ganhar, é o tempo inteiro esse negócio. E continua até agora, o Lula está aí e continua, porque os caras estão do outro lado.

O Alvim foi o cara que entendeu o que estava acontecendo, me parece, e surfou dos dois lados. Então ali por 2015, mais ou menos, ele falou nas redes sociais: “Eu virei de esquerda”. E todo mundo acreditou, foi ver o espetáculo Leite derramado e falou: “Cara, essa peça é incrível e fala do Brasil…”. E deu certo, porque trazia Chico Buarque, Vladimir Safatle, que compôs três musiquinhas para a peça – a música não era dele, era do outro cara que eu esqueci o nome. Então, pra quê estava o nome dele lá? Porque é o Vladimir Safatle, né. Ou seja, existe uma hegemonia cultural da esquerda, ele leu isso, jogou, e deu certo, e todo mundo falou: “Maravilhoso, você não só é o Alvim como é de esquerda” [risos]. E daí depois ele pulou para o outro lado, porque, sei lá, pensou que era melhor, que era um esquema bom, alterou, virou e todo mundo lembra do restante da história, porque a outra parte a gente finge que esquece. Ele surfou nas duas ondas.

Então eu acho que essa censura é uma das ondas. Eram as duas ondas em disputa, vamos dizer. Eu não compro o discurso de que o Estado brasileiro virou censor. Eu acho que era a disputa ideológica onde uma onda estava pegando bem na pontinha da outra e dizendo: “Aquela ali é que eu vou pegar porque mais diz o que me interessa para eu mostrar para o meu próprio público que eu me afirmo por meio dele”. Semelhante ao Alexandre Frota, agora virou, era o nosso aliado. Mas você lembra que ele ia lá e fazia esse papel, dizia: “Olha isso aqui, que absurdo”. Isso se estrutura como censura de Estado, ao fim e ao cabo, em situações e tal, mas me parece que é uma disputa dessas duas ondas se impondo e falando: “Existe a direita aqui e eu me mostro”. Porque a direita sempre foi assim, elegendo inimigos. Eu acho, pode ser que esteja errado, mas não acredito que foi uma política dominante do bolsonarismo.

Eu acho que a política cultural do ministro do bolsonarismo foi exatamente essa, o tempo inteiro bombardear nossa cabeça com merda do lado de lá e forçar a gente a ficar do nosso lado fazendo nosso papel que é sempre o mesmo. E daí também era muito fácil, de certa forma, porque sempre a gente fornecia material para eles fazerem do lado de lá, porque é o que a gente gosta de fazer mesmo, é Carnaval, golden shower, não sei o quê. Aí o cara falava: “Ah, então pronto, é só pegar aqui e descer o pau…”. As coisas se retroalimentam e está tudo certo. Ou seja, na minha sensação era meio subproduto desse grande embate ideológico que passou a estruturar a nossa cabeça. Isso a censura do Estado.

Aí a coisa do Branco [espetáculo Branco: o cheiro do lírio e do formol, texto de Dal Farra, acusado de racismo na 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), em 2017] e as outras coisas: é mais difícil falar porque foi uma situação pessoal que foi complexa, porque não foi da mesma maneira que a Georgette está colocando, se inseriu dentro de um embate muito cheio de politicagem de todos os tipos que você pode imaginar. Porque já estava em outro lugar, era um debate institucional também, ao mesmo tempo que artístico. Estava se falando da peça, mas estava se falando do festival e de estar ocupando aquele lugar no festival principalmente. E daí tinha crítico envolvido, tinha um monte de forças que não eram simplesmente esse lugar de “preciso ocupar esse espaço e tal”. Existem outras também, como todos os movimentos políticos, você também pisa na cabeça de quem precisa para subir e tomar o seu lugar, isso daí acontece, faz parte e aconteceu ali, tem várias particularidades.

Mas eu acho que tem dinâmicas que eu identifico ali e eu acho que acontece de várias outras formas em outros lugares, que são essas dinâmicas paranoides. São paranoias que vão se formando e ali no Branco era uma grande paranoia dos dois lados. A paranoia tem esse problema, a pessoa pensa o que ela quiser, então você não tem como dizer nada. Não existe o que possa ser dito, a paranoia se constrói por si só.  Então essa dinâmica da duplicidade de territórios muito distantes ela é paranoide, a retroalimentação de cada lado é paranoide, a gente sempre imagina que o lado de lá já está… A gente fica pensando que o Bolsonaro agora vai, sei lá, começar a matar efetivamente as pessoas, meu vizinho vai morrer e tal. Você vai construindo, em parte ele faz mesmo, mas em parte ele não faz. Então você fica numa dinâmica paranoide com esse outro lado. A própria peça, o Branco, fala disso, também se estrutura nesse lugar. Eu acho que essa lógica estava rondando, está nos rondando, e eu acho que é um pouco o que você descreve [para Georgette], essa lógica de o quê que o outro está tramando que pode nos foder e eu preciso me estruturar aqui, e é sempre um negócio lá e cá. Eu acho que é muito uma lógica em que a gente está enfiado. Politicamente, seja no território que esteja, quais forem as disputas que defenda, não é uma lógica libertária. (…) No teatro acho que a coragem verdadeira é abrir espaço para coisas que a gente não sabe, que são confusas.

Rodrigo Dourado, artista, pesquisador e professor na UFPE

Eu sou de Recife. Fico pensando um pouco em termos de paralelos possíveis do movimento teatral. Nos últimos anos é possível observar três movimentos talvez que mobilizaram a classe. No Brasil, o primeiro, o desmonte do MinC, no governo Temer, lembro que muitos dos argumentos que surgiam nas rodas tentavam provar que nós éramos um setor importante para a economia. Acho que isso dá muito conta de tudo o que aconteceu desde o início dos 2000, que é o grande negócio da cultura e a organização do movimento teatral e cultural no Brasil em torno dessa noção da economia da cultura.

Toda a energia mobilizada desde o primeiro governo Lula até 2015 quando começa o desmonte completo é uma energia para que os coletivos se instrumentalizem para acessar os editais e os instrumentos de distribuição de recursos do poder público. Quando chega o golpe e vem o desmonte, a gente se olha e diz assim: “Mas nós não temos nada além do desejo de acessar essa grana”.

Um outro momento que eu identifico é quando os Clowns de Shakespeare são censurados na Caixa Cultural no Recife [espetáculo Abrazo, em 2019]. Tinha acontecido algo parecido no CCBB do Rio com Caranguejo overdrive [d’Aquela Cia, em 2020] e Renata Carvalho havia sido censurada especificamente em Garanhuns, interior de Pernambuco [com o solo Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, em 2018, no festival de inverno da cidade]. Tudo isso gerou uma energia que mobilizou a classe.

Acho que o terceiro momento é a pandemia, quando as pessoas começam a dizer: “Estamos passando fome”. E começa uma grande articulação nacional e vem a Lei Aldir Blanc, vem a Paulo Gustavo. Então é como a crise vem instaurado a mobilização do teatro brasileiro. A gente só se junta quando aparece uma ameaça iminente. Tenho aqui com um livro do Sérgio de Carvalho, de 2018, acho, chama O direito ao teatro, e ele já ali vai sinalizar claramente a armadilha que é esse tal negócio da cultura, essa famigerada economia da cultura. Ouvi demais das gerações de 1970 e 1980, que faziam teatro nessa época, que a era dos editais acabou com o teatro, porque não tem mais temporada longa, ninguém se articula mais para produzir um espetáculo se não for por meio de edital. Você só cumpre as exigências do edital e claro que isso vai gerando uma distorção gigantesca, porque aí você tem uma demanda reprimida e esses espetáculos não atendidos não vão acontecer.

E eu queria chegar a um outro ponto talvez só para a gente pensar um pouco acerca do grande balcão, do grande negócio da cultura, que é o circuito dos festivais, que é circuito do Sesc, que são os prêmios. Você tem os curadores que geram um modelo de hegemonia dentro do teatro brasileiro. Em Pernambuco você tem um caso emblemático. E pensar como as pautas identitárias vem sendo capturadas por esse circuito também. Porque esse circuito olha e “tokeniza” as pautas identitárias. Então você vai ter o grupo de teatro negro que vai circular por todo o “circuitão” do teatro brasileiro, você vai ter o ou a artista trans que vai circular, você vai ter o grupo nordestino, o grupo da pauta feminista. Então acho que são coisas para a gente pensar questões políticas assim que me ocorreram ouvindo a fala de vocês.

Jade Percassi, cientista social e pesquisadora

Fiquei pensando muito nas coisas que o Alê falou sobre essa movimentação e, principalmente, que é importante a gente ouvir o Rodrigo e tirar a lupa, com uma visão mais nacional. Mas aqui em São Paulo a impressão que eu tenho é que nesse período que você [para Dal Farra] descreve, em que de alguma maneira tinha um certo assentamento, de uma certa tranquilidade, adesão a esse tipo de pensamento do lulismo, eu tenho uma outra leitura. Porque eu acho que dentro do movimento do teatro de grupo, que é amplíssimo, plural, e que bom que é assim, a gente tinha algumas movimentações internas ao movimento acontecendo naquele momento pré-2013 e pós-2013 – porque eu acho que 2013 é um marco também para a gente pensar nessas mudanças de reposicionamento do território ideológico brasileiro. E que aqui em São Paulo particularmente eu também estava estudando nessa época os nossos amigos e amigas, brinco que os nossos sujeitos/objetos estavam todos aqui nessa sala, e vejo que tinha alguns grupos, inclusive o seu próprio, que estavam fazendo uma movimentação diferente disso no sentido de olhar e ver: “Isso vai dar um problema muito grande”. E fazendo uma leitura do que vinha sendo a implementação das políticas redistributivas não acompanhadas de um processo de formação político-ideológica e de paradigmas de educação, universal, gratuita, etc., e que isso ali na frente um pouco ia dar problema e a gente está vendo que deu mesmo.

A impressão que eu tenho sobre isso era de que alguns desses grupos, de teatro de grupo, percebendo essa movimentação de abafamento das contradições e de cooptação de uma certa parcela das classes trabalhadoras com as políticas redistributivas e não fazendo um trabalho com a intencionalidade de disputa ideológica mais ampla – com discussão sobre marco regulatório da comunicação, por exemplo, que já era pautado na época por Intervozes e outros coletivos que defendiam o fórum nacional da democratização do acesso à comunicação, etc. –estavam orientando o seu fazer teatral e os seus processos de pesquisa e estudo e de criação e estética para uma retomada de algo do período anterior, que é aquele que a gente não tem saudade. E de buscar não apenas se questionar sobre o que a gente faz em termos de teatro, mas para quem a gente faz teatro ou com quem a gente quer dialogar. De que maneira a gente não se assenta nesse lugar confortável de que está sendo construída uma hegemonia de esquerda ou pelo menos democrática popular de alguma maneira na sociedade e aí a gente vai fazer o nosso teatro falando de questões que não tocam diretamente na vida e perrengues reais da sociedade.

Então existiam grupos que estavam na contramão disso, buscando esse outro caminho. E esses grupos de alguma maneira foram sendo escanteados de alguma maneira, seja por uma crítica – “Ah, vocês estão querendo ser a nova vanguarda do pensamento crítico, que a gente está andando junto com o processo de concretização do projeto democrático popular, etc.” –, ou, por um outro lado, de dizer: “Não, vocês estão querendo reviver os anos 1960, os anos 1980, uma coisa basista, que não tem como competir com os grandes meios de comunicação, ou com, hoje seria, com as redes sociais”. Bom, mas se não for para fazer isso, a gente vai fazer teatro para quê?

Alexandre Dal Farra

Posso falar um negócio? Na verdade, é meio isso que eu estava querendo dizer. A minha ideia é assim: a hegemonia ideológica no macro do lulismo, ao contrário do que possa parecer, sendo uma só, ela permite muito mais complexidades e aberturas. Inclusive essa ideia desse período eu chamo de aberturas lá na minha tese. Como você tem um horizonte só, se desdobram muitas divergências desse campo mais ou menos hegemônico, totalmente hegemônico na verdade no país. E depois que acontece, como se divide em dois, estreita muito a possibilidade de contradição dentro de cada um desses territórios.

É um esquema de dominação muito mais eficiente esse de divisão. Pra mim eu acho que é mais grave, quando chegaram e disseram que essa peça não deveria acontecer, e não estou falando do Branco, estou falando do Abnegação II [espetáculo de subtítulo O começo do fim, segunda parte da Trilogia Abnegação(2014-2016)], dentro de uma lógica de que é para defender o governo de um outro lado que é muito pior. Ou seja, nessa lógica nós somos todos, de repente, militantes filiados ao PT, todo mundo sabe tudo de estratégia política e daí está dizendo o que tem de ser feito. E por quê? Porque a gente acha que está em guerra, porque essa guerra foi imposta nesse lugar. Mas dentro do teatro a gente não está em guerra porra nenhuma, ninguém veio ver a peça, só os casos isolados de censura que usaram aquilo como escada para em geral ganhar voto e ocupar lugares, e depois acabou, entende? Então, quer dizer, essa guerra era real até certo ponto. Era real lá fora, aqui dentro do teatro não era.

Valmir Santos, jornalista e crítico teatral

Queria voltar um pouco. A Georgette falou sobre o Arte contra a Barbárie, aquele processo de mobilização que culminou com a aprovação do Programa de Fomento ao Teatro [para a Cidade de São Paulo, 2002], e queria pensar nessa palavra teatro de grupo, nesse verbete. Em que medida vocês, nas experiências dos grupos, percebem que de alguma forma o Fomento contribuiu para um processo de politização, sua e dos pares. Ou mesmo fazendo uma autoanálise, olhando para trás, e à luz do dia de hoje, pensando nas três companhias… A São Jorge, por exemplo, teve um hiato considerável e retomou recente. Eu queria pensar nessas autoconsciências sobre a ideia de grupo e de politização na cena e no processo de criação, de organização.

E, particularmente, para o Ademir, eu queria trazer uma ideia sobre teatro comunitário, o teatro em comunidade, na medida em que a Brava durante muito tempo tem um território, a sua sede [mesmo quando se desloca geograficamente], e outros grupos também. Um pouco a ideia de associar o período do Fomento com a noção de descentralização do teatro na cidade, o Dolores lá na Cidade do Patriarca, por exemplo, o Grupo XIX na Vila Maria Zélia, o Pombas Urbanas em Cidades Tiradentes e assim sucessivamente. Essa ideia de teatro pensando na comunidade, como considerar isso em 2023?

Moacir, pesquisador teatral

Posso só complementar a pergunta? Fiquei pensando várias coisas na discussão, acho que tem muito a ser pensado, a começar, assim, a gente está pensando em um teatro político para o qual a gente tem uma certa urgência de pensar as condições materiais da existência dele. Acho que ficou muito clara essa dimensão (não só do teatro político, inclusive). Tem um livro que eu acho que é a Iná que organiza, a propósito do Fomento [A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas para a cultura: os cinco primeiros anos da Lei de Fomento ao Teatro, coorganização Iná Camargo Costa e Dorberto Carvalho, Cooperativa Paulista de Teatro, 2008], e lembro que lendo os debates da época, que está lá documentado, tem uma coisa central ali sobre o Arte contra a Barbárie que vinha justamente pensar as leis de patrocínio anteriores e olhar como aquilo engessava de alguma forma a produção teatral e propunha um projeto em que se pudesse se firmar sobre as poéticas dos grupos, se deter sobre pesquisa. E nessa avaliação depois dos cinco anos, a Iná faz um levantamento no sentido de pensar os avanços na dramaturgia, na encenação, em termos de pensar problemas específicos e tudo o mais. Meu complemento é justamente esse, se teve um salto grande naquele momento, como isso se dá hoje, se esse salto de alguma forma hoje vai para um outro lugar, se continua, pensar nessa diferenciação.  É isso, gente.

Reinaldo Meneguim A partir da esquerda, Georgette Fadel, Patrícia Gifford, codiretoras com Paula Klein Flecha Dourada e demais artistas da Cia. São Jorge de Variedades em ‘Festa dos bárbaros’ (2022), criação para espaço ao ar livre com 24 atores ou músicos, e inspirada em etnias indígenas que confrontaram colonizadores e em rituais de cura e conexão com ancestralidades

Georgette Fadel

Eu não sou a melhor pessoa do mundo para fazer uma análise distanciada conjuntural. Eu fui assistindo um pouco de dentro tudo isso acontecer. Sobre a lei de fomento, ela permitiu a nossa existência. Sou uma defensora nata desse tipo de política diante do quadro que se apresentava, dos quadros que se apresentam dentro do que é possível fazer, eu não acho que é uma lei perfeita. O [Prêmio] Zé Renato [2014] veio depois como um pensamento daquele mesmo grupo, a gente sentava ali no terraço do Nova Dança na 13 de Maio pensando nesse Zé Renato, que demorou depois uma década para sair. Era uma lei que a gente estava pensando junto com a de Fomento. A Lei de Fomento seria para companhias de continuidade e o Zé Renato com possibilidade de circulação e projetos de artistas autônomos etc. Ou seja, a vitória da Lei de Fomento e a vitória do Arte contra a Barbárie, aquilo foi um período maravilhoso porque a gente começou a se reunir e discutir. E a Lei de Fomento veio nesse bojo trazendo a possibilidade do que antes não era possível, é simples assim.

Antes a gente tinha o Antunes Filho no CPT com dinheiro, o Gerald Thomas, tal, tal, tal, eram produções pontuais com dinheiro e a gente correndo atrás de pequenas migalhas da prefeitura ou do Estado, da União, não sei se era Lei Rouanet já, mas tinha uma lei de incentivo dos marqueteiros, que sempre foi… Então, assim, a Lei de Fomento permitiu um movimento que antes não era possível.

Como mundo gira e a lusitana roda e tudo se transforma no seu oposto é claro que os perigos são múltiplos. O perigo da acomodação é só do teatro de grupo? Fomos muito acusados durante todos os anos da Lei de Fomento de a gente estar se acomodando. Dentro da São Jorge isso nunca aconteceu. A gente ralou o cu e a gente nunca ganhou mais que R$ 1,5 mil por mês. A Lei de Fomento nunca nos garantiu nada além da sobrevivência de um projeto no momento em que ele estava sendo executado e, mesmo assim, miseravelmente. E a gente foi acusado quando ganhamos Petrobras, eu me lembro que o prêmio era de R$ 1 milhão para dois anos de trabalho com 40 pessoas em cena, no Barafonda, e fomos acusados de comprar iate e sei lá o quê [Programa Petrobras Cultural, 2011].

O que eu quero dizer, assim, acho que muita gente se acomodou, e muita gente não se acomodou, sabe, assim? O sistema de editais é um sistema paupérrimo, realmente. Porque poderia ser a exuberância cultural do nosso país e desse mundo, mesmo. É uma coisa que de certa forma vem corrigir um coração sufocado pela estrutura neoliberal, vem injetar pulsação e sangue num coração petrificado. Então, assim, o dinheiro da bilheteria vai vir? Talvez não. O Renato Borghi vive até hoje de bilheteria, mas trabalhando com Matheus Nachtergaele porque talvez o nome dele traga para o teatro a bilheteria que ele precisa. Ele conseguiu com o Molière, com o Matheus, que é da Globo, traz. Eu talvez tenha tido chance de viver de bilheteria uma vez na minha vida quando eu dirigi Camila Pitanga, eu não dirijo pessoas de projeção assim. Acho que a situação é sempre complexa, nós que somos de esquerda precisamos sempre pensar o que é possível nesse momento. Naquela época se fosse possível outra coisa a gente teria feito.

O que está acontecendo hoje é um outro quadro. Hoje em dia o teatro está tão esmagado que o que eu ganhava com o Felipe Hirsch há 10 anos, que era tipo R$ 7 mil/mês, que era um sonho para quem fazia teatro, na primeira peça que eu fiz com ele; agora, no Sesc, contratado, 10 anos depois, ele pagou R$ 5 mil, e se eu fizesse a preparação corporal, ele me deu mais R$ 1 mil, ou seja, R$ 6 mil.

Valmir Santos

Georgette, e o Prêmio Shell continua contemplando com R$ 8 mil…     

Georgette Fadel

E eu já disse, quando ganhei, quando eu tinha 32 anos de idade, e eu tenho 49, eu já falei no discurso: “Shell, tome vergonha na cara e aumente o valor do prêmio, porque está congelado há 20 anos”. Ou seja, há 15 anos eu já pedia o aumento do prêmio e continua congelado. Então é um esmagamento total, o que nos empurra para o audiovisual, que nos recebe com essas séries de streaming, onde estão nossos dramaturgos, atores, atrizes e, claro, com roteiros muito mais interessantes que as novelas. Por quê? Porque não existe possibilidade de fechar o mês. Eu estou com meu pai e com minha mãe precisando de dinheiro, estão doentes, passaram dos 80, eu agora estou sustentando um pouco ali. Você passa de patamar ali e começa a vender o cu. Aí você vira aquela cinquentona que faz ponta em novela e vai levando “malemá” a sua carreira, sem profundidade no teatro, porque hoje em dia os processos têm dois meses, ou três, a exigência de resultado é imensa. As pessoas vão cobrando novidades de linguagem e o que a gente está conseguindo dar é só o punho em riste porque você escreve de primeira alguma coisa para dar conta do processo de dois meses e esse discurso realmente é o cu, e já deu, até para a negritude, entendeu? Eu dirigi um grupo negro ano passado, eles disseram, pelo amor de deus, a gente quer outra dramaturgia, outra história. Então isso já deu, só que ninguém tem tempo para elaborar com profundidade.

Nós temos chão para lutar, a arena está posta, a gente pode lutar, mas a gente nunca teve essa batalha como ganha. A gente não tem sede, a gente entregou a sede assim que ganhou o último Fomento. Depois passamos quatro anos sem ganhar. A gente não teve condição de sustentar sede. Então, que grupo está estruturado em cima do quê? Para dizer de uma acomodação ou que o teatro brasileiro funciona mais na crise… Eu acho que o teatro só existe por causa da imperfeição humana e da errância humana. Acho que a gente tem nessas décadas de explosões teatrais, coisas importantíssimas, maneiras de falar de política e sobre o ser muito profundas. Como a própria maneira da Jana [atriz e dramaturga Janaina Leite] de escolher atacar o que é corpo, matéria, o que é mulher, mãe, sexo, erotismo, relação, penetração, ou seja, muitos artistas exploraram muitos terrenos, e é claro que 99% é lixo, como sempre foi.

(…)

O Celso Frateschi, por exemplo, naquele momento foi fundamental, mesmo não tendo a mesma visão da Lei de Fomento que a gente tinha. Porque ele não acreditava que grupos poderiam ganhar sucessivamente. A gente brigava com o Celso, mas ele estava ali de secretário da Cultura, era um artista, foi fundamental [dirigia o Departamento de Teatro na pasta desde 2001 e foi titular em 2003 e 2004].

Valmir Santos

E estava lá no Núcleo do Arena [o Teatro Núcleo Independente], nos anoso 1970, que ele pesquisou [para Ademir de Almeida].

Ademir de Almeida

Fundador do Núcleo, é verdade, converso muito com ele. E dialogando aí com o camarada de Recife [Rodrigo Dourado], edital é isso. É o que tem para hoje, mas a gente não pode se contentar com isso. Porque além da competição isso gera uma mudança de estrutura interna dos grupos a partir do momento em que você começa a lidar com essa coisa do edital, tem uma burocratização interna que surge ali que você tem que lidar com ela. De repente você tem nos grupos departamentos de prestação de contas, sabe, você tem que terceirizar gente para você ter tempo de ficar na sala de ensaio, coisa que não acontecia antes, ou era resolvido de outra maneira. O que a gente precisa mesmo é de política universalizante, mas aí é fazer briga política e é povo na rua, se não a gente não arranca isso do Estado, não.

Para falar um pouquinho da coisa do teatro de grupo que o Valmir trouxe, acho que nas experiências que contei um pouco lá do colégio e do grupo do Maia, eu vejo ali uma coisa que é o seguinte. Lá no colégio a gente aprendia a fazer teatro, era aula de teatro, para entrar em cena. Com o Maia já tinha o gérmen do teatro de grupo, a gente aprendeu a fazer teatro de grupo, é diferente de só fazer teatro. Acho que o teatro de grupo traz essa perspectiva da organização interna, sabe. E aí são variadas formas, cada grupo acha o seu jeito, mas tem algumas coisas que são comuns, da divisão de funções, com uma ou outra diferença interna, de todo mundo às vezes dividir a grana igual, quando dá. Também isso não é uma regra, cada grupo vai achando o seu jeito.  

O Fomento tem uma outra pegada, né, diferente desses outros editais que a gente está falando aqui. É uma lei, tem problemas também, mas é isso que a Georgette falou. Possibilita a gente fazer de uma maneira mais livre, também com os problemas de burocratização. Mas é isso, é uma política que eu acho que é modelar (em relação ao resto, isso que quero dizer). Serviu de modelo também para o Fomento à Dança, que não é lei, mas aprendeu com o Fomento ao Teatro.

Serviu também como modelo para o Fomento [à Cultura] da Periferia, que já é outra coisa, e faz diferença na “perifa” essas coisas de edital, com todos os problemas tem feito, tem mudado ali os territórios. Não deixa de ser uma política de distribuição de renda também para a galera. Pensa isso na periferia, um moleque poder escolher trabalhar, sei lá, de atendente do McDonald’s e poder criar um núcleo de audiovisual na perifa, o Fomento [à Cultura] da perifa possibilita isso por exemplo. Eu não teria dúvida, ir lá e inscrever no edital, juntar notinha e criar um núcleo de audiovisual, muito mais legal, mais interessante.

Agora na cena do teatro de grupo acho que durante um tempo criou-se ali uma coisa, percepção minha, uma espécie de ideologia da pesquisa depois de a gente conseguir o Fomento, aí talvez venha disso um pouquinho da acomodação que o pessoal fala. A gente deixou acho que esmorecer a luta, a luta enfraqueceu um pouco, a gente deu uma dissipada, todo mundo se fechou um pouco nas suas pesquisas durante um tempo. A gente tinha lá na Brava conversas desse tipo, a gente dizia: “Pô, a gente não está mais conseguindo juntar as pessoas para o debate político, as nossas reuniões estão ficando esvaziadas”, e tal… 

Georgette Fadel

Basicamente a gente pode começar a fazer teatro, a gente pode entrar na sala de ensaio… E já “culpades” por não estar na assembleia…  [risos]

Ademir de Almeida

Exato. Então rolou isso durante um tempo, teve lá um debate, os grupos estéticos, os grupos políticos, se encontravam em dias diferentes. Rolou uma espécie de ideologia da pesquisa e deu uma dividida na gente nesse momento. Enfim, contradições, né. Mas estávamos trabalhando, é isso.

E agora tentando falar um pouquinho só do teatro da perifa, do teatro comunitário e tal, a atuação dos grupos na periferia se multiplicou a partir do Fomento e de iniciativas como o Projeto Teatro Vocacional, isso é inegável, a gente descentralizou o teatro, criou outros corredores culturais, diferentes, alternativos, coisa que não existia antes. Multiplicou um monte de sede de grupo de teatro na perifa, produção de material dos grupos, livros.

Georgette Fadel

Teve o Projeto Teatro Vocacional também…

Ademir de Almeida

Sim, o Vocacional foi superimportante, atuando de maneira pulverizada na cidade… Isso faz muita diferença na periferia. Então a atuação de um grupo de teatro ali, quando ela é consequente, acho que faz muita diferença, justamente por conta dessa pegada da organização. Acho que mais do que formar público – e tem muito isso [a expectativa] da política pública de formação de público, de levar o pessoal da periferia ao teatro ou o teatro à periferia –, quando tem uma atuação de um grupo de teatro na periferia acho que a gente não forma público…

Georgette Fadel

Forma artistas mesmo.

Ademir de Almeida

Forma fazedores, exatamente. Então é isso. O cara vai lá numa oficina nossa e não aprende só a fazer teatro, vai aprender a se organizar. Pelo menos lá na Brava a gente vai assim. Vamos se organizar, vamos criar núcleos e vamos lutar pelas coisas.

Eu acho que o teatro na periferia a partir do fomento criou uma cena ali nos bairros. Em torno dos espaços da Brava, geralmente a gente tinha uma atuação muito forte junto às escolas – acho que esse é um dado que se eu pudesse deixar uma colocação para nós aqui, que a gente tinha que estar mais perto das escolas públicas, que faz uma baita diferença. Durante o tempo em que a gente esteve lá no Sacolão das Artes – foram oito anos ocupando o espaço [desde 2007] –, nossa sede foi dentro do sacolão, no Parque Santo Antônio, a gente conseguiu criar um movimento muito interessante com as escolas. A molecada queria assistir às peças, primeiramente meio obrigada e a gente acionando professores bacanas que conhecia, os professores levavam, e de repente vocês viam eles [alunos] voltarem, não todos, mas alguns voltavam durante as temporadas. As crianças são as primeiras que chegam, né, com elas foi o nosso primeiro diálogo. Elas vinham assistir ensaios e depois vinham assistir as peças. A gente tentou censurar peça lá para criança, foi um fracasso. Eles queriam ver, tacavam pedra quando não deixava entrar. É outra realidade que você tem que saber lidar. Que nos ensina muito, inclusive.

Então se eu fosse defender uma ideia aqui, hoje, seria de que a gente tem que descentralizar cada vez mais. Isso faz diferença. E tentar fazer esse trabalho de politização que a Jade falou aí, que é necessário. Eu acho que os grupos na perifa fazem isso, mesmo quando não querem, acabam fazendo até sem saber. Acho que quando você ensina uma galera a se juntar para fazer algo juntos na prática, isso é política; política é participação.

Alexandre Dal Farra

Bem rápido. Eu só queria aqui concordar 100% com a Georgette. Eu acho que essa coisa dos editais a gente sempre tem essas questões assim – “Ah, o Fomento é um problema etc. Eu tenho um texto do Safatle, de há uns anos, que ele falava que o problema da educação não é que tem que melhorar, o método e tal, é que tem que ter mais grana. Então acabou. Para mim tem um certo nível, foda-se se o edital é de tal jeito, qual é o edital, não sei o quê. Tem que ter grana para as pessoas poderem produzir. E nesse sentido o Fomento é dinheiro, ponto. (…)

Georgette Fadel

Acho que a outra alternativa a isso é a revolução…

Alexandre Dal Farra

Exato…

Georgette Fadel

Aí a arte é outra coisa, aí a vida é outra coisa…

Luciano Mattos, artista educador

Só para acrescentar na fala do Ademir, e da Georgette também. Assim, a importância do Frateschi naquele momento da Lei de Fomento, na implantação dos CEUs em São Paulo na gestão da Marta Suplicy… O que está acontecendo com o projeto arquitetônico do CEU? Eu estou no CEU numa região periférica até hoje. Fui chamado na época para um cargo de confiança, o Frateschi era meu chefe, foi durante a criação dos primeiros 21 CEUs. Hoje são 53. E eu acho que é fundamental o que você disse, Ademir, estar nas escolas, porque vem ao encontro da sua fala, Georgette. A gente descobre, fazendo teatro, que transforma. Se o teatro não transformar, não está valendo porra nenhuma a gente fazer teatro. E a gente descobre fazendo esse teatro que transforma, que ele também é produto, na sua primeira forma, na sua primeira explanação. E para ele ser produto a gente precisa formar essa galera que está lá, está esquecida no território periférico.

Os grupos estão lá, os coletivos. Mas também estão se odiando, gente. Tem isso, entende? É como se perdesse um norte desse único som que a gente precisa viver, uníssono. Ah, a importância das assembleias, dos encontros, dos núcleos, dos diretores, atores, produtores – isso que a gente está fazendo aqui hoje, essa roda. Mas como fazer isso, realmente ver acontecer? De que forma que eu, que passei pela EAD, que fui para Coimbra, não sei o quê. Caguei para tudo isso, gente. Porque eu estou lá com todas as faixas etárias do teatro numa coisa assim que eu estou sem entender. Eu sei o que é o teatro, mas eu estou sem entender o que é essa gestão dentro dos CEUs. Porque o nosso governo do município abriu um edital para que se passasse a administração dos CEUs, então nós temos 12 CEUs na mão de um instituto. E o que é esse instituto, entende? Seu eu não tivesse feito parte desse processo – o Teatro Vocacional, um pouco de experiência de EAD, etc. – e conhecer todo esse movimento dos grupos, dos coletivos, o que eu estaria fazendo com essa galera lá na região de Jaraguá, [onde tem uma aldeia] tupi-guarani, entende? É medonho.

Então eu queria fortalecer essa fala. Como nós, enquanto artistas que somos, guerreiros acima de tudo desse universo teatral, podemos não viver em torno do próprio umbigo, mas eu preciso acrescentar na vida dessa galera que está aí. E uma galera que tem um teatro que não serve para porra nenhuma, gente. CEU Vila Atlântica [zona noroeste da cidade] é um dos primeiros dentro do padrão lá dos 21 CEUs, um teatro de 400 lugares, nada acontece naquele teatro.

Agora esses formatos do CEU, eu estou num CEU em que o teatro está localizado no terceiro andar. Você sabe o que é isso, subir um elevador, andar dois, três patamares de escada, cruzar o prédio para chegar ao teatro? Não tem elevador para subir cenário, gente! E o público não tem um direcionamento para chegar… Ele perde o início do espetáculo, um espetáculo que chega lá… Chega assim, ó: a secretaria avisa o CEU, o instituto que faz a gestão, um dia antes, no final da tarde, e o CEU, por sua vez, descobre que o espetáculo vai estar naquele dia, às 10h, mas a sessão é às 14h.

Otacilio Olacran Outro ângulo do público participante da Roda de Memória do Futuro que teve ao todo nove encontros entre março e maio de 2023, ora transcritos e editados neste site

Georgette Fadel

A São Jorge passou por isso, a gente chegou, ninguém sabia que a gente ia se apresentar naquele dia. Não tinha ninguém para abrir a porta do teatro, a gente fez do lado de fora.

Luciano Mattos

É muito importante que nós, artistas, possamos chegar na periferia de outras formas, descobrir outras formas de como atuar e formar esse artista no futuro, que possivelmente não chegue à universidade, não chegue às escolas de teatro, propriamente ditas.

Luiz Fernando Ramos

Olha, o tempo está já meio estourado, então eu já estou encaminhando aqui para o fim. Mas vou precisar falar algumas coisas, a começar a partir disso que você comentou [para Luciano], porque a gente está nessa ideia cumulativa, a discussão está fatiada, mas ela é cumulativa [as rodas].

Então no primeiro dia da Roda de Memória do Futuro, quando o tema era o Fomento, o financiamento, a produção e a distribuição, o Celso [Frateschi] veio e inclusive fez essa denúncia, digamos assim, de que somos todos responsáveis pelo abandono dos CEUs, foram entregues às baratas e ninguém fez nada para evitar isso, nenhum de nós.

Eu lembro quando o Fomento começou, que eu estava ali na primeira comissão e etc. e tal, que houve uma sinergia virtuosa que envolveu não só o Vocacional, que surgiu depois, mas tendo um Programa de Formação de Público [lançado na gestão de Marta Suplicy, 2001-2004], principalmente no seu último ano, em que os grupos fomentados foram convidados e contratados. Eles ganhavam além do Fomento para fazer um ciclo de apresentações nos CEUs, e isso era mediado por alunos da ECA que trabalhavam com teatro educação e que tinham técnicas de jogos, não exatamente para preparar, mas para disponibilizar a prontidão dos estudantes de escolas públicas a irem ver aqueles espetáculos.

Então, 300 mil alunos da rede municipal assistiram, naquele ano, cada uma dessas turmas, a três espetáculos que estavam fomentados. E com discussão posterior e tudo mais. Espetáculos inclusive alguns muito radicais, como o de João Miguel [ator, protagonista e diretor do solo Bispo], que era [inspirado na vida e obra] do Arthur Bispo do Rosário [1911-1989]. A maior emoção que tive de teatro na minha vida foi assistir a esse espetáculo num dos CEUs. As pessoas [do Formação de Público] nem tinham realizado o encontro com alunos e todo mundo assistiu e fez comentários. Eu achei de uma potência, de quando o teatro é bom…

Digo isso para apoiar o que você falou [para Luciano] e também para dizer que esses temas estão se trançando. Na semana passada estava aqui a Naruna, a Lucelia e a Dione falando exatamente a partir da questão da periferia, os exemplos incríveis, o Clariô lá em Taboão, e a própria Dione falando do Rio de Janeiro, da experiência dela, como carioca, enfim. Essas coisas estão se acumulando, mas eu queria particularmente dizer que fiquei muito feliz hoje porque acho que as três falas, que não são necessariamente convergentes, não era essa ideia, foram exatamente tensionantes, paralelas.

E dizer que eu, particularmente, nesse tema do teatro político, no auge do Programa de Fomento, da politização da classe teatral em função do Fomento (não sei se alguém aqui estava presente, talvez algum de vocês estivesse), mas houve um famoso debate no [Galpão do] Folias… Estava na mesa o [professor e pesquisador] Alexandre Matte [Unesp], um outro cara que foi do Arena [o dramaturgo e romancista Izaías Almada], um crítico também, cujo nome não lembro, e estava a torcida do Flamengo do teatro de esquerda e alguns alunos meus do CAC [Departamento de Artes Cênicas na ECA-USP] torcendo para que eu fosse levantar a bandeira não de um teatro formalista, mas simplesmente defender que uma das questões que o Fomento trouxe, quando ele trouxe a questão da pesquisa continuada, da exploração de linguagens, eu trazia também uma coisa que pouca gente falava: que era ir além da continuidade dos grupos existentes, como foi colocado aqui no primeiro dia, numa leitura mais, vamos dizer, conservadora, eu achava que tinha que ter um sistema que também ia expelindo os grupos mais antigos e os supernovos tinham que ter um jeito de entrar.

Em toda comissão que participava eu fazia questão de que pelo menos um grupo fosse supernovo, que estava acabando de se formar, porque ele também merecia [ser selecionado], não precisava ter cinco anos. O Sérgio de Carvalho [da Companhia do Latão e professor na USP] defendia que precisava ter cinco anos.

Tinha essa discussão dos supernovos, mas tinha também essa discussão de me contrapor a uma leitura que estava hegemônica – que era defendida pelo César Vieira [um dos fundadores do Teatro Popular União e Olho Vivo, o TUOV, um dos mais antigos grupos em atividade no Brasil], pelo Matte, por muitas pessoas que estavam ali – de que não, “o Fomento foi feito para desenvolver teatro de grupo na periferia” e, em resumo, “para fazer uma revolução”. Eu falava: “Não, caralho, não é só esse o objetivo do Fomento, também deve ser para que alguns grupos façam teatro, inventivo, inventem alguma coisa que ninguém pensou antes e cheguem num resultado maravilhoso”.

Então, assim, durante o debate hoje eu lembrei porque coloquei “dissidências e resistências” [no título da roda na noite]. Porque, de alguma maneira, estavam contempladas, culminando no ecumenismo crítico politizado que tivemos aqui. Abertamente a resistência está nesse lugar de “Ah, o teatro tem que resistir ao capitalismo, etc.” – e os que têm uma posição de teatro político dissidente no sentido de que o teatro sempre será político, que é possível pensar política fora desse registro mais ou menos esquemático e burro de pensar que a política vai ser só levantar o braço. Um teatro de pesquisa profunda, radical, que toque nas feridas mais sensíveis, ele vai ser político, necessariamente.

Georgette Fadel

A escuta é política, a sensibilidade é política, a abertura, a disponibilidade (…)

Luiz Fernando Ramos

A disponibilidade para a transformação, para a revolução, num sentido mais amplo. Está na hora de a gente pensar na revolução em outros termos, não daquele da Revolução Russa de 1917. Então é isso, eu queria agradecer muito a todos vocês. Estamos mantendo um quórum bem razoável nas três primeiras noites na roda. Muito obrigado a todos vocês que foram brilhantes, trouxeram exatamente as visões que eu imaginava que trariam e me surpreenderam também ao mesmo tempo.

E dizer que na próxima semana a gente vai ter um debate que se chama Formação de público, escola do espectador e roda dos espectadores, que vai tentar contemplar essas três modalidades de pensar a questão de formação de público ao longo dos últimos 20 anos. Então, Formação de Público é esse projeto original que o Flávio Desgranges [pesquisador e professor na Universidade Estado de Santa Catarina (Udesc)] eu convidei para vir, que o Flávio de Aguiar tinha me convidado e eu chamei o Desgranges para montar essa equipe que fez o programa, que no começo era do Gianni Ratto, era um programa renascentista, tinha um outro caráter, e o Flávio principalmente trouxe uma nova perspectiva fundamental; o Dagoberto Feliz, que traz a experiência do Folias d’Arte, de palhaço e tal; e a Andréia Caruso, que atualmente é diretora do Theatro Municipal de São Paulo e está enchendo aquele espaço com quatro mil pessoas toda vez, o que é um puta desafio também, né. Acho que vai ser um debate legal, estão todos convidados. É isso, vamos aplaudir os nossos convidados.

Georgette Fadel

Muito lindo esse movimento, parabéns.

.:. Leia como foram as mesas 1) Lei de Fomento & novas impossibilidades: financiamento, produção e distribuição, com Rudifran Pompeu, Aury Porto e José Fernando Peixoto de Azevedo; e 2) O cordão de ouro da periferia, com Dione Carlos, Lucelia Sergio e Naruna Costa.

.:. Saiba mais sobre a agenda do ciclo cujos nove encontros entre março e maio de 2023 estão sendo transcritos no site.

Pela equipe do site Teatrojornal - Leituras de Cena.

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