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Reportagem

Ary Fontoura, o comediante

20.6.2014  |  por Daniel Schenker

Foto de capa: Leo Aversa

Os 60 anos de carreira de Ary Fontoura justificariam uma grande comemoração. No entanto, a homenagem que a encenação de O comediante presta é ao ator e diretor José Wilker, que assinaria o espetáculo, mas morreu abruptamente, no início do último mês de abril, durante os ensaios. “Eu fiquei muito abalado. Tive dúvidas se deveríamos continuar”, afirma Ary. O projeto seguiu em frente sob o comando de Anderson Cunha, assistente de direção de Wilker, e estreia hoje no Rio de Janeiro, no Teatro Clara Nunes, mesmo espaço onde o ator interpretou o Bobo no espetáculo de Celso Nunes para Rei Lear, de William Shakespeare, realizado em 1983. O comediante está previsto para iniciar temporada no segundo semestre em São Paulo.

O vínculo entre Ary Fontoura e José Wilker não se resume a essa montagem do texto do dramaturgo brasileiro Joseph Meyer. Ambos se conheceram pouco depois de desembarcarem no Rio de Janeiro – Ary vindo de Curitiba e Wilker, do Recife. “Cheguei ao Rio em 31 de março de 1964”, conta Ary, que interrompeu a faculdade de direito no último ano para se dedicar ao ofício de ator. “Eu e Wilker trabalhamos algumas vezes ao longo do tempo”, destaca. Entre os espetáculos que partilharam, Ary cita a montagem de João das Neves para Jornada de um imbecil até o entendimento, peça de Plínio Marcos, a cargo do Grupo Opinião. “Wilker era revoltado com a situação do Brasil durante a época da ditadura. Sofríamos com a censura”, frisa.

Ary Fontoura também contracenou com José Wilker em Assim é se lhe parece, versão de Paulo Betti para a peça de Luigi Pirandello, encenada no Teatro dos Quatro. E foi dirigido por ele numa memorável montagem de Sábado, domingo e segunda, de Eduardo De Filippo, novamente no Teatro dos Quatro. Em relação a esse espetáculo, Ary evoca, em texto publicado no programa de O comediante, uma história que dimensiona o seu elo com Wilker com exatidão.

“Wilker achava que eu deveria fazer um monólogo, onde explicava à minha mulher sobre o ciúme que tinha, dando voltas em torno dela, e não estático como eu achava. Era incômoda para mim a forma sugerida por ele. Achava que a cena e a emoção se esvaziavam. Depois de tantas tentativas para me convencer, ele se levantou da plateia, exausto, e me disse: ‘Sabe de uma coisa, seu jegue empacado? Faça como você quiser. Eu desisto! Mas saiba que estas voltas todas têm um significado que a sua cabecinha não quer registrar. Ary, a vida não para! Os sentimentos fluem! Os amores vão e voltam! As uniões se aprimoram! É dando voltas que modificamos a vida, no seu mais amplo sentido!’ Fiz como ele queria…”.

Quando decidiu montar O comediante, Ary não hesitou: apresentou o texto a Wilker, que logo se interessou. Na peça de Joseph Meyer, Ary surge como Walter Delon, um ator afastado da carreira, resgatada por meio de uma biografia. Apesar do universo profissional ser bastante familiar a Ary, sua trajetória contrasta com a do personagem. Afinal, responsável por vários trabalhos marcantes no teatro e na televisão, Ary permanece como um dos atores mais requisitados atualmente. Contudo, há determinadas questões contidas em O comediante que o sensibilizam em especial. “O ser humano é solitário por natureza, mas me parece que nós atores somos um pouco mais. Mexer com emoções a todo instante tende a nos fragilizar. Dependendo das circunstâncias, você pode perder de vista a fronteira entre realidade e ficção. Onde termina a representação e começa a realidade?”, indaga o ator, que divide a cena com Angela Rebello, Gustavo Artiddorro e Carol Loback.

Por meio de O comediante, Ary retorna ao teatro, do qual estava distante há sete anos devido a uma sucessão de compromissos na televisão. Suas últimas aparições no palco foram em A diabólica Moll Flanders, adaptação de Charles Möeller para o original de Daniel Defoe, e Marido de mulher feia tem raiva de feriado, texto que escreveu em parceria com Paulo Afonso de Lima. No decorrer dos anos, Ary transitou entre um repertório formado por textos clássicos – ou dotados de certa representatividade – e comercias. De um lado participou de encenações de peças de William Shakespeare (Rei Lear), Luigi Pirandello (Assim é se lhe parece), Oduvaldo Vianna Filho (Rasga coração) e Chico Buarque (Ópera do malandro); do outro integrou montagens de diversas comédias ligeiras. “Eu não nasci em berço esplêndido. Então, não pude escolher tanto. Precisei viver da profissão”, assume.

Seja como for, a relevância da carreira de Ary Fontoura rendeu um mais que justo tributo na última edição do Prêmio APTR (Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro). Vale lembrar que Ary marcou presença, ainda que com menos frequência, no cinema. “Eu perdi oportunidades no cinema. Faria o papel de Mauro Mendonça em Dona flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto, mas estava em cartaz no teatro com A mulher de todos nós, de Henri Becque, com Fernanda Montenegro, que era um sucesso. Resolvi ficar”, explica, mencionando a encenação de Fernando Torres.

Sua importância é realçada por colegas, como Cristina Pereira, que contracenou com o ator nas montagens de Assim é se lhe parece, Sábado, domingo e segunda e Corações desesperados (esta, de Jorge Fernando para peça de Flavio de Souza) e no filme Mar de rosas, de Ana Carolina. “Eu aprendi a não ter medo do público graças a ele. Ary é extreamente afetuoso e, ao mesmo tempo, prático. Quando tenho dúvidas ou angústias acerca da profissão, sinto vontade de ligar para ele”, confessa Cristina. Paulo Betti, que o dirigiu em Assim é se lhe parece, exalta sua singularidade. “Ary é um ator com senso de humor arguto, surpreendente, irônico. Sempre tem um ponto de vista que não esbarra no lugar-comum”, elogia.

Serviço:
Onde: Teatro Clara Nunes (Rua Marquês de São Vicente, 52, Rio, tel. 21 2274-9696).
Quando: Quinta a sábado, às 21h30; domingo, às 20h. Até 28/9.
Quanto: R$ 80 e R$ 90.

Ficha técnica:
Direção: José Wilker e Anderson Cunha
Texto: Joseph Meyer
Com: Ary Fontoura, Angela Rebello, Carol Loback e Gustavo Artiddorro
Iluminação: Maneco Quinderé
Figurinos: Marilia Carneiro
Cenário: José Dias
Trilha Sonora: Marcelo Alonso Neves
Direção de Movimento: Marcia Rubin

.:. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, em 08/06/2014

Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.

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