Crítica
26.3.2015 | por Afonso Nilson
Foto de capa: Diogo Andrade
Em segurança, mas com acesso restrito ao público, as obras do artista e pesquisador Franklin Cascaes (1908-1983) descansam em museus e institutos que mantêm a guarda do acervo. Quanto à memória deste que foi o maior pesquisador da cultura açoriana em Santa Catarina, seu nome permanece limitado a especialistas, historiadores e talvez a curiosos que se perguntem quem foi o homem que dá nome à fundação de cultura de Florianópolis. Nesse contexto, é louvável a iniciativa da Cia. Aérea de Teatro que, com recursos do prêmio Elisabete Anderle 2013, conseguiu abordar em um espetáculo teatral a extensa obra de Cascaes de maneira abrangente e concisa.
A peça Cascaes – Memórias do homem de argila crua, com direção de Andrea Ojeda, se configura como uma espécie de biografia teatral, ou mesmo uma alegoria biográfica. Apesar do aparente didatismo inicial, a montagem transfigura o que poderia ser uma maçante aula sobre o personagem em uma profunda imersão no universo mítico e etnográfico de Cascaes. Mais do que isso, traça sub-repticiamente uma reflexão sobre a ocupação desordenada e a especulação imobiliária que dilapida ao longo dos anos o patrimônio arquitetônico e cultural da região, enfraquecendo as conexões identitárias dos moradores de Florianópolis.
O jogo narrativo que se dá por saltos, a oscilação entre dados biográficos, depoimentos de comentadores e pesquisadores e os próprios textos de Cascaes estabelecem um panorama não apenas histórico, mas reflexivo sobre a importância e a raridade do trabalho do artista. A forma como as reproduções das esculturas e desenhos se desvelam à plateia (uma referência ao modo como os originais são armazenados e não diretamente expostos ao público nos museus) provoca expectativa pela maneira e pelo o que virá na sequência. Tudo funciona eficientemente para manutenção da atenção em um espetáculo no qual o dramático e o cômico parecem surgir de camadas internas, ocultados pelo teor epicizante da encenação.
Há que se destacar o exímio trabalho de Valdo Correa nas reproduções das esculturas de argila. Facilmente suas obras poderiam ser expostas em projetos complementares. A precisa direção de Ojeda soube manipular muito bem esses elementos, justificando seu uso em momentos-chave para o desenrolar de uma tessitura que não se atém apenas ao resumo biográfico de Cascaes, mas potencializa a força mitológica evocada pelo imaginário do artista através dos elementos cenográficos e adereços de cena.
Os atores são capazes de uma elocução atrativa e dinâmica. Margô Ferreira, Egon Seidler e Luiza Lorenz conseguem com o apurado jogo entre si dar vida e potência dramática ao que facilmente, com atores descuidados, descambaria para uma maçante sessão de historiografia. Não é o que acontece, já que a força interpretativa do conjunto sustenta as opções por um texto que prescinde de conflito em prol de uma narrativa que abarca não apenas os fatos da vida de um homem importante, mas o poder que a mitologia levantada por ele ainda exerce sobre uma população que mesmo não sabendo quem foi Cascaes, esbarra no panteão simbólico que ele trouxe à superfície.
Serviço:
Espetáculo em turnê por Santa Catarina pelo projeto EmCenaCatarina.
Datas e locais, aqui.
Ficha técnica:
Atuação: Egon Seidler, Luiza Lorenz e Margô Ferreira.
Assistência de direção: Julieta Fassone
Direção e dramaturgia: Andrea Ojeda e Julieta Fassone
Figurino: Julieta Fassone
Concepção de luz: Ojeda-Fassone
Música: Villa-Lobos – Dario Barozzi
Edição musical: Hugo de Bernardi
Recriação de esculturas: Valdo Correa
Cabeleira Bruxólica: Clara Fernandes
Máscara: Jandira Lorenz
Piso cenográfico: Mariela Gentile
Identidade visual: Alessandro Silveira e Luiza Lorenz
Designer gráfico: Alessandro Silveira
Fotografia: Diogo Andrade
Assessoria de imprensa: Letícia Kapper
Crédito fotos da obra de Cascaes: Acervo do Museu de Antropologia e Etnologia | Professor Oswaldo Rodrigues Cabral – UFSC
Espaço de prova: Es Astrolábio Teatro, Buenos Aires
Produção artística e executiva: Cia. Aérea de Teatro
Colaboração geral: Periplo, Compañia Teatral
Gestor de cultura em Santa Catarina, crítico e dramaturgo. Escreve ocasionalmente para os jornais Notícias do Dia e Diário Catarinense. Participa regularmente de curadorias para mostras e festivais nacionais de artes cênicas. Publicou em 2014 o livro Pequenos monólogos para mulheres (Chiado Editora/Portugal), coletânea de textos teatrais curtos. Doutorando em teatro pela Udesc com pesquisa sobre crítica teatral brasileira.