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Crítica

Palita, uma palhaça de boa cepa

14.11.2015  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Hamilton Junior

Em São Luís

Vem de milenar linhagem cômica a personagem central da peça Palita no trapézio que abriu na manhã de terça-feira a programação infantil da X Semana de Teatro no Maranhão. Palita, palhaça criada por Michelle Cabral, que também assina texto e direção, é parente do João Grilo, do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna e do boneco Benedito, das histórias de Mamulengo, uma família artística de gente de barriga vazia e cabeça cheia de artimanhas. Gente que pode pouco contra o poder, mas não hesita diante da oportunidade de avançar por territórios proibidos, ainda que depois tenha de pagar a façanha no próprio lombo debaixo de pauladas.

Professora do departamento de Artes da Universidade Federal do Maranhão e pesquisadora da linguagem circense, Michelle se filia a essa longa tradição na condição de quem conhece a linguagem escolhida e busca dela se apropriar a partir do próprio corpo. Criado em 2010, o espetáculo Palita no trapézio, que integra o repertório da Cia. Teatro Mira Mundo, vem sendo maturado em muitas jornadas, já tendo circulado por nove estados brasileiros, informação obtida no site do grupo.

Michelle constrói sua trama cênica numa zona limiar entre duas vertentes de humor: ora puxa os fios da tradição cômica ora costura com as linhas do palhaço triste

O primeiro movimento da peça merece destaque pelo modo como capta a atenção do público infantil sem apelar para batidos procedimentos de abertura, em geral investidos de muito ruído e cor, como se a capacidade de atenção das crianças também fosse de baixa estatura. Michelle faz uso da matéria-prima da ansiedade e da expectativa naturais em quem aguarda numa sala teatral para moldar uma situação cujo objetivo é atiçar curiosidade e estimular a imaginação.

Assim, antes mesmo da abertura das cortinas, o público escuta uma voz em off sem conseguir localizar sua origem. Logo percebe tratar-se de alguém que entrou por uma porta errada e está explorando os bastidores do teatro. Na apresentação acompanhada pela crítica as primeiras filas do Teatro Artur Azevedo – construído em 1815 é um daqueles espaços municipais de arquitetura grandiosa, frisas e camarotes, um edifício teatral por si só capaz de encantar o olhar – estava um grupo de crianças uniformizadas que havia entrado em formação, mãos nos ombros do colega da frente, e ocupara as primeiras fileiras sob rígida disciplina. Assumindo o seu lugar na arte, a voz da palhaça ousa o proibido e profana o templo onde só se entra pagando, cada um tem o seu lugar, que não pode ser trocado, como avisa o anúncio oficial disparado antes do início da sessão.

Pouco depois a dona da voz surgirá em carne e osso no palco aos tropeções, perseguida por um técnico, que logo a expulsará também do tablado, provocando as primeiras sonoras e gostosas gargalhadas na criançada. Como aqueles meninos e meninas, ela recebe ordens de ficar quieta e em seu lugar. Mas é justamente do seu lugar (de classe) que o palhaço sempre tentará sair com a coragem que muitos de nós mortais já perdemos. Por isso torcemos por ele, mas também rimos de alívio quando a surra vem (só) para ele. Apoiada no conhecimento de tal ambiguidade, característica do humor popular, Michelle cria as melhores cenas de Palita no trapézio.

Michelle e Torres, da Mira MundoHamilton Junior

Michelle e Torres, da Mira Mundo

Sentada à força na plateia, a palhaça fala pelos cotovelos e assim a autora/atuadora desenha com poucos traços, e em síntese cômico-poética, a figura da garota sem dinheiro, mas não sem voz – com língua ferina ela credita ao fato da programação ser gratuita o atraso para início da sessão –, que mesmo sem perspectiva não desiste de alimentar o sonho de ser trapezista. Este último elemento, o sonho projetado no futuro, será trabalhado em chave lírica mais adiante no espetáculo, alterando o desenho da figura.

Tal inflexão se dá porque Michelle constrói sua trama cênica numa zona limiar entre duas vertentes de humor: ora puxa os fios da tradição cômica cujos personagens e seus ardis têm como único objetivo encher o estômago, sempre com consequências desastrosas, ora costura com as linhas do palhaço triste que, incapaz de agir sobre a realidade injusta, recria no isolamento um mundo particular e sonhado.

A primeira vertente dá a ela a possibilidade de subir ao palco quando o mestre de cerimônias (Ricardo Torres) anuncia que não haverá espetáculo porque o trapezista não veio. Sem perder a chance de abusar do poder adquirido junto com o ingresso ela protesta com tanta veemência que acaba contratada, não sem antes inventar uma mentira e conquistar a cumplicidade do espectador para acobertá-la. E quando tudo dá errado, em vez dos tradicionais cascudos ou chutes no traseiro, Michelle opta por um deslocamento poético e instaura uma atmosfera lúdica de outra ordem na cena em que Palita, solitária, brinca com sua boneca de pano numa miniatura de trapézio.

Se a hibridização enriquece, o riso só brota porque para além do domínio técnico ao manipular os materiais escolhidos, Michelle possui a verve adequada ao humor exigido do palhaço, uma certa qualidade de presença muito particular e difícil de ser explicada, sem a qual o elo estabelecido pela triangulação se esgarça e a atenção se dispersa. Não por acaso será num clássico número circense, quando é preciso alto grau de rigor técnico para parecer não existir nenhum, que a atuação atinge seu ponto máximo. Assumindo as posições mais esdrúxulas e urrando de medo pendurada no trapézio ela faz adultos e crianças gargalharem. O rótulo infantil talvez seja redutor para Palita no trapézio.

Se há um reparo que se pode fazer, como contribuição ao processo de criação que, sabe-se, nunca termina, esse vem do tempo dedicado ao número do trapézio, interrompido antes que tenha se esgotado como acontecimento cênico. O número “bem-feito”, no espaço do sonho, acaba sendo mais valorizado dentro da estrutura do espetáculo do que a da execução torta. Por outro lado, é visível o rigor na criação do movimento desajeitado e talvez por isso, para não correr o risco de mostrar de modo precário aquilo que só tem de parecer improvisado, Michelle não o tenha expandido. Talvez a exigência crítica da porção professora/pesquisadora ainda controle a artista e seu despudor para se lançar no risco que é a matéria mesma com a qual trabalha: o ridículo do fracasso. Talvez seja só a falta de um olhar de fora que ajude a costurar algumas poucas pontas ainda soltas.

.:. Escrito no contexto da X Semana de Teatro no Maranhão, em São Luís (9 a 15/11). A jornalista viajou a convite da organização.

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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