Crítica Militante
Resultado da adaptação do conto homônimo do escritor francês Emmanuel Carrère, O bigode – montagem que ganhou segunda temporada agora, no Teatro Maison de France, depois do período em que permaneceu no Teatro Glauce Rocha, ambos localizados no Centro do Rio de Janeiro – contrasta o procedimento da narração, que sugere pleno domínio da história relatada, com o tema da quebra das certezas, imperante no percurso do protagonista dessa obra, transportada para o cinema pelo autor em 2005.
Um homem afirma ter raspado o bigode e se surpreende quando os mais próximos não notam qualquer mudança em seu rosto. Segundo a esposa e os amigos, ele nunca usou bigode. O protagonista começa a desconfiar de que todos estão envolvidos num plano. A princípio, acha que a intenção é despretensiosa; depois, cogita a formulação de uma estratégia diabólica para enlouquecê-lo. À medida que o tempo avança, ele passa a questionar as próprias certezas. O bigode é apenas o primeiro sinal de um desencontro com o mundo. Diferentemente da esposa, ele garante estar com bigode nas fotografias. Fala sobre uma viagem a Java que, de acordo com ela, nunca ocorreu. Menciona os pais, enquanto a mulher frisa que o pai dele morreu.
O narrador não surge como uma figura impassível, mas como alguém tomado por crescente desestabilização. Essa alteração faz com que sua presença se torne menos atrelada ao passado e mais afetada pela instantaneidade do momento
Talvez o personagem tenha criado um mundo de ilusão, onde passou a habitar. Mas como saber ao certo? Emmanuel Carrère deixa a impressão de que a verdade é relativa, mesmo quando se está diante dos fatos mais objetivos. Não por acaso, o personagem principal, encarregado da narração em vários instantes, desconstrói as suas certezas e se mostra cada vez mais vulnerável diante do espectador. Dotado de olhar panorâmico, o narrador tende a gerar no leitor/espectador uma sensação de conhecimento total sobre a história que apresenta. Aqui, porém, não surge como uma figura impassível, mas como alguém tomado por crescente desestabilização. Essa alteração faz com que sua presença se torne menos atrelada ao passado, à mera transmissão de um conteúdo dominado, e mais afetada pela instantaneidade do momento.
O tensionamento de uma noção de verdade única, contida em O bigode, lembra, em algum grau, Assim é (se lhe parece), peça de Luigi Pirandello (1867-1936), escrita em 1917, que problematiza a ideia de verdade absoluta a partir da oposição entre os depoimentos da Sra. Frola e do Sr. Ponza acerca da, respectivamente, filha e esposa, a Sra. Ponza. Enquanto a primeira declara não ter mais contato com a filha devido ao ciúme doentio de Ponza, ele garante que a Sra. Frola projeta na sua segunda esposa a própria filha, que foi sua primeira mulher, mas morreu. As duas versões são apresentadas aos habitantes de uma província – o coro de vizinhos –, reunidos na casa do Conselheiro Agazzi. Por meio de Lamberto Laudisi, personagem inserido como voz do autor, Pirandello chama atenção para o fato de que a verdade não é um conceito inflexível, mas variável conforme a perspectiva de cada um. Entretanto, se na peça do dramaturgo italiano as versões referentes a uma personagem que nunca aparece, a Sra. Ponza, soam críveis, em O bigode a dúvida recai sobre dados em relação aos quais não deveria haver hesitação: usar ou não bigode, viajar ou não para Java, a existência ou não de um amigo, o pai estar vivo ou morto.
Mas como a realidade pura é inacessível, Emmanuel Carrère aponta para a possível criação de instâncias imaginárias, a ficcionalização do real, algo que concerne a todos os indivíduos e não só àqueles que vivem isolados em universos herméticos. Ao longo do texto, o protagonista de O bigode vai perdendo os pontos de referência. É como se ficasse sem lugar no mundo. Carrère aborda a crise de identidade do personagem, cada vez mais aguda, a julgar pela simbólica imagem da foto distorcida ou apagada na carteira de identidade e pelo rosto coberto de argila ao final – primeiro marcando o espaço da barba, depois o rosto e o cabelo, como uma máscara sem forma, destituída de qualquer individualização.
A ausência é realçada na montagem dirigida por Eduardo Vaccari, repleta de elementos sugeridos, porém invisíveis (cama, carro, televisão, porta). Obviamente, o bigode não aparece. Logo no início da sessão, o ator (Vicente Coelho), de costas para a plateia, faz o movimento de raspá-lo e já se revela de rosto limpo. O espectador não tem como comprovar a existência anterior do bigode e, consequentemente, como apoiar a defesa do personagem. O isolamento e a incomunicabilidade dele são reforçados pelas marcações, a exemplo das cenas em que os personagens conversam ou discutem sem estabelecer ligação visual, olhando o público ao invés de um ao outro.
Quanto mais o protagonista se torna assombrado pela solidão, mais o palco é desnudado. Os componentes do cenário de Carla Ferraz – a estante com espaços compartimentados, a cadeira de ferro, a vitrola – são retirados e a cena fica quase vazia, emoldurada pelo painel de fundo que pode ser interpretado como o funcionamento mental do protagonista por meio da imagem de teia ou de mapa, potencializada por luzes que remetem a choques elétricos. Quando o personagem subitamente sai de Paris em direção a Hong Kong e de lá segue numa embarcação, o palco, praticamente vazio, recebe um aquário com água azul e uma miniatura de navio, objeto simbólico como outros que atravessam o espetáculo (a exemplo do pequeno recorte de ambiente do hotel, sintetizado pela mesa do recepcionista).
À deriva, indefinido entre a necessidade de se esconder no completo anonimato e o desejo de retomar a vida ao lado da esposa, o personagem se desapega das balizas do cotidiano e viaja sem rumo. A presença de névoa em cena – combinada à iluminação de Vitor Emanuel, de tonalidade mais melancólica nas passagens ambientadas dentro de casa e mais solar nas passadas no escritório – transmite sensação de irrealidade. Se na primeira parte do espetáculo há determinadas referências (como ao filme A cor púrpura, de Steven Spielberg, melodrama de 1985 adaptado do romance de Alice Walker, exibido pouco antes da publicação da novela O bigode, de 1986) e menções ao antigo (o som de um filme na televisão), no decorrer as citações diminuem. O movimento é fiel à jornada de um personagem que perde o porto seguro.
A temática da solidão, da falta de interação, despontou, ainda que de modo distinto, no primeiro trabalho do Coletivo Lupa, formado por Dulce Penna, Eduardo Vaccari, João Lucas Romero, Ricardo Leite Lopes e Vicente Coelho. Em 201, o público acompanhava as trajetórias de homens que moraram num mesmo apartamento em épocas diferentes. Ambos, porém, pareciam atados por uma espécie de fio invisível, possibilidade que remetia ao filme A dupla vida de Véronique (1991), do cineasta polonês Krzystof Kieslowski (1941-1996). Havia nessa encenação, desdobramento do projeto de conclusão do curso de direção teatral da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma proposta espacial diversa, que procurava materializar o espelhamento entre personagens que nunca se encontravam através de uma disposição que também espelhava o público ao separá-lo em duas partes e colocar uma metade diante da outra com a cena (a reconstituição do ambiente do apartamento) no meio.
Se no trabalho anterior João Lucas Romero, Ricardo Leite Lopes e Vicente Coelho dividiram a cena, agora surgem no palco Romero, Coelho e Dulce Penna, com Lopes assinando a adaptação do conto. Os atores demonstram integração que pequenos desníveis não chegam a comprometer. Vicente Coelho constrói melhor a crescente perplexidade do que a fragilidade do personagem. João Lucas Romero compõe com desenvoltura diferentes tipos, manejando com eficiência um tom, às vezes, caricatural. Dulce Penna evidencia contracena afinada com os atores, apesar de sua atuação resultar menos nuançada que as de seus parceiros.
Ainda que se atenha a convenções eventuais (como a marcação constante da narração de frente para o público), a montagem reserva algumas surpresas ao espectador. É o caso da estranheza que norteia a partitura sonora (trilha a cargo de Arthur Ferreira), que ora acompanha, sem reiterar, a evolução da agonia do protagonista, ora contrasta com suavidade (na mencionada cena do aquário). O bigode é um espetáculo que conserva saudável inquietação, própria a trabalhos pautados pela continuidade de pesquisa.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
Serviço:
Onde: Teatro Maison de France (Avenida Presidente Antonio Carlos, 58, Centro, Rio de Janeiro, tel. 21 2544-2533)
Quando: sexta e sábado, às 20h; domingo, às 18h. Até 19/6
Duração: 80 minutos
Quanto: R$ 40 (sexta), R$ 50 (sábado e domingo)
Classificação: 16 anos
Ficha técnica:
Autoria: Emmanuel Carrère
Adaptação: Ricardo Leite Lopes
Direção: Eduardo Vaccari
Com: Dulce Penna, João Lucas Romero e Vicente Coelho
Cenografia e Figurinos: Carla Ferraz
Iluminação: Vitor Emanuel
Trilha Sonora Original: Arthur Ferreira
Direção e Execução de Produção: Paula Valente e Rubi Schumacher – Curiosa Cultural
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Realização: Lupa e Alessandra Reis27 Produções Artísticas
Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.