Crítica Militante
31.5.2016 | por Gabriela Mellão
Foto de capa: Pascal Victor/ArtComArt
Em Paris
E a deusa Afrodite desce dos saltos da imortalidade à procura de amor. Busca um amor de natureza bastante particular. O que a move é a atração pelo desprezível, pela sujeira, pela indiferença. Em Phèdre(s), mais recente incursão teatral do encenador polonês Krzyszstof Warlikowski, a deusa opta por encarnar-se mulher, (des)humanizando-se na pele de Fedra.
Ainda que a imoralidade seja uma das inúmeras discussões suscitadas em cena, uma vez que a pulsão de Fedra por Hipólito é de caráter incestuoso, a grande questão levantada pelo espetáculo recai sobre a natureza do desejo do homem contemporâneo. O que detém o poder de saciar o vazio da humanidade hoje?
Na busca por uma (ou muitas) respostas, Warlikowski universaliza sua Fedra, mostrando diferentes visões do mito apresentado por Eurípedes e Sêneca, e revisto por Racine.
Assim como no filme ‘Asas do desejo’ de Wim Wenders, o espetáculo ‘Phèdre(s)’, de Krzyszstof Warlikowski, reafirma o desejo dos deuses de sentir a dor e as delícias do mundo terreno
A obra protagonizada por Isabelle Huppert é composta por três textos de dramaturgos contemporâneos e dividida em cinco partes: Beleza, Crueldade, Inocência, Pureza e Realidade. A primeira visão de Fedra é traçada por Cão, texto que oscila ação e narração, primeira ou terceira pessoa, escrito sob encomenda para a montagem pelo premiado autor libanês de nacionalidade franco-canadense Wajdi Mouawad. O artista é conhecido no Brasil pela dramaturgia Incêndios, apresentada em duas montagens no país – uma delas nacional, liderada por Aderbal Freire-Filho. Mouawad esteve no Brasil em 2015 com o monólogo Solo, no qual também atuava e dirigia.
Em sua versão de Fedra, a qualidade animalesca, instintiva, do amor da personagem-título é enfatizada e expressa de forma literal. Hipólito surge de quatro, coberto de pelos, sempre à espera de tapinhas afetuosos de sua Fedra.
O segundo olhar apresentado em cena, de Sarah Kane (O amor de Fedra), é bastante cru e familiar aos espectadores da contemporaneidade. A autora inglesa que se suicidou aos 28 anos insere sua Fedra no cotidiano de uma família atormentada por abismos existenciais. Cada membro do clã tenta, tortuosamente e em vão, preencher seus buracos. Fedra, por exemplo, se humilha ao chupar o sexo de um Hipólito enfadado e fútil, numa tentativa desesperada de amar e ser amada.
A discussão sobre os descompassos do amor e do desejo retratada em cena é ampliada por mais um tratamento textual. Foi extraída da palestra Eros, ministrada por Elizabeth Costello, alter-ego do escritor sul-africano J.M. Coetzee, no livro que leva seu nome.
Em todas essas facetas de Fedra apresentadas em Phèdre(s), a personagem-título move-se pelo prazer da autodestruição. Aproxima-se cada vez mais do precipício até confundir-se com ele por completo.
Phèdre(s), que esteve em cartaz até meados de maio no Théâtre de l’Odéon, foi o espetáculo mais aguardado da temporada 2015-2106 de Paris, ao lado de A gaivota, primeira incursão do alemão Thomas Ostermeier na obra de Tchekhov.
Warlikowski alcançou renome internacional com Purificados, de Sarah Kane, selecionado para o Festival de Avignon de 2002. Desde então é presença garantida (e aguardada) nos principais eventos teatrais mundiais. Em 2005, ele criou especialmente para Avignon Krum, texto encenado no Brasil recentemente pela companhia brasileira de teatro, de Curitiba. Em 2010, fez uma versão de Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams, sua primeira parceria com o autor Wajdi Mouawad e Isabelle Huppert.
Seu prestígio não esteve à altura de sua estreia brasileira na última MITsp: (A)polônia, obra de 2008 que abriu o Festival de Avignon em 2010. Nele, também buscou inserir personagens mitológicos na experiência dos séculos XX e XXI, mas perdeu-se no excesso do uso de recursos multimídias e dos temas abordados (culpa, perdão, vingança, mitos, família, destino, amor, morte, sacrifício, covardia, medo e guerra), a partir de fragmentos de Alceste, de Eurípides, Oresteia, de Ésquilo, Apolonia, de Hanna Krall, entre outros.
Em Phèdre(s) o encenador faz justiça ao reconhecimento que possui.
As digitais artísticas de Warlikowski recaem, sobretudo, na relação entre teatro e cinema. Diferentemente de (A)polônia, nesta obra as projeções visuais trabalham a serviço do palco. Não sabotam sua força. Ao contrário, surgem com economia, em momentos pontuais, exaltando a dramaticidade de cenas específicas. Interferem na trama ao exibirem ações que acontecem dentro ou fora do palco, algumas vezes contradizendo a narrativa do texto. Também cumprem a função de ampliar interiorizações, repetindo a função cinematográfica do “close”. Ou ainda, são usadas com o intuito de agigantar o trágico.
Com um olhar atento, é possível enxergar um mundo inteiro em Phèdre(s). Há intensidade e complexidade em imoderação, além de emoções das mais diversas naturezas. Ao mesmo tempo em que Warlikowski apresenta uma visão de mundo particular, o espetáculo é um verdadeiro tratado sobre a sociedade da atualidade, abordada a partir de diferentes pontos de vistas. A sensação é a de estar diante de um quadro da fase cubista de Picasso, aprofundando a leitura à medida que se dá a percepção de cada ângulo justaposto.
O espaço é dessacralizado por um palco quase nu, que sugere um banheiro público. A parede do fundo, revestida por um papel que imita azulejos, é coroada ao centro por um chuveiro. Na lateral direita há uma pequena pia e espelhos que ampliam a cena. A esquerda é móvel, abrindo espaço para um cubo/cômodo que entra e sai de cena.
Principal atriz francesa em atividade, Huppert é onipresente nas telas e nos palcos de seu país – também pode ser encontrada em outra bela atuação, nos principais cinemas de Paris, em O futuro/L’avenir, filme de Mia Hansen Love.
Em Phèdre(s), surge como Afrodite esbanjando beleza e vigor aos 63 anos de idade, com peruca loira até a cintura e mantô preto que cai ao chão para deixar à mostra o corpo coberto sem discrição por um collant transparente.
Do reino dos céus, cai direto num banheiro público. E de deusa metamorfoseia-se em mulher-mendiga que rasteja por migalhas de afeto. O que ama? Ama o “difícil, temperamental, cínico, amargo, gordo, decadente, mimado”. Usa essas palavras para justificar os sentimentos por um Hipólito que passa a vida diante da televisão, feito um adolescente entediado, a distrair-se brincando com um carro de controle-remoto ou em masturbações desprovidas de prazer, feitas com a ajuda de meias sujas, também usadas como lenço para assoar nariz.
Diante dos olhos do espectador, Huppert visita o inferno de si e o da humanidade com descomedimento de energia em mais de três horas de espetáculo, numa interpretação ontológica e mais visceral do que de costume.
Se a situação no céu soa problemática, dado o interesse dos deuses pelos mortais, a dos Homens parece estar ainda pior.
A atração entre deuses e homens é alimenta para as artes desde a Grécia Antiga. Estudo dos comportamentos dos imortais, a mitologia é pilar fundador daquela sociedade e influencia a cultura ocidental.
Assim como no filme Asas do desejo, clássico de 1988 de Wim Wenders, Phèdre(s) reafirma o desejo dos deuses de sentir a dor e as delícias do mundo terreno. Afrodite troca sua soberania divina para, como Fedra, descobrir os grandes enigmas dos mortais: amor e morte.
Por paixão e desejo, sua Fedra sangra, implora, chora, se desespera. Quando o sofrimento se sobrepõe ao amor e à esperança, resta-lhe apenas o suicídio.
A pluralidade de Fedras (representação da humanidade) e Deus é explicitada literalmente na terceira passagem dramatúrgica do espetáculo, em que Huppert surge como a palestrante Elizabeth Costello.
Em um discurso irônico e sarcástico, Huppert sublinha a superioridade dos homens. Segundo diz, eles estão em vantagem em relação aos deuses por viverem em maior urgência e intensidade, já que são obrigados a lidar com a certeza da morte.
De analista transforma-se em seu próprio objeto de estudo. Em uma das muitas metamorfoses vividas pela atriz sob o palco, como sempre privadas de ilusionismos, Huppert larga o microfone e levanta-se de sua cadeira de palestrante para emprestar-se a mais uma faceta de Fedra. Troca seu discurso por alguns versos do segundo ato da obra homônima de Racine: “… Se achas meu coração indigno de teus golpes, se teu ódio me nega um suplício tão doce, se não queres manchar tuas mãos com um sangue tão vil, poupa teu braço e me dá a tua espada”, suplica ao jornalista/Hipólito, desnudando suas fragilidades.
O destino é implacável até mesmo para Costello. De divindade do saber, torna-se o mais frágil dos mortais. Warlikowski não poupa deuses ou homens. E faz questão de deixar em aberto sua grande questão. Mas, afinal, o que detém o poder de saciar o vazio da humanidade hoje?
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
Ficha técnica:
Phèdre(s)
Autoria: Wajdi Mouawad, Sarah Kane e J.M. Coetzee
Dramaturgia: Piotr Gruszczyński
Direção: Krzysztof Warlikowski
Com: Isabelle Huppert, Agata Buzek, Andrzej Chyra, Alex Descas, Gaël Kamilindi, Norah Krief, Grégoire Léauté e Rosalba Torres Guerrero.
Cenografia e figurinos: Małgorzata Szczęśniak
Música original: Paweł Mykietyn
Desenho de luz: Felice Ross
Vídeo: Denis Guéguin
Coreografia: Claude Bardouil, Rosalba Torres Guerrero
Maquiagem e visagismo: Sylvie Cailler, Jocelyne Milazzo, Thierry Jousse
Música interpretada em cena: Bruno Helstroffer
Assistente de direção: Christophe Sermet
Produção: Odéon-Théâtre de l’Europe
Coprodução: Comédie de Clermont-Ferrand – Scène Nationale, Les Théâtres de la Ville de Luxembourg, Théâtre de Liège, Barbican – London & LIFT, Onassis Cultural Centre – Athens
Apoio: Instituto Polonês de Paris
Autora, diretora e jornalista teatral. Pós-graduada em Jornalismo Cultural na PUC-SP, estudou Cultura e Civilização Francesa na Sorbonne, em Paris, e Dramaturgia e História do Teatro Moderno em Harvard, Boston. Escreve para Folha de S.Paulo e revista Vogue. Compõe o júri do prêmio APCA de teatro. É autora e diretora de Nijinsky - Minha loucura é o amor da humanidade (2014), peça convidada a integrar o Festival de Avignon de 2015. Tem cinco peças encenadas, Ilhada em mim – Sylvia Plath (indicada ao prêmio de melhor direção pela APCA de 2014); Espasmo (2013); Correnteza (2012); Parasita (2009), A história dela (2008), além de um livro publicado com suas obras teatrais: Gabriela Mellão – Coleção primeiras obras. Lecionou Laboratório de Crítica Teatral para o curso de Jornalismo Cultural na pós-graduação da Faap, entre 2009 e 2012. Foi crítica da revista Bravo! entre 2009 e 2013, ano de fechamento da mesma.