Crítica Militante
O espetáculo Enfim um líder, do ERRO Grupo de Teatro, é uma intervenção urbana com três dias de duração. Começa quase invisível e acaba de maneira apoteótica. Ao longo dos dias, os comerciantes do centro da cidade de Florianópolis, os passantes, os canais da TV local e os artistas de rua acabam por participar dos preparativos para a chegada de um misterioso líder, que tem data e hora para chegar. Durante todo o período os atores interagem com a cidade em função desses preparativos, criam uma expectativa crescente em toda a região e mobilizam dezenas de pessoas que, voluntariamente, trabalham em prol da divulgação da chegada do líder.
O centro da cidade amanhece com a frase “enfim um líder” pintada com stencil em muros, em tampos de bueiros, ruínas de prédios abandonados, lixeiras e paredes cegas. Parece ser alguma ação de pichadores religiosos esperando a volta de algum messias, ou mesmo a pré-campanha de algum político. A ação passa quase despercebida em meio à paisagem urbana.
Através de uma condescendência participativa, ‘Enfim um líder’ estabelece uma espécie de jogo coletivo e solidário
Então, com o correr dos dias, o pipoqueiro da rua central começa a embalar pipoca em saquinhos com a frase “enfim um líder”. Nas lojas de eletrodomésticos, ao invés da habitual programação da TV aberta, a frase reaparece estampando a tela plana. O engraxate oferece seu serviço de graça por conta da chegada do “líder”. Um carro de som passa anunciando o esperado dia. Além disso, uma movimentação estranha começa a tomar corpo no centro da cidade. São pessoas com ternos discretos e baratos, cabelos alisados, e que ficam o dia inteiro preparando e anunciando a iminente chegada do líder. Quem é o líder? É algum chefe político, ou religioso, um membro importante de alguma facção, de grupo artístico, associação, religião? Não se sabe, não é esclarecido. A única coisa absolutamente clara é que ele enfim chegará, em tal hora e lugar.
Em nenhum momento o ERRO Grupo anuncia ou diz se tratar de um espetáculo. Quando conversam com os comerciantes de rua, com os pipoqueiros, engraxates, músicos e donos de pequenas lojas os atores não pedem apoio para uma montagem teatral, uma peça ou obra de arte. Eles buscam auxílio para anunciar a chegada do líder. O grupo envia ofícios às autoridades convidado-as para a chegada do líder. Prefeito, vereadores, secretários de estado, padres e empresários são devidamente convidados para o “grande evento”. Mesmo em entrevistas em programas de rádio ou TV os criadores não falam em teatro, em encenação ou performance. Eles anunciam a chegada do líder, o que causa um estranhamento tanto na população quanto junto aos entrevistadores. E remete a associações que beiram ao nonsense, ao cômico, mas também, e de maneira muito forte, ao messianismo e ao populismo mais grotesco.
A estratégia de borrar os limites entre ficção e realidade não é apenas um subterfúgio para parecer mais verossímil. É, antes, o estabelecimento do jogo de uma maneira ampliada, um jogo como forma de poder, de convencimento e cooptação. Ao longo dos três dias o público que habitualmente circula pelo espaço acaba se acostumando àquelas figuras totalmente mergulhadas na fé em um líder vindouro e nos preparativos para sua chegada. As pessoas começam a interagir. Não apenas a rir, ou estranhar, mas participar das ações propostas pelo grupo. Já começa a ser difícil falar em público ou espectador. As pessoas não param para assistir, são mais de 40 horas de encenação, mas acabam por fazer parte da cena. Respondem a questionários sobre o que esperam da chegada do líder, recebem panfletos e ajudam os seguidores a distribuir, sobem na plataforma do líder (uma escada com uma espécie de púlpito, de onde o líder pretensamente falará às massas quando de sua chegada) e dão discursos. Enfim, a expectativa da chegada desse presumido representante permite que pessoas se deixem ser lideradas ou se rebelem.
O núcleo da ação se retrai e expande continuamente, dando vazão a um reposicionamento do espectador frente, ou melhor, dentro da obra. A multiplicidade de pequenos serviços que os atores realizam para os preparativos da recepção acabam por assumir parte da rotina da cidade. Cada vez menos a chegada do líder parece algo que destoa do fluxo de coisas que as pessoas veem diariamente.
Da mesma forma que um idoso decrépito esmolando na rua não é mais nenhum escândalo, um grupo de atores decorando com flores e tapete vermelho uma plataforma para a chegada imaginária de um pretenso messias já faz parte da rotina das pessoas. E semelhante às moedas que o velho decrépito recebe de uma população acostumada ao convívio com o absurdo da miséria, os atores ganham aval da população para a ocupação do espaço e das ações que realizam. Estabelece-se assim, através de uma condescendência participativa, uma espécie de jogo coletivo e solidário.
No terceiro dia da intervenção urbana e ocupação que é Enfim um líder, há uma intensificação da ação. Os preparativos tomam maior monta, eventos de grupos locais em homenagem à chegada do líder acontecem, os atores ampliam as maneiras de inscrição sobre a paisagem. Guirlandas de balões, flores, serpentinas e confetes fazem parte do jogo. Como não poderia deixar de ser, há um discurso em recepção ao líder. Um discurso continuamente ensaiado nos preparativos, e que condensa o que há de mais tendencioso e panfletário nesse tipo de expectativas. Um discurso que enaltece a fé no líder, a honra em recebê-lo, a felicidade suprema e eterna pela sua chegada, e a morte dos que se opuseram a ele. Um discurso que eleva o contraditório ao patamar de profecia:
“As gerações futuras verão o Líder como o grande defensor dos valores de honra, coragem e patriotismo internacional”.
Após o eufórico desfecho dos preparativos para a chegada do líder, as parafernálias cenográficas, a decoração exagerada, a mobilização popular, os discursos do público que assumem o púlpito da homenagem chegam ao fim. Depois dos três dias de intensa preparação e divulgação massiva, a apoteose finalmente se esvai, e lentamente como quem desmonta uma festa, os seguidores do líder vão recolhendo seus balões e faixas, e quase rapidamente o centro da cidade volta à invisibilidade habitual da paisagem urbana. Fica apenas a memória da metáfora escancarada de expectativas messiânicas e políticas que no mais das vezes oferecem maior perigo do que esperança.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
Serviço:
Enfim um líder
Onde: Centro de Florianópolis
Quando: De 22 até 26/7
Quanto: Grátis
Ficha Técnica:
Direção: Pedro Bennaton
Dramaturgia e concepção: Pedro Bennaton e Luana Raiter
Com: Luana Raiter, Dilmo Nunes, Luiz Henrique Cudo, Lígia Marina e Sarah Ferreira
Direção de Arte: Luana Raiter e Júlia Amaral
Assistência de cena e técnica: Rodrigo Ramos
Gestor de cultura em Santa Catarina, crítico e dramaturgo. Escreve ocasionalmente para os jornais Notícias do Dia e Diário Catarinense. Participa regularmente de curadorias para mostras e festivais nacionais de artes cênicas. Publicou em 2014 o livro Pequenos monólogos para mulheres (Chiado Editora/Portugal), coletânea de textos teatrais curtos. Doutorando em teatro pela Udesc com pesquisa sobre crítica teatral brasileira.