Crítica Militante
Um olhar que vigia
e que, cada um,
sentindo-se pesar sobre si,
acabará por interiorizar,
a ponto de observar a si mesmo.
Michel Foucault
Em Santos
Teatro é arte de comunhão, cuja essência redimensiona o sentido de coletivo. Parceria do catalão Roger Bernat com o holandês Yan Duyvendak, o espetáculo Please, continue (Hamlet), presente na programação do Mirada, reforça a espessura social desta linguagem, instigando a uma reflexão sobre a legitimidade das imposições dos mecanismos de poder, assim como o papel do espectador dentro e fora da cena.
Representante da Espanha, país homenageado nesta edição do evento, a obra ficcional tem como matéria-prima a realidade judiciária. Transforma público em júri, autoridades em intérpretes e palco em um autêntico tribunal. Em Santos, o julgamento acontece na antiga assembleia dos deputados, situada no Palácio José Bonifácio, prédio histórico de 1939 que sedia a prefeitura da cidade.
Os dirigentes da sessão são representados por profissionais ligados ao fórum. Juiz, promotor, advogado, médico legista e psiquiatra são interpretados por juízes, promotores, advogados, médicos legistas e psiquiatras. Os papeis do réu e das duas testemunhas que depõem são os únicos vividos por atores, devidamente segregados por seus figurinos chamativos: camisetas amarelas contendo os nomes dos respectivos personagens.
‘Please, continue’ revela em cena a complexidade da justiça social. De certa forma, o julgamento não diz respeito a Hamlet, mas à sociedade
Diretor de destaque em seu país, Bernat se dedica a abalar as convenções teatrais. Conceitos balizadores desta linguagem artística como representação, personagem e encenação são revisados em sua pesquisa.
Sua obra dissolve a fronteira que distingue ficção e realidade. Revê o papel dos atores, radicalizando experimentos iniciados no século XX com Bertolt Brecht, Augusto Boal, The Living Theater e Samuel Beckett, entre outros grupos e artistas cujos trabalhos requisitavam participação ativa da plateia, cada qual à sua maneira.
Em sintonia com a cena contemporânea, coloca o público para trabalhar criativamente. Mas não apenas. Alça-o ao centro da cena dando a ele a tarefa de interferir aberta e explicitamente nos dispositivos cênicos da maquinaria teatral.
Em Pendente de voto, espetáculo sobre manipulação e democracia apresentado no país em 2014, o diretor catalão transforma plateia em parlamento. Além do espectador debater temas como segurança pública e política, ele se vê responsável a eleger representantes para votar em seu nome.
A discussão sobre representação investigada por Bernat é antecipada por Shakespeare em Hamlet, com o apoio da metalinguagem. No clássico do bardo, o personagem-título destaca o teatro como potência desveladora da verdade ao converter espetáculo em julgamento e espectador em réu.
O diretor amplia a discussão evidenciando a teatralidade como uma das camadas da própria realidade. A crítica poderia construir diversos paralelos indicativos da invasão do teatro no território da realidade e vice-versa, mas se atém ao universo retratado em Please, continue. O juiz organiza o julgamento como um líder, conduzindo o “espetáculo” de maneira semelhante a um diretor. Também pode-se dizer que há um espelhamento entre advogados e dramaturgos quando os primeiros constroem suas teses organizando-as, de certa forma, como autores teatrais. É de modo análogo aos atores que apresentam suas histórias. Da mesma maneira, os espectadores que compõem o júri também flertam com a arte da representação ao proferirem suas reflexões críticas ou se absterem delas.
Bernat contesta o caráter absoluto do veredito na medida em que este mostra-se subordinado a subjetividades como o poder de retórica dos advogados e das testemunhas. Se as interpretações demonstram fragilidade, torna-se mais provável a condenação ou absolvição do réu.
Ao espectador é proporcionada uma experiência com a obra tanto do ponto de vista do acontecimento teatral como no da vivência judicial. A inventividade formal revela-se, entretanto, não apenas sua força mas também fragilidade. Apesar de necessária para corroborar ao conceito da montagem, a falta de experiência do elenco de apoio pode atrapalhar o andamento da montagem e, consequentemente, o envolvimento da plateia. Foi o caso da sessão de 11 de setembro, em Santos. Faltou “interpretação” ao elenco voluntário, que falava baixo, mostrou desânimo e dificuldade de arquitetar discursos.
No final do espetáculo, o diretor traduz em números a história de sua criação. Das 149 sessões de Please, continue apresentadas ao redor do globo de 2011 até hoje, Hamlet foi absolvido em 59 delas. O fato sentencia a arbitrariedade do poder judiciário. Como se explica tal variação uma vez que provas e testemunhas coincidem, se não pela vulnerabilidade das convenções legislativas?
A responsabilidade civil da plateia também é enfatizada. É preciso observar e refletir sobre os fatos, enfatiza o juiz, pois o veredito será decisão dos espectadores/jurados.
Em suas análises sobre comando e produção do saber exercido pelas relações que se estabelecem na sociedade até o século XVIII, Michel Foucault aponta o poder como algo que não se pode “dividir entre aqueles que possuem e o detém exclusivamente e aqueles que não o possuem”. Segundo o filósofo francês, o mesmo nunca está nas mãos de alguns, mas funciona e se exerce em rede.
O exercício crítico proposto à plateia convida a uma reflexão que parece endossar a de Foucault. Sobretudo na apresentação da obra no país, em contato com os nervos fervorosos do brasileiro em resposta aos rumos políticos da nação, Bernat polemiza ao sugestionar a necessidade de uma revisão de consciência de responsabilidade social não apenas dos líderes públicos, também dos indivíduos, na engrenagem que faz rodar o país.
Hamlet foi absolvido na sessão de 11 de setembro, mas o veredito real do espetáculo, síntese completa de sua temporada, parece ser a necessidade de um novo olhar sobre as relações sociais e políticas. “Vivemos submersos em regras que são as regras da nossa participação da sociedade”, diz o diretor.
Please, continue revela em cena a complexidade da justiça social. De certa forma, o julgamento não diz respeito a Hamlet, mas à sociedade. É na realidade o corpo coletivo que o encenador expõe no espetáculo para, talvez, suscitar uma reavaliação.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
.:. A jornalista viajou a convite da organização do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos.
Ficha técnica:
Please, continue (Hamlet)
Concepção e direção: Roger Bernat e Yan Duyvendak
Com: Matheus Macena, Iléa Ferraz e Mariana Nunes
Direção técnica: Txalo Toloza
Produção executiva: Helena Febrés Fraylich
Projeto apoiado pelo Institut Ramon Llull
Autora, diretora e jornalista teatral. Pós-graduada em Jornalismo Cultural na PUC-SP, estudou Cultura e Civilização Francesa na Sorbonne, em Paris, e Dramaturgia e História do Teatro Moderno em Harvard, Boston. Escreve para Folha de S.Paulo e revista Vogue. Compõe o júri do prêmio APCA de teatro. É autora e diretora de Nijinsky - Minha loucura é o amor da humanidade (2014), peça convidada a integrar o Festival de Avignon de 2015. Tem cinco peças encenadas, Ilhada em mim – Sylvia Plath (indicada ao prêmio de melhor direção pela APCA de 2014); Espasmo (2013); Correnteza (2012); Parasita (2009), A história dela (2008), além de um livro publicado com suas obras teatrais: Gabriela Mellão – Coleção primeiras obras. Lecionou Laboratório de Crítica Teatral para o curso de Jornalismo Cultural na pós-graduação da Faap, entre 2009 e 2012. Foi crítica da revista Bravo! entre 2009 e 2013, ano de fechamento da mesma.