Crítica
Solidão, novo espetáculo do grupo paulistano Folias D’Arte, parece desnortear o espectador em suas inúmeras e intensas fragmentações e deslocamentos, tornando inclusive o exercício de síntese da obra algo quase que impossível. Curiosamente, é nessa esteira do impossível tornado possível – caracterizado por muitos como “realismo mágico” – que se move a materialidade cênica do espetáculo, impelida a desafiar e transpor ao palco a forma amorfa do maior romance do colombiano Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão.
Escrito em apenas dezoito meses, segundo relato do próprio autor (será fidedigno?), e publicado em 1967, o romance desbrava quixotescamente a saga da família Buendía (em português, “Bom dia”) desde a fundação da aldeia de Macondo até seu completo declínio. Além da relação tecida por críticos e por Gabo entre a obra e alguns aspectos biográficos, Cem anos… alça a um plano mais crítico e objetivo, encontrando sua força na dialética entre o microcosmo – o intimismo da vida de infância em locais familiares – e o macrocosmo – a Colômbia enquanto país latino-americano e suas relações exteriores.
O único componente estável do cenário é uma árvore a germinar sangue e morte, cujos vizinhos, exibidos pombos (aves europeias, diga-se de passagem), insistem em fazer troça de nosso desamparo
O livro não deixa de dialogar com o que o intelectual uruguaio Ángel Rama (1978) salientou como a “forte tendência da literatura colombiana ao documentarismo”, bem como com o espírito engajado da novela social de 30 e do romance de violência bastante presente no país a partir da década de 50. No entanto, ao mesmo tempo em que Márquez ressalta a importância de aspectos regionais na arte literária, o escritor também reconhece a realidade inominável da América Latina e, com ela, características culturais de povos duramente silenciados impossíveis de serem assimiladas pela lógica racional ilustrada.
De acordo com o pesquisador Alfredo Ospina (2005), Cem anos se afasta da crueza literária e do sensacionalismo típicos dos escritos de violência para trabalhar justamente com aspectos vanguardistas (criação de um tempo mítico e falta de unidade da narrativa) já desconectados de sua cosmovisão aristocrática, posto que voltados às camadas menos favorecidas. E talvez seja esse o fio da meada do espetáculo do Folias, ou seja, investigar formalmente como a voz dos oprimidos perdeu sua articulação nos âmbitos sociais e artísticos nos últimos tempos para, assim, traçar um percurso capaz de ativar uma memória utópica em tempos de extrema solidão.
O cigano Melquíades, profetizador de Macondo e autor dos textos em sânscrito recuperados em pergaminho pela família Buendía, é transformado em principal narrador e mediador dos fragmentos postos em cena. A justificativa para o início da narração é muito simples: a terra escaldante da América Latina, que já renega o toque de nossos pés, não pode ter nenhum dono. Nesse ponto, o calor extremado no Galpão nos intimida e força a pergunta: ainda somos os donos dos nossos teatros? Os personagens, tornados autômatos por conta de sua marginalidade, dançam a cumbia até a exaustão para conseguirem dormir e esperar pela morte tão desejada.Na verdade, já estão mortos há muito. E a dança, que no passado tinha a finalidade de celebrar feitos heroicos de grupos africanos e perpetuar a memória de um povoado, só serve enquanto uma série de movimentos mecânicos e incessantemente repetidos.
Seria preciso, então, reavivar os mortos – os verdadeiros vivos – para chegar ao início do círculo vicioso de exploração econômico-cultural de nuestra America. Ou talvez encontrar a ponta do fio enrolado na pedra de Sísifo para conseguir, enfim, compreender historicamente o que poderia, a princípio, ser visto como um destino catastrófico.
O único componente estável do cenário é uma árvore a germinar sangue e morte, cujos vizinhos, exibidos pombos (aves europeias, diga-se de passagem), insistem em fazer troça de nosso desamparo. Tal como um estranho fruto, José Arcadio Buendía enrosca-se num galho até o completo desfalecimento, ainda que fosse avisado por sua esposa, Úrsula, sobre o início da invasão das temidas formigas. Com um poder de organização quase militar, são elas as responsáveis por exterminar a sétima e última geração dos Buendía.
A representação do poder em Solidão toma formas diversas ao longo do espetáculo: pombos espalhafatosos que zombeteiramente defecam a toda hora, personagens vestidas de formigas, canções em portunhol e inglês sobre o agrobusiness, um homem segurando uma banana. A obra não alude de forma direta ao Massacre das Bananeiras ocorrido na Colômbia em 1928, em que cerca de mil camponeses grevistas da United Fruit Company foram assassinados, mas não deixa de apontar a dominação do capital estrangeiro na economia latino-americana. A banana enquanto alimento e principal matéria-prima de exportação também se torna um símbolo fálico perverso ao fazer com que um Buendía se sentisse impelido à prostituição como um exercício natural aos homens de virilidade pronunciada.
Além disso, a apresentação de Rebeca, filha adotiva de José Arcadio e Úrsula, chama nossa atenção. Adentrando o espaço a partir das calçadas do bairro de Santa Cecília, Rebeca surge despida, com os cabelos soltos. Já no palco, despeja sobre si e alimenta-se de uma terra estranha, que cheira a achocolatado, enquanto um ator entoa em tom canastrão a canção do agrobusiness. O que seria um ato de comunhão aproxima-se do envenenamento compulsório e cotidiano neste lugar condenado chamado Latinoamerica.
Se, no contexto do romance de Márquez, e de acordo com o historiador colombiano Herbert Braun, os jornais “humilhavam e caluniavam os camponeses como responsáveis por todas as mortes que ocorriam” (2003), alegando até mesmo que a eles, primitivos, passionais e ignorantes, não havia sido ofertada a capacidade de pensar racionalmente, em 2016 somos tomados por um crônico laissez- faire. Segundo o diretor Marco Antonio Rodrigues anota no programa do espetáculo, essa falência crítica que povoa as mentes e o “estranho amaneiramento muito próprio das raças antigas e superiores” não devem ser naturalizados. Pelo contrário: olhando historicamente, nota-se que “no começo da jornada, nós que nos amávamos tanto justamente porque entendíamos que o mundo, a casa, o país e o continente não podiam pertencer exclusivamente àqueles poucos senhores das raças antigas e superiores” nos sentíamos responsáveis por atestar nossa chegada e interromper o tilintar dos relógios.
A remissão ao filme de Ettore Scola serve como via de mão dupla: o passado do verbo “amar” atesta a finitude da coletividade, a falta de lugar da utopia do real na contemporaneidade, a hora derradeira em que o silêncio, o refúgio e a morte são conjugados. Contudo, o espetáculo do Folias segue o pensamento dialético, sublinhando que todo negativo contém em si seu positivo. A apresentação segue, mesmo com a morte de Fidel Castro e os golpes no Brasil. Resta-nos seguir a recomendação de Cortázar em poema a um Che Guevara já morto: “Toma a minha mão e escreve. Tudo quanto ainda me falte dizer e fazer, eu o direi e farei sempre contigo ao meu lado. Só assim terá sentido continuar vivendo” (1966).
.:. Leia a crítica de Valmir Santos a partir de Solidão.
Ficha técnica:
Direção: Marco Antonio Rodrigues
Dramaturgia: Sérgio Roveri
Com: Ailton Graça (Chema), Bete Dorgam (Concha), Clarissa Moser (Mariposa), Joana Mattei (Soledad), Lui Seixas (Giuseppe), Nani de Oliveira (Velha), Pedro Lopes (Aristeo), Rafael Faustino (Velho), Rafaela Penteado (Lupe), Rodrigo Scarpelli (Jimeno), Simoni Boer (Tereza de Dios e Maribel) e Suzana Aragão (Malva)
Dramaturgista: Gustavo Assano
Desenho de luz: Tulio Pezzoni
Composição e direção musical: Sonia Goussinsky, Rafael Faustino
Canção Os reis do agronegócio: música de Chico César, letra de Carlos Rennó
Movimento cênico: Joana Mattei
Cenografia e figurinos: Sylvia Moreira
Design gráfico: Humberto Vieira
Fotografia: Lenise Pinheiro
Operador de som: Adriano Almeida
Assistente de cenário e figurinos: Sofia Fidalgo
Pintura artística de telões: Fernando Monteiro de Barros
Máscaras e adereços: Carlos Francisco, Luiz Carlos Rossi e For Produções
Execução dos figurinos: Judite Lima
Costureiro: Otávio Matias
Contrarregragem: Marcelo Machado e Giovanna Kelly
Cenotécnicos: Carlos Ceiro, João Donda
Direção de produção: Ricardo Grasson
Produtor executivo: Tomás Souza
Produção geral: Gelatina Cultural
Doutoranda pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Mestra em Artes Cênicas e bacharela em Letras com habilitação em português e inglês pela USP. Desenvolve pesquisa sobre o trabalho teatral de Augusto Boal no período de exílio latino-americano, atuando principalmente nas áreas: estudos culturais, teoria crítica, história do teatro brasileiro e teatro político.