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Crítica

O particular e o geral

9.12.2016  |  por Daniel Schenker

Foto de capa: Paula Kossatz

Mesmo que pince um caso específico – o de um suposto pintor (o Philippe Dussaert do título da peça com Marcos Caruso) que se notabilizou na reprodução de paisagens de fundo de telas consagradas – e que tome cuidado de, em dado momento do texto, ressaltar que não tem a intenção de abordar a arte contemporânea como um todo, o francês Jacques Mougenot realça questões abrangentes sobre a obra de arte nos dias de hoje (quem atribui o valor, como estabelecer critérios para legitimar ou não o trabalho).

O dramaturgo, quase inevitavelmente, traz à tona uma recorrente polêmica sobre arte abstrata, muitas vezes tratada como golpe por não fornecer uma decodificação imediata dos signos no habitual intuito de estimular a livre apropriação do espectador. Esse incentivo à autoria, porém, por mais saudável, não garante a qualidade da obra. E há trabalhos que ambicionam desestabilizar ou surpreender o espectador e se reduzem a um mero efeito de choque, ocasionalmente impulsionados pelo jogo de marketing, pelo interesse em criar e promover celebridades. No texto de Mougenot, o mencionado Dussaert desponta como símbolo de determinadas distorções. Não é, portanto, um caso isolado. O escândalo Philippe Dussaert parece associar, por meio de constante ironia, iniciativas singulares a um vazio artístico. Essa articulação tende a gerar uma valorização do oposto: de uma noção de arte mais calcada em bases concretas, palpáveis, menos pautada pelo que se costuma chamar de invencionices.

Caruso dá a impressão de se expressar em seu próprio nome, mas interpreta um personagem que explana o caso Philippe Dussaert. Ao público também é destinado um papel: o de espectador de uma palestra coloquial

É preciso incluir Marcos Caruso, ator do monólogo dirigido por Fernando Philbert, nesse debate. Artista que transita por diversas funções – ator, dramaturgo, diretor –, Caruso construiu sólida trajetória dentro do teatro de mercado (termo, aqui, desvinculado de juízo de valor). Como autor assinou sucessos de bilheteria, em voos solos, a exemplo da peça recordista de público Trair e coçar é só começar (1989), e em parceria com Jandira Martini, em textos como Porca miséria (1993) e Sua excelência, o candidato (1994). Caruso é representante genuíno da comédia de costumes, gênero que, iniciado com Martins Pena, atravessa o teatro brasileiro. Menos frequente como diretor, firmou bem-sucedido percurso como ator, seja nos palcos, seja na televisão. Apesar do texto de Mougenot não ter evidentemente sido escrito para Caruso, há uma conexão entre a peça – que, de certo modo, defende uma perspectiva de arte mais tradicional – e um artista inserido no mercado.

A encenação é complementada, ao final, com uma mensagem tradicional (qualquer mensagem, por si só, pode ser considerada como um mecanismo tradicional na relação com o público), um destaque a um sempre referido paradoxo do contato ator/espectador no teatro: o ator como aquele que mente com o máximo de verdade, convencendo a plateia de informações fictícias e estados emocionais que soam como próprios do intérprete, mas pertencem ao personagem. Vale lembrar que Bosco Brasil estruturou sua peça Novas diretrizes em tempos de paz (2001) sobre a capacidade do ator, por meio das suas ferramentas interpretativas e de sua cultura teatral (evoca o texto A vida é sonho, do espanhol Calderón de la Barca, do século XVII), fazer o espectador acreditar que está diante de um relato verídico e se emocionar. No texto de Brasil, um dos personagens assumia o lugar de ator e o outro, o de espectador. No de Mougenot, o ator solitário convence o público de que está relatando uma história que, de fato, aconteceu.

Trajetória de Caruso conecta-se com questões da peça quanto à relação arte e mercadoPaula Kossatz

Trajetória de Caruso conecta-se a questões da peça como a relação arte e mercado

Para tanto, Caruso busca um registro de atuação invisível. O ator recebe os espectadores na entrada do teatro e, quando sobe ao palco para o espetáculo efetivamente começar, mantém o tom de conversa direta com a plateia, a quebra da quarta parede, a fala nada impostada, um estar em cena à-vontade que sustenta ao longo da sessão. O ator dá a impressão de se expressar em seu próprio nome, mas interpreta um personagem que explana, diante da plateia, o caso Philippe Dussaert. Ao público também é destinado um papel: o de espectador de uma palestra coloquial sobre Dussaert. Esse registro contrasta apenas nos breves instantes em que Caruso compõe uma suposta crítica de arte. Centrada no ator, a montagem demonstra investimento na economia de elementos cênicos, mas sem perder de vista a preocupação com uma dada concepção, a julgar pela escultura presente na cenografia de Natalia Lana e pela iluminação, ainda que vez por outra excessiva, de Vilmar Olos.

O escândalo Philippe Dussaert resgata um amplo debate – também presente em Arte (1994), peça da francesa Yasmina Reza –, sem, contudo, levá-lo a avançar para além do lugar-comum, em que pese a segurança do autor no desenvolvimento de sua proposta dramatúrgica. Para avançar na discussão talvez seja necessário perceber que cabe analisar as obras separadamente e ceder às tentações de agrupá-las em blocos e de seguir apostando em contrapontos apressados – entre o abstrato e o concreto, o experimental e o mercado –, como se fosse preciso tomar um partido. Mas o espetáculo, bastante fluente, não tende a provocar incômodo no espectador. Se por um lado se pode fazer restrição à ausência de atrito que o universo temático deveria suscitar, por outro é um prazer assistir a Marcos Caruso em pleno domínio dos seus recursos interpretativos.

Serviço:
O escândalo Philippe Dussaert
Onde: Teatro Maison de France (Avenida Presidente Antonio Carlos, 58, Centro, Rio de Janeiro, tel. 21-2544-2533)
Quando: Quinta e sexta, às 20h; sábado às 19h; e domingo, às 18h. Até 18/12
Quanto: R$ 60 (quinta e sexta) e R$ 70 (sábado e domingo)
Duração: 80 minutos
Não recomendado a menores de 12 anos

Equipe de criação:
Texto: Jacques Mougenot
Tradução: Marilu de Seixas Corrêa
Direção: Fernando Philbert
Com: Marcos Caruso
Cenário e figurino: Natália Lana
Trilha sonora: William Pereira
Iluminação: Vilmar Olos
Direção musical: Maíra Freitas
Vídeos: Rico Vilarouca
Assistente de direção: Vinícius Marins
Direção de produção: Carlos Grun – Bem Legal Produções
Realização: Galeria de Arte CorMovimento Ltda
Assessoria de imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.

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