Reportagem
7.10.2022 | por Teatrojornal
Foto de capa: Victor Zambrano
O texto a seguir é a transcrição editada da mesa de lançamento do livro Sobre antigas formas em novos tempos: o teatro do oprimido hoje, entre “ensaio da revolução” e técnica interativa de domesticação das vítimas (Hucitec Editora, 2022), ocorrida em 24 de agosto de 2022, no Teatro da Universidade de São Paulo, o Tusp. Na ocasião, o autor Julian Boal convidou a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl, o diretor e professor de teatro Marco Antonio Rodrigues e o pesquisador nas áreas de teatro e história Douglas Estevam, integrante da coordenação nacional de cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Brigada Nacional Patativa do Assaré de Teatro, a reagirem a alguns dos capítulos da obra.
A noite também contou com a presença da editora da Hucitec, Mariana Nada, cujo site informa que, enquanto militante do teatro do oprimido, o autor “encarou neste trabalho o desafio de reconstituir a proposta desde seus pressupostos históricos e teóricos, examinando tanto as raízes quanto o estimulante quadro contemporâneo, do Brasil à Índia, passando por Europa e Estados Unidos. Indica suas enormes possibilidades, mas também algumas de suas mais graves apropriações e desfigurações ideológicas”.
O livro tenta historicizar o teatro do oprimido não como uma forma de crítica unilateral, mas para, justamente, pensar o teatro do oprimido hoje. Tem uma frase [do dramaturgo alemão] Heiner Müller que eu coloquei na introdução e diz respeito a Bertolt Brecht: “Utilizar Brecht sem criticá-lo é traí-lo”. E eu aplico isso ao meu pai, porque justamente acredito que seu legado seja de demasiada importância para traí-lo ao não criticá-lo
Julian Boal
Na introdução, Julian Boal anota uma frase do dramaturgo alemão Heiner Müller (1929-1995), acerca do legado do conterrâneo Bertolt Brecht (1898-1956): “Utilizar Brecht sem criticá-lo é trai-lo”. Orientando-se pela mesma filosofia, o filho do dramaturgo e teórico Augusto Boal (1931-2009), idealizador do conjunto de técnicas a um só tempo cênicas, sociopedagógicas e políticas, sistematizadas e desenvolvidas a partir dos anos 1970, e da psicanalista Cecília Thumim Boal, assim elabora:
“As formas de arte são perecíveis, dizia W. Benjamin. O que nos foi dado assistir não foi tanto a morte de certas formas, mas a completa transformação de seus sentidos pela mudança de conjuntura, conjuntura que abarca tanto a macroeconomia quanto a nossa subjetividade. Como está mudança afetou o Teatro do Oprimido? Que será dele e dos seus usos em tempos neoliberais? Como se deu, dentro do Teatro do Oprimido, a passagem de um tempo de ditaduras e partidos centralizados ao extremo a outro, de Facebook e democracias alegadamente participativas? Por que se deu sua extraordinária expansão pelo mundo junto com a relativa diluição de seu capital crítico?”.
Algumas dessas perguntas atravessam o diálogo transcrito de maneira a preservar a oralidade. Vozes conjugadas pela práxis, pelo rigor teórico e pelo pensamento dialético; portanto, cientes da luta política e da superação de obstáculos na engrenagem capitalista.
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Mariana Nada, editora da Hucitec – Muito obrigado por estarem aqui. Acho que é uma data importante, um dos primeiros lançamentos presenciais que fazemos depois de períodos muito difíceis. Todos saímos marcados desse período [da pandemia], ninguém saiu ileso. Pois aqui estamos com o Julian, nessa mesa ilustre, para discutirmos e falarmos um pouquinho sobre o lançamento do livro.
Quero rapidamente fazer um agradecimento ao professor Flávio Desgranges, que é o diretor da coleção Teatro Artes Cênicas, fundada pelo [escritor, tradutor, ator e diretor teatral] Fernando Peixoto [1937-2012], com quem tive o prazer de conviver e conhecer. O Peixoto tinha o grande sonho de que a arte podia mudar o mundo e mudar as coisas. E acho que só estamos aqui, hoje, porque a gente continua acreditando no que ele sonhava.
Vou apresentar a nossa mesa. Começo pelo Julian Boal, escritor e membro da equipe de coordenação da Escola de Teatro Popular (ETP), no Rio de Janeiro. É praticante de teatro do oprimido, ministrou oficinas em mais de 25 países. Curador e coordenador de diversos encontros internacionais de teatro do oprimido, na Índia, Espanha, Portugal, Croácia, França e no Brasil, com o MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. É autor, pela Hucitec, de As imagens de um teatro popular (2000) e, pela The Routledge [Inglaterra], de Companion to theatre of the oppressed (2019),em coautoria com Kelly Howe e José Soeiro. Além disso, é um bravo lutador por direitos de quem não tem direitos. Uma pessoa muito querida por nossa casa editorial, sempre foi extremamente paciente. Só ele sabe o quanto foi difícil fazer este livro nascer durante a pandemia.
É com muito orgulho que apresentamos a vocês o livro Sobre antigas formas em novos tempos: o teatro do oprimido hoje, entre “ensaio da revolução” e técnica interativa de domesticação das vítimas. Estamos aqui também com a professora Maria Rita Kehl, que é psicanalista, jornalista, ensaísta, poetisa e cronista. Agradecemos muito a sua presença. Ela, mesmo tendo compromisso em seguida, veio nos prestigiar nesta noite. Estamos também com o Marco Antonio Rodrigues, que é encenador e pedagogo; e o Douglas Estevam, que é membro do Coletivo Nacional de Cultura do MST.
Julian, você quer começar?
Julian Boal, autor – Também agradeço a todas as pessoas que estão aqui. Eu queria só falar um pouco sobre o que o livro trata. É a minha tese de doutorado, mas antes disso o livro é um ponto de uma etapa maior: é a minha vida dentro do teatro do oprimido. E a minha vida dentro do teatro do oprimido começa acreditando que o teatro do oprimido é a forma encontrada do teatro emancipado. É a forma, enfim, encontrada do teatro numa sociedade emancipada.
O teatro-fórum é um momento em que a gente mostra o mundo com uma possibilidade, por exemplo, negativa, [e a partir dela] o público tem que vir com propostas de outras possibilidades. Depois, no coletivo, a gente vai discutir se isso, de fato, dá para ser feito, se é a sociedade que a gente quer ou se tem outras formas de sociedade. Então, é uma forma de mostrar o mundo pelo que ele é, o mundo enquanto processo. É mostrar a representação enquanto processo para mostrar o mundo enquanto processo; processo no qual a gente poderia intervir. Então, achava que era tanto numa representação do mundo emancipado como uma ferramenta para chegar nesse mundo emancipado, no comunismo. Vamos dizer a palavra logo.
Portanto, achava isso no início e fui confrontado à medida que o tempo avançava, pelo fato de que não era bem assim. Tanto por dar oficinas em que eu tinha que pelejar com os participantes durante mais de meia hora para explicar que, não, um coelho não podia ser um protagonista de teatro-fórum. E isso aconteceu. Depois de meia hora, achava que a pessoa estava convencida de que não podia ser… Vinha: “Mas, e uma árvore?”. Então, o nível de discussão não era bem condizente com o teatro emancipado e as coisas que eu tinha na cabeça.
[Pude] ver que em práticas majoritárias de teatro do oprimido havia escolhas que reproduziam a nossa dominação mais do que a combatiam. Me deparei com isso e tentei começar a pensar por que acontecia. Eu tinha várias hipóteses e ainda guardo bastante delas. A maior de todas: o teatro do oprimido é teatro político. E, enquanto tal, isso quer dizer que ele foi determinado pela conjuntura em que nasceu. Cinquenta anos depois, o que advém dessa técnica é uma conjuntura totalmente transformada. E transformada até em nível mais íntimo, inclusive no nosso jeito de pensar e de sentir.
Tentei ver como é que se pensava e se sentia naquela época, nos anos 1970, enquanto se acreditava que existia a possibilidade de uma grande reviravolta, que estava ali na esquina, que era factível, e como é que hoje a gente encara o mundo. Como essas mudanças foram dadas pelas transformações na realidade concreta, pelas nossas experiências, pelas coisas mais sensíveis.
Eu não vou adentrar mais no livro, mas é tentar pensar isso: historicizar o teatro do oprimido não como uma forma de crítica unilateral, mas para, justamente, pensar o teatro do oprimido hoje. Tem uma frase [do dramaturgo alemão] Heiner Müller que eu coloquei na introdução e diz respeito a Bertolt Brecht: “Utilizar Brecht sem criticá-lo é traí-lo”. E eu aplico isso ao meu pai, porque justamente acredito que seu legado seja de demasiada importância para traí-lo ao não criticá-lo.
E estou pensando aqui [olhando para Kehl] se chamei uma psicanalista por isso… [Risos]. Mas não acredito que seja, e sim porque eu realmente via todas essas práticas e as achava não contra-hegemônicas, ao contrário, reprodutoras. Quero que o teatro do oprimido permaneça, mas para isso a gente precisa entender como ele foi adotado. Dizer que as coisas são recuperadas pelo capitalismo é fácil, e é verdadeiro. A questão é saber como elas foram recuperadas para tentar resguardar autenticidade, críticas para o hoje. Então o livro é uma tentativa de pensar esses tempos. Não é uma solução, mas uma tentativa.
Obrigado por terem vindo.
Maria Rita Kehl, psicanalista – Sou uma pessoa que conheci e adorava o Boal, adoro a Cecilia, gosto da família toda. Essa é a minha única qualificação para estar aqui. Eu pedi para o Julian me indicar dois capítulos, ele me indicou um e é desse capítulo que vou fazer alguns comentários, mas mais como forma de perguntas para você. Eu não tenho capacidade de fazer comentários críticos.
Em primeiro lugar, mais por elogiar uma coisa que eu acho rara, a sua escrita é uma mistura de muita densidade e muita clareza. Mas não é aquela densidade do tipo Jacques Lacan [1901-1981], que escreve para você não entender. Essa mistura de densidade com clareza, de não fugir à complexidade, acho que ela em si é uma postura – digamos assim – emancipatória em relação ao leitor, em relação à transmissão. É um autor que não está tão preocupado em impressionar. E não acho errado querer impressionar, mas é muito mais libertário o autor que está preocupado em se fazer entender mesmo. De modo que se você quer só impressionar, você pode deixar muita gente embasbacada porque não entendeu nada. O Lacan tem esse problema. Ele é genial, revolucionou a psicanálise, mas o texto dele é infernal, dá vontade de largar no meio. E o Julian tem isso, uma enorme clareza num texto denso. Eu queria elogiar isso.
Em segundo lugar, queria te pedir para explicar o subtítulo: o teatro do oprimido hoje, entre “ensaio da revolução” e técnica interativa de domesticação das vítimas.
Na introdução, anotei para mim mesma que deveria falar um pouquinho sobre a reconciliação por incompreensão. Mas, ao invés de falar, eu te pergunto também: “O que é a reconciliação por incompreensão?”.
E eu prefiro que você fale agora porque aí eu posso dizer que não entendi de novo.
Julian Boal – “Ensaio da revolução”é uma citação do meu pai. E ele escreve um teatro-fórum especificamente como um “ensaio da revolução”. A gente ensaiaria dentro do teatro-fórum propostas para o dia de amanhã. Por exemplo, a gente pensa em uma greve e o que vai falar. E estou pensando nisso porque aqui [no Tusp] foi feito O pão e a pedra, espetáculo da Companhia do Latão, e eu ajudei [na equipe de pesquisa], então talvez esteja falando de greve por causa disso. Mas é um exemplo que o meu pai dava. Então, ensaiaríamos o que a gente faria no dia seguinte. E era isso que o meu pai queria. E também tem os dois sentidos da palavra “ensaio”. É interessante pensar sobre isso como um momento preparatório, mas também enquanto forma literária que tem um valor próprio. Acho essa forma muito bonita, de ensaio para a revolução.
E sobre “técnica interativa de domesticação das vítimas”, para mim é justamente o contrário. Ao invés de uma saturação do possível com todos os outros possíveis que podem existir, a domesticação interativa das vítimas é o contrário, porque muitas vezes o teatro-fórum é utilizado como um “How to”, “como fazer quando”. E um “como fazer quando” é extremamente limitativo dentro do quadro.
Um exemplo rápido é uma peça de teatro-fórum nos Estados Unidos em que um negro é detido pela polícia enquanto dirigia. E toda peça era para mostrar como a pessoa deveria sobreviver a isso: mãos no volante, descer o vidro o mais rápido possível, acender a luz, não se mexer sem falar para o policial o que está fazendo, falar sempre de forma calma. Essa peça de teatro-fórum talvez ajudou a salvar dezenas de vidas, mas, ao mesmo tempo, tem uma questão que nunca é colocada, que é : “Por que que a pessoa tem que ter medo de levar uma bala da polícia naquele momento?”. Essa peça ensina a se adaptar a uma opressão da qual se pode sobreviver naquele dia, mas repõe a mesma situação ou não faz nada para que essa situação não se reponha no dia seguinte. Então, é isso que eu digo: é a reprodução da nossa dominação por um teatro-fórum que, a priori, está feito para criticá-lo.
E, para mim, isso é uma técnica que junta o lado de ser ativo, ser protagonista, que eram termos importantes nos anos 1970, só que os recolocam dentro de um quadro em que esse protagonismo, na verdade, já não tem mais nada de crítico. Como as propagandas da Uber, que colocam a autonomia dos motoristas como um grande valor em si, por si, sem colocar que essa autonomia, na verdade, é uma dependência. Uma dependência em relação a esses meios de produção que a gente absolutamente não controla. É uma dependência em relação a um custo de vida que a gente não controla. É isso.
E sobre a compreensão da “reconciliação por incompreensão”, na verdade, isso vem de um filme que vi sobre o Cinema Novo e que achei péssimo. Não vou citar o nome. Achei péssimo porque justamente colocava todas as pessoas do Cinema Novo juntas como se elas se amassem entre elas todas, como se fosse uma grande história de grande união, enquanto que é o contrário. O Cinema Novo é trabalhado também com contradições internas. E era uma incompreensão por reconciliação. Todos eram lindos, todos eram amigos, todos viviam pacificamente entre eles como um jeito de embotar as propostas, como um jeito de falar: “Olha só essas grandes obras”, e não ver que dentro dessas obras tinham processos, tinham vontades, tinham inter-relações que eram totalmente diferentes umas das outras.
Teve um momento em que o Sérgio de Carvalho [diretor, dramaturgo e cofundador da Companhia do Latão] quase fez uma exposição sobre o meu pai no Rio de Janeiro. A gente estava conversando de como fazer essa exposição e uma das ideias era de mostrar justamente que o que o meu pai fez foi intervir. Foram intervenções dentro de um campo, e ele não se concilia com aquele campo. Eu não sei se vocês leram um texto do meu pai que é muito belo: Que pensa você da arte de esquerda? [escrito em 1968 para o programa da I Feira Paulista de Opinião, censurada]. E esse texto “bate” em todas as outras pessoas. Ele faz uma análise crítica muito bonita da conjuntura artística do momento. É muito crítico em relação às correntes que estão sendo feitas. Ele diz que a gente tem que partir das nossas derrotas para refundar uma arte que talvez tenha uma possibilidade. Então, a reconciliação para mim é isso: é não pensar nos anos 1970 como todos aqueles gênios, mas tentar ver os processos, tentar ver as lutas internas, tentar ver isso como propostas políticas que se chocavam umas com as outras.
Maria Rita Kehl – Eu li o capítulo que você recomendou porque não teria tempo de ler o livro inteiro, então anotei coisas para te perguntar. Esse pedaço aqui, “As virtudes do indivíduo heroico” [tópico do capítulo 7], que eu achei muito interessante e consegui quase entender, em que você fala da impossibilidade do herói: “Os tempos heroicos são aqueles em que a relação entre o mundo e o indivíduo se dá sem mediações. Esquecer-se da necessidade das mediações é esquecer-se o tempo histórico em que vivemos”. E o que eu pude entender é que o tempo histórico em que vivemos nos obriga a fazer mediações. É isso?
Julian Boal – Eu te pedi para ler esse texto porque fala sobre como a subjetividade mudou dos anos 1970 para cá. Mas nessa parte específica que você pegou, de fato, é um debate antigo entre o meu pai e o [crítico e teórico alemão então radicado no Brasil] Anatol Rosenfeld [1912-1973]. E acho que é uma das polêmicas mais interessantes daquele tempo. Vou fazer um resumo rápido para as pessoas entenderem.
Meu pai faz uma aposta contrária à do Brecht, de que nos anos 1970 o Brasil precisa de heróis, precisa de figuras com as quais as pessoas possam se identificar para terem a coragem de realizar o que essas figuras já realizaram. E ele propõe Tiradentes como uma dessas figuras que, pelo seu exemplo heroico, seria capaz de mobilizar o heroísmo latente no público e fazer com que as pessoas queiram fazer o que ele fez. Ele também pega o diário do [revoluconário cubano] Che Guevara [1928-1967], dramatiza e dá como exemplo de herói positivo. E o Rosenfeld começa a discutir isso, o que é um herói, e a fazer a história do herói mítico, do herói grego. E o herói grego vive num universo em que tudo pode ser construído por ele. E, se bem me lembro do texto, ele fala que o herói é uma pessoa que forja a sua própria espada, uma pessoa que não precisa de grandes mediações. Enquanto que o que o Rosenfeld vai colocar é que, nesse momento, o histórico que vivemos é o contrário, que para fazer qualquer coisa a gente precisa passar por milhares de pessoas, por milhares de mediações.
E eu lembro agora de um exemplo dado pelo meu orientador, Marildo Menegat [UFRJ], sobre como na Idade Média um camponês podia passar a vida inteira sem tocar numa moeda e que, hoje, até mesmo um mendigo não pode passar um dia sem tocar em dinheiro. E o dinheiro como uma das formas de mediação que a gente precisa, com essa divisão social do trabalho extremamente desenvolvida na sociedade em que vivemos.
Então, a esse herói que é o princípio e o fim da sua ação, o Rosenfeld propunha, ao contrário, uma outra figura de uma peça do Brecht, a Pelageya Vlasova [de A mãe, de 1931], enquanto militante de uma organização gigantesca e que, portanto, precisa passar por várias mediações. Era um heroísmo com início, meio e fim, frente às ações muito mais mediadas de uma militante de uma organização maior.
E esse debate, na verdade, que é um debate teatral, rebate num debate político da época também, que é o da luta armada, na qual você precisa de heroísmo. Tem aquela palavra de ordem do [político e guerrilheiro] Carlos Marighella [1911-1969], que diz que “quem dá o primeiro tiro, arrasta o povo”. Quem faz a ação heroica é capaz de chamar para si mesmo o resto da população e fazer com que se cristalize em torno dele uma organização capaz de acabar com a ditadura. A ideia era essa: “Quem dá o primeiro tiro, arrasta o povo”.
E essa ideia do heroísmo como sendo capaz de derrubar regimes, acho que o Rosenfeld, ao trazer a personagem militante, traz a personagem da pequena formiga disciplinada, que consegue criar movimento, que vai ser capaz de construir algo e derrotar o regime.
Maria Rita Kehl – Quero observar uma outra coisa, como psicanalista, que desaparece a realidade que originou o drama burguês e que o burguês, como a gente sabe, é centrado nos conflitos de um indivíduo, de dois indivíduos, enfim. Ele plasma essa figura que adensa no modo de economia, na cultura burguesa que é o indivíduo, que é o soberano da cultura burguesa. Então desaparece a realidade que originou o drama burguês, que é o indivíduo, mas sobra o individualismo.
Achei muito interessante isso. O indivíduo como protagonista, como alguém que se arrisca, que quer fazer a sua história, isso desaparece, mas o individualismo não. E isso deságua na doença senil, e não infantil, na doença senil do capitalismo no século XXI, que é o empreendedorismo. Essa ideia que você falou agora há pouco de que o motorista de Uber se considera um empreendedor.
Então, essa mistura que você está comentando aqui entre a situação mais desamparada, que é a situação em geral de todos nós indivíduos jogados na selva do cada um por si, e a simulação de um empoderamento, como o cara do Uber, de que sou o meu próprio patrão e faço o meu próprio negócio… Não sei se você conseguiria comentar isso porque eu fiquei pensando quem seria o personagem desse drama. O que daria para construir em torno desse pobre iludido e alienado no seu próprio desamparo?
Julian Boal – Não sei, mas eu pensei agora no Revolução na América do Sul, do meu pai, que justamente tem uma figura da alienação, o José da Silva, que entra com fome e morre faminto no final da peça. Ele morre ao comer marmelada, ao participar da Marmelada Geral Brasileira, e não tem outra solução.
Numa análise do [crítico literário e professor] Roberto Schwarz, ele fala que o personagem tinha que morrer porque, nos anos 1970, não se podia admitir a existência de personagens alienados, já estava para vir o operário consciente, o operário sujeito da história, o operário que ia fazer a revolução. Então por isso a necessidade da morte deste personagem.
Eu vi recentemente uma montagem do Revolução na América do Sul [no Rio de Janeiro, dirigida por Wellington Fagner] que eu achei muito boa pelas suas reinvenções no texto. É um texto genial, eu adoro esse texto, mas é verdade que é um texto que aposta que a grande contradição é o imperialismo, e não fala tanto de capitalismo. É uma peça muito mais antiimperialista que anticapitalista. Então eles reescreveram vários momentos e o fim da peça está reescrito também.
José da Silva, enfim, vai comer. Chega um entregador, e se me lembro bem era uma empresa chamada “Me fudi”, “My food”, algo assim. O entregador entrega a comida. O José da Silva começa a comer. Morre. Volta o entregador porque esqueceu algo. Ele percebe a morte. O José da Silva está com a cara no prato. Ele levanta a cara do José da Silva, limpa, pega o prato e começa a comer o que sobrou da comida do José da Silva. E talvez seja esse o personagem hoje. Ao mesmo tempo eu acho que a gente vive em tempos muito desesperados, é verdade, mas eu não sou a favor de fazer peças que só redobrem o desespero, peças niilistas, mesmo se estamos numa situação bastante niilista.
Pelo que vejo, aqui em São Paulo tem uma organização de trabalhadores de aplicativos que não é pouca coisa, pelo que entendo e pelas imagens que vejo de 400, 500 motos bloqueando as estradas. São coisas que acontecem e que é lindo de ver. Então, a questão é tanto ver a nossa dominação como ver que ela não acabou o seu ciclo, ela não se fechou em si mesma. Então uma peça de hoje teria que levar em consideração essas duas coisas juntas.
Maria Rita Kehl – Tem outra frase que eu achei muito boa também [no mesmo capítulo 7, tópico “Zeitgeist em tempos de expectativas rebaixadas : do Che ao microempreeendedor”, que é a seguinte: “A febril atividade dos trabalhadores e microempreendedores para ‘se darem bem’ é indissoluvelmente ligada a uma passividade incólume”. O que é passivo nessa febril atividade? Se ele é tão ativo, como ele pode ser passivo? E, em termos da psicanálise, eu fico pensando se atividade e passividade não têm a ver com o quanto o sujeito faz coisas ou não, o quanto ele corre, o quanto ele faz ginástica etc. A passividade tem a ver com o quanto ele está submetido ao outro, mesmo que não seja submetido como escravo. Até pior, o escravo que, debaixo de chicote, trabalha febrilmente, mas ele está menos submetido subjetivamente do que esse que trabalha febrilmente submetido a um ideal de ser empreendedor de si mesmo.
Isso que vendem como uma glória para os desamparados, para os desempregados tentarem montar seus pequenos pontos de trabalho, e acho que a Uber é o exemplo mais dramático disso. Uma vez peguei um motorista que estava dormindo no volante. Eu paguei exatamente o que estava marcado, mas desci e falei para ele ir para casa. Então, a passividade talvez tenha a ver com essa alienação que faz o cara entrar num rebanho em que ele é explorado achando que ele é winner (vencedor).
Enfim, era um comentário que eu queria fazer usando um pouquinho da psicanálise, de que a passividade é uma posição subjetiva, não é o quanto ele se mexe, o quanto ele corre.
Julian Boal – Nos anos 1970 tinha todo um discurso, toda uma teoria anti-espectatorial. O [psiquiatra, filósofo e escritor martinicano] Frantz Fanon [1925-1961] escreve que “Todo espectador é um covarde ou um traidor”. O poeta [também martinicano] Aimé Césaire [1913-2008], se estou bem lembrado, falou: “Oh minha alma, nunca me deixe ocupar a posição estéril de um espectador, pois um mar de dores não é uma cena e um homem que grita não é um urso”.
Então, tinha toda uma posição anti-espectatorial que ia da arte – como o Aimé Césaire em uma das pontas – para a questão política. Mas hoje em dia, quando a gente vê essa atividade febril, eu me pergunto como está o teatro em São Paulo. Eu tenho uma ideia de como está no Rio de Janeiro. Mas tem um negócio que é muito comum a todas as peças que estou vendo: é a necessidade de ser num ritmo alucinado. Tem uma preocupação em não deixar a peteca cair em nenhum momento, em nunca deixar o espectador quieto, em utilizar novos recursos a todos os segundos, o que é uma coisa alucinante. E isso reproduz coisas que a gente vê no Facebook, nos Reels, mas acho que mais ainda, uma reprodução talvez não tão consciente assim, de uma velocidade acelerada da própria vida. Depois da pandemia, teve uma aceleração brutal no Rio de Janeiro. Eu vejo isso na vida das pessoas que já não têm mais tempo para nada. E nem no teatro a gente tem o momento do calmo, o momento de estar quieto.
E isso me fez pensar numa entrevista que eu li de um diretor francês chamado Bernard Sobel, um cara que vem de um meio bastante popular e que, graças ao Partido Comunista Francês, que organiza uma viagem para conhecer a Alemanha do leste, ele que não tem nada de intelectual, acaba num ensaio do Brecht. E aí perguntaram para ele, que aos 15, 16 anos tinha visto o ensaio, o que ele tinha achado. E ele respondeu: “Eu nunca teria imaginado que houvesse um lugar no mundo tão calmo quanto este”. E pensar isso, a necessidade de dar momentos de calma talvez seja uma necessidade política hoje interessante, e que não era nos anos 1970.
Marco Antonio Rodrigues – Primeiro, obrigado pelo convite. E, segundo, vou explicar por que que eu bolei algumas coisas. Ter uma mesa com o Julian, o Douglas e a Maria Rita é complicado. O livro do Julian tem uma densidade que, para mim, particularmente, é difícil alcançar porque eu não tenho intimidade com o teatro do oprimido, a não ser como espectador e como estudioso. Eu nunca fiz teatro-fórum e como o livro trata muito disso, eu queria tratar em volta de algumas coisas.
Eu não conheci o Augusto Boal, a não ser numa breve oportunidade, quando fiz parte de um grupo que o entrevistou para uma reportagem de capa da revista Caros Amigos [edição n° 48, março de 2001, “Eu acho que meu exílio não acabou”]. Mas eu sou fã da família também, da Cecilia, do Fabián, do Julian.
Sou fã do Boal, já encenei algumas coisas, tenho alguma intimidade com a dramaturgia dele e admiro muito. Encenei Revolução na América do Sul; Tio Patinhas; Crônicas de Nuestra América e, recentemente, um trabalho que continua em cartaz com meu camarada Rogério Bandeira [monólogo ‘Hamlet: 16 x 8’] sobre a autobiografia do Boal, que é o Hamlet e o filho do padeiro [Editora Record, 2000].
O Boal é um sujeito que, sem nunca abdicar da perspectiva de um teatro popular, manteve sempre na sua prática dramatúrgica um sentido crítico que geralmente nadava contra a maré das pautas, digamos, progressistas. E o “exemplo exemplar” acho que era a Revolução na América do Sul, escrita em 1960, período da pré-ditadura militar, em que se apostava firmemente numa tomada de poder pelas classes trabalhadoras, no mínimo, para que a gente constituísse uma república trabalhista.
Em suma, era uma época em que o trabalhador era muito louvado, muito incensado, quase como um novo homem do Guevara, uma coisa do gênero. E, na peça, o protagonista é um anti-herói da classe trabalhadora que vai ser enxovalhado, esculhambado durante duas horas. E numa chave sempre cômica. Uma coisa que é importante fazer é uma comparação com o hoje. E o Boal diz na sua explicação sobre a peça, que acho que funciona quase como um prólogo: “Pelo visto, a peça não contém nenhum personagem positivo. Mas será necessário? O negativo já não contém em si o seu oposto?”. E completa: “Eu quis apenas fotografar o desastre”.
Essa coisa que você estava falando de sempre estar tentando olhar criticamente aquilo que é o real ou aquilo que está supostamente apresentado como real, é uma posição dele, com Tio Patinhas e em toda a dramaturgia dele, acho que sempre aparece essa coisa um pouco do remar contra a maré, sem deixar essa radicalidade revolucionária, se é que essa palavra ainda faz sentido. E até o teu subtítulo [para Julian] é muito irônico: “ensaio da revolução” e “técnica interativa de domesticação de vítimas”.
Bem, o Julian me pediu para comentar uma seção que vai da página 55 até a 66 do livro [“Crítica à hierarquia legitimada pelo poder”]. Então vou tentar resumir um assunto que eu acho que é bastante complexo porque esse lugar trata basicamente do conceito de opressão. Ele vai levantar as críticas feitas ao teatro do oprimido por alguns intelectuais.
Um exemplo é a fala do criador do teatro do opressor que sugere que o opressor fotografado com o pé no peito do homem deitado no chão faça uma espécie de reflexão crítica e, ao retirar o pé, poderá perceber que estava inadvertidamente oprimindo. Assim, se os padrões de comportamento fossem modificados, os problemas poderiam ser resolvidos sem qualquer mudança estrutural. E o Julian aponta de forma irônica: “Bastaria ao policial não sistematicamente revistar jovens negros para o Estado Brasileiro já não ser mais racista”.
É uma digressão daquele documentário nostálgico O fundo do ar é vermelho, de 1977 [do diretor francês Chris Marker, 1921-2012). A locução aponta que o final da URSS se constrói primeiro sob a epígrafe dos direitos humanos; expressão que é imediatamente substituída por economia de mercado.
Paradoxalmente, estes dois conceitos vão se fundir e a utopia socialista vai ser substituída pela utopia dos direitos humanos, causa que vai ser abraçada por uma nova esquerda. E quem está dizendo isso não sou eu, é o [filósofo] Paulo Arantes, num ensaio interessante sobre isso. No mesmo Fundo do ar é vermelho, o capitalismo ganha uma batalha, senão a guerra, quando o conceito e o perigo do terrorismo substituem o comunismo. Assim, qualquer ato mais radical como de outrora – e o filme acaba assim –, o sequestro do embaixador americano como forma de libertar os jovens revolucionários brasileiros submetidos à tortura não é, hoje, sob mais nenhum aspecto aceitável.
Então, o Estado sem soberania tem o seu papel limitado ao gerenciamento das coisas do capital. E a política de diminuição de danos é o que sobrou mesmo para os governos democráticos, populares etc. E o horizonte é esse mesmo, é o que está rebaixado. E o capital, por sua vez, a partir da política de direitos humanos, se torna aparentemente mais dócil ao incorporar as pautas inclusivas. Multiplicam-se, por exemplo, as empresas ESG, vulgo acessibilidade, inclusão e ecologia, adotando políticas e técnicas humanistas.
De outro lado, isso se junta à participação e à opinião individual, ou de grupos assemelhados através da internet e das redes sociais. Isso cria uma aparência de um ambiente de franca colaboração e de um estatuto comum ao mercado e ao indivíduo. Os comportamentos ou os padrões de comportamento podem ser regrados supostamente caminhando-se para um ambiente no futuro em que a “opressão” já não tenha mais lugar. Então, a gente já podia tirar essa palavra do vocabulário porque já não existe mais “opressão” e está tudo acordado.
É de se notar que essas empresas ESG, que são tão festejadas, aplaudiram e incorporaram rapidamente as reformas trabalhistas feitas por este governo e pelo governo do golpista anterior [de Michel Temer], que tanto prejuízo trouxeram aos trabalhadores.
Talvez aquela famosa frase da Margaret Thatcher [1925-2013], de que “não existe sociedade mas, sim, indivíduos e suas famílias”, que é o mandamento central do neoliberalismo, de acordo inclusive com a coisa do empreendedorismo, nos últimos 40 anos, talvez esteja superada, talvez não existam mais famílias, talvez existam apenas os indivíduos. Talvez essa seja uma boa pista para entendermos os potenciais de reflexão sobre essa crítica do teórico francês Bernard Dort (1929-1994), que eu não entendo direito. Mas ele é um crítico importante e vai fazer uma crítica sobre o teatro do oprimido em que diz que o indivíduo passa a ser personagem. Ou seja, ele entra num campo ficcional que acaba por contaminar a própria consecução daquilo que se queria.
Os avanços de direitos humanos ou de um ambiente mais tranquilo podem criar uma certa atmosfera de aparência mais saudável, mas o fato é que as condições de vida para a maior parte da população continuam extremamente duras. E você fala isso [para Julian], inclusive os governos ditos democráticos se aproximam em suas práticas de governos, digamos, mais autoritários. E, de certa forma, existe uma intransigência mesmo dos governos democráticos com relação a quaisquer atos que ameacem esse estado de direito.
E o estado de direito é um suposto lugar de uma absoluta estabilidade institucional que, de certa forma, reúne tanto a direita quanto a esquerda nesse momento. Vemos inclusive na escolha dos vices e das vices dos candidatos e como é que isso se dá. Qualquer divergência pessoal é punidade pelo estado, pela sociedade, pelos ativistas, pela opinião pública em comum acordo. Parece que tudo gira em torno de um reordenamento mais civilizado do mercado. E talvez, nesse sentido, a palavra “opressão” ganhe outros contornos, mais complexos. Porque mais fluida se torna, mais difícil de ser reconhecida.
E acho que isso nos leva um pouco para a segunda seção desse comentário, que aborda “A busca por um teatro subjuntivo” [no capítulo 9]. O título é esse. Aquela expressão famosa do [ensaísta e crítico alemão] Walter Benjamin [1892-1940], de que “nós vivemos num estado de exceção” me parece que é o norte desse pedaço. Se é verdade que o estado de exceção vem passando por um conjunto de modificações que visa a sua naturalização, de forma a que, deixando de se apresentar como estado de exceção, se torne o estado possível. Então, o futuro já não existe, e é isso aí, vamos que vamos, toca o barco, não tem utopia nem distopia, tem um horizonte arrasado. Aquela coisa: tudo se modifica para tudo continuar estruturalmente como é.
Dessa forma, a necessidade de atualização. A sensação que eu tenho, Julian, é de uma profunda e generosa angústia tua com relação à necessidade de produzir uma crítica do próprio sistema e das práticas históricas do teatro do oprimido, que leve à possibilidades reais e efetivas de luta no momento. Digo isso porque não deve ser fácil produzir uma crítica tão substancial a um sistema que é uma prática recorrente em todo o mundo.
Julian Boal – E inventada pelo meu pai, né?!
Marco Antonio Rodrigues – De novo, vem a figura do Benjamin que, ao falar sobre a crítica de arte, defende que ela seja acima de tudo uma construção artística a partir de um objeto artístico relevante. Ou seja, uma coisa deságua na outra.
Aqui, a proposta do Julian é de que o teatro do oprimido ultrapasse a forma dramática com que é praticado e evolua de encontro ao teatro dialético como forma de superar os conteúdos individuais que determinam as relações do teatro dramático, trazendo, na consecução das cenas, um certo caráter heroico, portanto, enganoso na realidade de hoje. A prática dialética vai permitir uma conscientização e um reconhecimento da dinâmica das forças opressoras em suas formas mais sutis que agem sobre o indivíduo. Ou seja, o indivíduo se colocando em causa também como fator de opressão. E acho que é muito curioso isso, nesse momento em que a gente tem mocinhos e bandidos.
Nesse sentido, talvez, a boa e a má notícia é que o épico contém o dramático e que as técnicas tradicionalmente utilizadas pelo teatro do oprimido se recompõem e se espraiam. Só que o dramático aqui tem outro lugar: ele vai construir alianças com outros oprimidos no sentido de responder a situações concretas dadas socialmente e na vida daquele indivíduo. As cenas não evoluirão para um final dramático e redentor, mas para a estrutura do teatro dialético – que é composto de frações e fragmentos –, uma série de situações que lidam com circunstâncias e com antagonistas em que as alianças são possíveis, dadas às proximidades. E, nesse sentido, acho que é muito avançada essa tentativa de fazer quase uma coisa transcultural.
Citando o Julian: ” Aqui os possíveis aliados seriam figuras atravessadas de tais contradições que, mesmo que elas ajudem a contradição antagônica a se manter, não seriam elas mesmas antagônicas”. E isso eu acho muito interessante e sutil. O pressuposto é de que a dialética ainda exista e seja intrínseca à instabilidade e à contradição dos processos de opressão, explorando de forma segmentária essa contradição, essas falhas. Se aparentemente o mundo está dado, trata-se de desmistificar essa imagem construída e que faz parte dos mecanismos centrais de opressão e, assim, de descobrir e revelar os mundos a se construir.
Acho que a esperteza do sistema é a da apropriação da forma hegemônica e dita patriarcal como elemento crítico a ser desconstruído em sua periferia, não em sua estrutura. Seus instrumentos para tanto passam por dividir e segmentar a sociedade de acordo com sua natureza ou de gênero, ou de raça, ou de crenças, que vão desde as religiosas até as alimentares. A segmentação da segmentação dentro dos próprios gêneros, ou raças, ou crenças, multiplica a potência das divisões de forma dramática. O capitalismo revigora, assim, a sua velha promessa de liberdade, igualdade e fraternidade, que é a única mercadoria que ele não pode, de fato, entregar. Mas que, por mágica, parece agora ser horizontalmente possível a todas as pessoas.
Na sociedade pós-moderna não haveria espaços e territórios sociológicos de intersecção, diálogo e interesses comuns da mesma forma que o humor, a ironia e a paródia não tenham lugar mais na cena, que é bem-vista enquanto prédica moralista e, em último caso, dramática. Às vezes eu me sinto, no teatro, entrando numa igreja evangélica, onde eu vou lá confirmar a minha crença. O único território comum a tudo é o do mercado e o do capital que reinam absolutos e por aí deve caminhar o reordenamento da sociedade.
Refletindo na proposta, me parece que ela sabiamente vai contra as generalizações absolutistas que reduzem as relações e as mazelas sociais ao abstracionismo dessas formas-sujeito, que têm por objetivo eliminar do horizonte a luta de classes. A tarefa gigantesca que ao teatro do oprimido é dada, pela revisão do Julian, me parece, é despir de forma dialética essas contradições de maneira a identificar de jeito para onde caminhou a palavra “opressão”, como modo contínuo e estrutura basilar do sistema, tendo como aliado a indústria cultural, que segue firme e forte.
Julian Boal – Esse pedaço que eu pedi para o Marco Antonio ler trata da dramaturgia do teatro-fórum e pensando que dramaturgia é ideologia, ideologia no sentido de percepção do mundo e também de proposta política frente a esse mundo. E acredito que muito da proposta do meu pai, como eu estava dizendo, é uma proposta que está ligada à luta armada. Ele começa a inventar o teatro-fórum num momento em que também estava escrevendo várias peças sobre a luta armada, tanto essa dramatização do diário de Che Guevara, como a peça de Tiradentes, mas outras peças também. Ele faz a Feira paulista de opinião, que depois vai chamar de Guerrilha teatral. E ele mesmo faz parte da ALN, a Ação Libertadora Nacional, do Carlos Marighella.
Então, acredito que ele aposta muito na luta armada, que tinha como ideia central essa ruptura radical de ser de certo modo espetacular, e tinha que ser vista pelos outros, para poder impressionar e ocorrer essa cristalização em torno do núcleo de luta armada. E isso não era totalmente louco naquela época. A gente pode ter críticas a isso, e é importante criticar essa época, mas a gente tem de lembrar também que houve a Revolução Cubana [1953-1959], que haviam outras liberações nacionais em vários continentes. Aquilo era embasado, de certo modo, no próprio real. E nisso acho que meu pai foi bastante genial por fazer uma transposição dessa transição política à técnica teatral. Assim como em outra parte eu discuto como acho que dentro do teatro do oprimido ocorre uma transposição da crítica ao perceber técnicas teatrais.
Só que no mundo onde não existem mais essas lutas de liberação nacional, em que essa figura do herói não aparece como ligada a Che Guevara, mas ligada mais a esse microempreendedor, o que se torna desse mesmo dispositivo? O que que ele vira? Então, é pensar o teatro do oprimido como uma forma de teatro político sabendo que todas as palavras de ordem, todas as formas de organização são suscetíveis de produzir o seu contrário em outra conjuntura. E acredito que hoje seja exatamente isso que a gente esteja vendo em vários casos. E que o que a gente vê quando se respeita as regras de teatro-fórum, em muitos casos, é uma reprodução da dominação.
Outro exemplo, que foi uma espécie de epifania negativa só para mim. Eu vi uma peça na Áustria, num festival de teatro do oprimido em que tinha pessoas do mundo inteiro. O maior festival europeu que já existiu de teatro do oprimido, com grupos da Índia, da Armênia, enfim, de países em que eu nem imaginava que existia teatro do oprimido. A gente viu uma peça feita pelo grupo que estava acolhendo todo mundo. Uma peça de teatro do oprimido muito simples: um homem espera o jantar, a mulher vem servir nesse momento o telefone dela toca. Ele fica nervoso, cada vez mais nervoso, até bater na mulher. É uma peça de teatro-fórum, portanto, vamos pedir intervenções. Primeira intervenção sobre o que fazer: uma mulher da plateia coloca o telefone no modo avião e, portanto, o mesmo não toca. Logo, a questão da violência doméstica foi resolvida graças a um subterfúgio tão simples.
Na segunda intervenção, a mulher tinha preparado o prato predileto do marido e – no meu entendimento – oferecia sexo para não apanhar. E isso seguiu, até o momento em que eu fiquei puto porque eu trabalhava com a outra pessoa para quem o livro é dedicado, que é uma feminista e materialista francesa, e que torceu o teatro do oprimido para poder dar conta da violência doméstica. Eu fazia parte de um grupo francês que trabalhava com ela e todos nós do grupo dizendo: “Não é bem assim”. E foi péssimo de ver que as 200 pessoas que vieram do mundo inteiro, na sua extrema maioria, não viam problema ali. E eu achava que ali havia pessoas muito honestas, de luta, mas elas não conseguiam pensar a dramaturgia como metodologia e pensavam que uma forma única podia dar conta de todos os problemas do mundo.
Comecei a ver isso como um problema e passei a pensar em quais outras formas a gente pode imaginar. Pensei numa forma de dramaturgia que não se trata de um confronto direto entre eu e o meu grande opressor. E acho que essas formas tendem a reduzir a relação de opressão na relação entre indivíduos, e não ver isso como uma estrutura da sociedade, mas de tentar pensar a dificuldade de fazer alianças. Não mais em confronto com meu grande opressor, mas numa tentativa de fazer alianças. E aí sim resgatar um jeito de pensar a opressão. E citando o meu pai como uma pessoa que ao mesmo tempo é um subversivo e uma pessoa submissa. E de ver como numa tentativa de alianças dessas contradições são jogadas sem o nível individual, mas tentando refletir coisas um pouco maiores.
Estou me lembrando de moradores da favela do Vidigal, no Rio de Janeiro, que faziam um espetáculo de teatro-fórum que ajudei a construir. Um lugar que tem uma vista extraordinária e que, há dez anos, quando tinha dinheiro, tinha gentrificação na própria favela: pessoas que compravam dez casas e faziam um clube de jazz com uma vista fantástica e com o frisson de você estar indo para a favela. Um dos personagens que eles colocaram em jogo era um mototáxi, que por um lado nunca tinha ganho dinheiro desse jeito – graças a esse clube de jazz –, mas que ao mesmo tempo nunca tinha pago um aluguel e talvez ia perder a casa porque um outro norueguês ia comprar outras 30 casas para fazer um spa no meio da favela. De um lado, ele não podia deixar de ganhar esse dinheiro e, ao mesmo tempo, ele não podia viver com a perspectiva iminente de ser jogado fora dessa comunidade.
Numa outra comunidade, a peça que eles criaram foi um personagem que queria lutar contra a violência policial mas, ao mesmo tempo, tinha medo de se expor à violência policial. E como é que se constrói a partir daí, para além de uma questão muitas vezes moralista, que vejo dentro do teatro-fórum no sentido de eu posso, eu quero e basta eu querer, que é uma reprodução da ideologia da Nike. Ou de lutar contra o racismo, just do it, mas que não é tão fácil assim. E como é que a gente mantém tantas intervenções individuais como uma forma de dramaturgia que tente dar conta do fato de que as relações de opressão não são somente as relações entre indivíduo: um bonzinho e um maldoso.
E isso que você falou [para Marco Antonio Rodrigues], eu não tinha me atentado como essa forma de teatro do oprimido, de um teatro-fóum que seja muito redutor cai muito bem, cai como uma luva, nesse tempo que é de bonzinhos e malvados. Da não construção de alianças. E não que eu pense que qualquer aliança seja boa. Que fique registrado.
Douglas Estevam – Eu acompanho a Brigada Nacional de Teatro do MST, que se formou num trabalho conjunto com o Augusto Boal, em 2001, quando a gente iniciou um processo de formação que resultou na criação de 40 grupos no Brasil inteiro. Trabalhamos com o Boal até 2005, quando fizemos uma última intervenção numa marcha em Brasília, que atingiu mais de 200 quilômetros marchando por cerca de 21 dias. A gente construiu então o que chama de teatro-procissão, uma intervenção com 270 pessoas do MST, camponeses e camponesas que fizeram várias apresentações teatrais, além do teatro-procissão, algo que a gente chamou também de “guerrilha teatral” feita durante toda a marcha.
O Julian me chamou para compartilhar essa experiência do MST e de outros movimentos sociais no trabalho com o teatro do oprimido. Para começar, compartilho do que a Maria Rita e o Marco disseram sobre a dificuldade de falar sobre o livro, pela densidade. E ele é realmente muito denso, e não só na abordagem, na temática, mas na variedade dos temas e na articulação entre eles também.
O autor dá prova no livro de algo que é
muito tocante também: uma verdadeira honestidade intelectual. Ele não poupa
críticas aos aliados. E é uma atitude muito honesta. Quando traz a tentativa de
dialética no que ele propõe, de uma superação da dramaturgia do teatro do oprimido,
essa dialética partindo das contradições, ele não a anula na sua elaboração e
mesmo na análise com os companheiros de luta com os quais foi construindo essa
trajetória. Então, é de uma densidade e de uma honestidade intelectual muito
grande. E, além dessa densidade, ele consegue escrever muito bem também.
Eu tive o prazer e a honra de compartilhar de muitos dos diálogos sobre o
livro, desde quando o Julian começou a pensar em fazer a tese. Nos
agradecimentos ele até coloca sobre as nossas conversas ainda não terminadas. E
acho que a ideia da minha colocação aqui é um pouco continuando esse
diálogo.
Lembro que um dos nossos últimos encontros de trabalho com o Augusto Boal foi muito marcado pelo limite que apresentávamos de trabalho com o teatro do oprimido, que era a principal forma que tínhamos trabalhado com ele em alguns anos. No final, trabalhamos com outras formas, o próprio teatro-procissão, que ele não coloca dentro do teatro do oprimido, mas que também fez com a gente; teatro jornal; e outras referências que a gente tinha do teatro invisível, que fizemos muito também; e o arco-íris do desejo em uma das etapas.
É impossível abordar o livro inteiro, mas eu queria fazer alguns comentários. Ele faz uma análise muito aprofundada do que foi o Teatro de Arena, recuperando a influência disso no teatro do oprimido. Faz uma análise do que foi o CPC, o Centro Popular de Cultura [da UNE, fundado em 1961 pelos jovens dramaturgos Oduvaldo Vianna Filho e Chico de Assis]. Faz uma crítica da divisão do trabalho e baseia isso numa análise de Karl Marx [1818-1883] muito bem-estruturada. Ele entra numa análise do modernismo, da arte de vanguarda. São muitos níveis de mediação que estabelece para fazer uma análise das formas estéticas do teatro do oprimido.
Nesse último encontro que a gente teve com o Boal foi muito em termos de contradição, de um foco do nosso trabalho, no sentido dos limites do teatro-fórum. E o Julian tenta responder a esses limites abordando uma multiplicidade de dimensões dessa dinâmica histórica que configura a forma do teatro-fórum.
Ele terminou a tese de doutorado em 2016, no momento da consumação do golpe contra a presidenta Dilma [Rousseff, do Partido dos Trabalhadores], golpe cujas consequêncais a gente vive ainda hoje. Na introdução, o autor já começa assim: “Vim da França para o Brasil com o intuito de fazer uma tese sobre o uso do Teatro do Oprimido (TO) pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A ideia era simples: encontrar no movimento social a forma enfim achada do “verdadeiro” uso do TO. Aproximar-me do foco ardente da luta para nele encontrar as armas, teatrais, forjadas a fogo tão abrasador que poderia eu utilizá-las para digladiar com outros grupos que fazem do TO algo que mais se parece a uma Adestração Interativa das Vítimas. (…) O MST já não fazia tanto TO assim, ou qualquer outra forma de ação cultural”.
O livro tem um diferencial em relação à tese, porque ele acrescenta outros materiais que chama de Epílogos [seis tópicos após as Considerações finais], mas que eu acho que seriam mais como anexos. Um dos temas que ele tenta destrinchar com mais força é a dramaturgia do teatro-fórum e a proposição de uma dramartugia dialética como um meio de superação de uma dramaturgia dramática que caracteriza o teatro-fórum.
Quando o Boal formula o teatro do oprimido, ele o pensa como um conjunto de várias técnicas diferenciadas, que ele chamava de “arsenal do teatro do oprimido”. A primeira dessas formas teria sido o teatro jornal; depois trabalhos com teatro- imagem; teatro-fórum. Depois desenvolveu outras técnicas na Europa e quando voltou ao Brasil, na conjuntura eleitoral, desenvolveu as técnicas do teatro-legislativo. Então, [trata-se de] uma série de experiências formais que respondem a conjunturas específicas. Só que o Julian se atenta principalmente à experiência do teatro-fórum e à dramaturgia do teatro-fórum. A gente tem pouca análise dessas outras experiências do teatro do oprimido. E o Julian fala sobre como o teatro-fórum se tornou mercadoria do teatro do oprimido, de venda e de troca.
Em nosso último encontro com o Boal, em 2005, a gente estava trabalhando muito também com a [professora e pesquisadora] Iná Camargo Costa, desde 2002 com a Brigada de Teatro do MST. E, naquele momento, conversando com ela sobre os limites e as dificuldades com o teatro-fórum, ela nos dizia que era extremamente difícil fazer uma crítica ao Augusto Boal. E aí ela indicava uma série de condicionantes dessa dificuldade, uma delas no meio acadêmico também.
Acho que é importante destacar a capacidade organizativa do Julian de articular afinidades críticas nesse universo do teatro do oprimido que ele descreve aqui e analisa criticamente. O José Soeiro fala, na apresentação, que o Julian talvez seja a única pessoa que tenha condições de fazer uma crítica como a que ele faz ao teatro do oprimido, e ao teatro-fórum principalmente, por toda a experiência que teve tanto com o Augusto Boal quanto por acompanhar essas experiências no mundo inteiro.
Ao mesmo tempo que é uma crítica muito profunda, muito estruturada e radical, ao mesmo tempo é um ato muito fraterno. É um gesto de amor também. Ele vai fundo na crítica, mas nós vemos como isso ainda se torna um desdobramento desse projeto que o Boal formulava, a gente vê a continuidade disso. Então, quando o Julian tenta fazer essas análises dos limites e dificuldades de se fazer um teatro-fórum dentro do esquema do teatro do oprimido, uma das questões dessas várias mediações que ele coloca são as mudanças no mundo do trabalho, a própria questão do limite da referência dramatúrgica que o Boal havia formulado. E esse elemento, que eu queria destacar no livro, embora não apareça tão bem-estruturado ou com tanto peso quanto os outros, eu vou chamar de “espetacularização da participação”.
O autor faz uma análise do mundo do trabalho, uma análise das mudanças dos sujeitos políticos nas formas de organização e ele também toca numa mudança cultural do capitalismo dos anos 1970 para os anos 1980. Vai buscar também na lógica cultural do pós-modernismo como a lógica cultural do capitalismo tardio, e analisa o que o [crítico literário e teórico marxista estadunidense] Fredric Jameson chama de uma expansão vertiginosa do campo da cultura.
Nas palavras do Jameson: “A produção estética está integrada à produção de mercadorias em geral” [no livro Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio]. E ele cita como a produção de mercadorias incorporou a inovação, o experimentalismo estético como uma determinante da produção de mercadorias. Essa expansão do campo cultural e essa outra função, que o Jameson fala também, da dimensão estética.
E, desenvolvendo essa parte, o Julian retoma [o sociólogo e filósofo alemão] Herbert Marcuse [1898-1979] e cita que as formas de dominação ou a dominação também têm uma estética própria. Então, ele aponta para limites que vão para a dimensão estética e cultural para além do próprio fazer teatral dentro do grupo ou dentro da sala de ensaio ou da intervenção. Ele aponta para dimensões que extrapolam a obra em si e vai trazer muito isso também quando analisa no capítulo três do livro [Sucinta definiçao do TO], sobre as possibilidades e alternativas – uma parte dela está dedicada a refletir acerca de experiências concretas no trabalho.
Teria outras que poderia mencionar, mas ele pega principalmente duas: o Jana Sanskriti [em português, Cultura do Povo], um movimento político na Índia que se constituiu a partir do trabalho teatral, e o Óprima!, uma articulação com alguns grupos em Portugal, entre grupos de imigrantes vindos de colônias portuguesas na África, estudantes precarizados [ambos no capítulo 8, Exemplos não modelares: contra o TO bem feito, aquele bem adaptado].
Algo que se destaca nessa análise que o Julien faz é de como a dinâmica social se transfigura na estrutura formal. No Jana Sanskriti, de como havia uma negação de formas anteriores de organização partidária, do Partido Comunista, e de como, ao perceberem formas de manifestação cultural popular – embora talvez não seja esse o termo que eles usem na Índia –, o Jana percebe essa dinâmica cultural e a partir dela constrói um movimento teatral. É um teatro-fórum, um teatro do oprimido que vem muito da incorporação da experiência cultural local.
E, em relação ao Óprima!, de Portugal, é como a dinâmica política do momento, pós-crise de 2008, pós-Primavera Árabe, quando aquilo ainda era visto como uma perspectiva emancipatória, a crise da União Europeia, a mobilização dos estudantes contra as reformas estudantis, as maiores greves em Portugal desde a Revolução dos Cravos [1974]. Então, ele aponta como essa dinâmica histórica dava forma para esse movimento do Óprima! em Portugal. E fala que a força vinha mais dessas dinâmicas exteriores do que do próprio teatro. E o avanço do fazer teatral se dava em correlação com essas outras dinâmicas.
Na compreensão de organização do MST – e acho que isso diologa com a experiência que ele propõe nas alternativas –, há uma compreensão do próprio processo organizativo como uma dimensão cultural. Quando a gente entendeu o que seria a dinâmica organizativa do MST, a proposta organizativa do MST é a compreensão de que uma certa cultura política se constitui a partir do processo organizativo mesmo, que configura experiências de vivência que formam uma outra subjetividade, que constituem um outro modelo cultural ou uma outra referência cultural que está para além de obras, de uma obra de arte ou de um grupo específico de artistas, mas como o próprio processo organizativo se constitui numa referência cultural.
Isso que o Julian já aponta em um dos limites do teatro-fórum e como encontrar em outras dinâmicas da vida nessa estetização do mundo, do capital, nessa ampliação do campo cultural, como também as lutas sociais, os movimentos populares incorporam, incorporaram ou tentam incorporar a dimensão cultural como elemento constituinte das suas formas de organização e de seus projetos de sociedade.
No livro, o Julian, em algum momento, fala de como chegou aqui sem vínculos com uma militância e sem vinculação com grupos. Nesses textos finais, que ele chama de Epílogos, escritos em 2016, 2019 e 2020, que pegam outro momento da experiência, ele termina falando dessas alternativas, como a Escola de Teatro Popular [ETP] e de teatro político da qual ele é um dos coordenadores no Rio de Janeiro. Então, ele inicia esse último texto falando das escolas e das experiências que fizemos conjuntamente no MST, no encontro internacional que a gente fez no Rio de Janeiro e depois na Escola Nacional Florestan Fernandes [ENFF], do MST, e como conseguimos reinventar formas de trabalho com a referência do teatro do oprimido, com o seu potencial crítico, a partir das escolas, recriando essas formas de organização. E traz muito disso que ele já aponta no livro, de como essas organizações sociais traziam em si também uma referência cultural organizativa, e que isso veio para dentro das escolas também.
O livro marca também essa mudança histórica nesses dez anos em que o Julian esteve aqui, de como ele chega com uma expectativa em relação ao MST e como o livro termina apresentando uma outra resolução dessa expectativa quanto ao movimento, nessa construção coletiva das nossas experiências com o teatro do oprimido.
Julian Boal – Retomando algumas coisas que o Douglas falou, em muitas passagens foi colocada a palavra crítica. Então, vou fazer elogios ao meu pai aqui. Acho que ele teve uma genialidade de transformar o que eu chamei de hipóteses emancipadoras da esquerda em técnicas teatrais. Então, quando o meu pai fala que “todo mundo pode fazer teatro, até mesmo os atores”, ele está dialogando com uma hipótese emancipadora da esquerda, que é o fim da divisão social do trabalho.
Essa frase, claro que ela tem a ressonância de outras citações do Marx que eu poderia citar, mas a mais curtinha é: “Numa sociedade comunista não haverão pintores, somente haverão indivíduos que, entre outras coisas, pintarão”. Então, ele transformou isso numa prática teatral: de como fazer do teatro uma prática não especializada, uma prática que todo mundo pudesse exercer, a não separação entre arte e vida. E que a gente pode pegar textos do [russo] Leon Trótski (1879-1940), e que são lindos, sobre como a arte retomará o mundo, sobre como todos os objetos serão trabalhados a partir da perspectiva da arte. Só que isso que ele está falando, na verdade, já se realizou sobre a forma do design.
Então, parte da minha tese é ver como essas hipóteses emancipadoras da esquerda de certo modo já foram realizadas, só que de forma perversa. E que a gente pode fazer o exercício prático. Eu não sei se vocês pegam Uber, a ponto de conversar com o motorista e perguntar qual a profissão dele. E ele vai dizer que é Uber e faz também outra coisa. Eu não sei das pessoas aqui presentes, mas poucos são os que têm certeza que na vida inteira só exercerão uma profissão, e que não vão ter que ir de uma profissão a outra.
Lembro de uma greve dos professores da cidade do Rio de Janeiro [organizada] porque a prefeitura queria acabar com as especializações, fazer com que o professor de educação física desse aula de inglês. Então, essa abolição da divisão social do trabalho, de certo modo, por diferentes processos – mas que eu não vou explicar aqui –, existe, mas reconfigurada de uma maneira totalmente diferente daquela que a gente poderia imaginar nos anos 1970.
Essa sociedade administrada, em que seria mais fácil morrer de tédio do que de fome, eu não a vejo existindo hoje em dia, nem na periferia e nem nos países centrais. E isso afeta obviamente o teatro que queremos fazer a partir disso. A incorporação dessas hipóteses emancipadoras da esquerda em formas de fazer teatro, quando elas estão reconfiguradas, se a gente mantém a mesma forma de fazer teatro estamos batendo em outros lugares.
Outro dia eu estava vendo alguns reels, pequenos vídeos no Facebook, no Instagram, e pensando o quanto os 15 minutos de fama do [pintor e cineasta estadunidense] Andy Warhol [1928-1987] não somente foram realizados como foram ultrapassados. Hoje, 15 segundos são uma eternidade. Quinze segundos de fama para você ter 300 mil likes e que você tenta manter o próximo. São 15 segundos de fama, no máximo.
Temos que repensar as nossas estratégias de teatro para saber que tipo de teatro a gente está fazendo. Lembro de um amiga que falava em termo de “epicômetro”, que muitas vezes ia ao teatro e via grupos fazendo teatro épico, o epicômetro. Se você fala direto com o público, você ganha 15 pontos e, se tem projeção, você ganha mais 30. E acredito que não dá para reduzir em formas, em recursos, os nossos procedimentos de fazer teatro, e não quando a gente pensa teatro político. Por exemplo, quanto ao kabuki ou a commedia dell’arte você pode pensar que, sim, são formas autorreferenciais. E o teatro político, ao não se adaptar, não se reinventar constantemente em relação a essa conjuntura, o que ele faz é se tornar ridículo.
Dizia [a filósofa e economista marxista polaco-alemã] Rosa Luxemburgo [1871-1919] que a melhor maneira de criar ditaduras era transformar táticas em estratégias. No campo do teatro, transformar táticas e recursos em dogmas é um jeito de não criar ditaduras, mas somente peças que já não dialogam com o contemporâneo, com o presente. E isso é verdade para várias formas de teatro.
O teatro da crueldade [conjunto de ideias teatrais propostas pelo ator, diretor, poeta e teórico francês Antonin Artaud, 1896-1948], que se inventou há tanto tempo, se inventou talvez em momentos que não eram tão cruéis quanto os atuais. No teatro da violência, querer violentar os seus espectadores é um negócio muito comum. Na Europa, um grande diretor – cujo nome também não citarei –, que esteve à frente de um festival internacional muito importante na França, dizia que queria fazer confessar seus atores frente a um público, queria chocar pelo espetáculo da dor. Isso é fala de torturador.
Essas práticas que talvez tinham algum valor nos anos 1970, temos que repensá-las no dia de hoje. Fazer um espetáculo a fim de chocar e violentar o público podia ter algum valor nos anos 1970, nos países centrais. Mas, atualmente, nas periferias ou até mesmo nesses países centrais, qual valor se tem ao fazer um teatro violento? Estamos realmente introduzindo uma coisa nova na vida das pessoas ou a gente só está reproduzindo o cotidiano delas?
É um pouco essa questão da velocidade sobre a qual falava há pouco em relação aos espetáculos cariocas. É uma velocidade que, para mim, não critica o existente. É o contrário. Ela reproduz uma característica fundamental da nossa vida, que é de não ter tempo, de não poder se adensar. E é assim que eu consigo analisar essas peças feitas por grupos muito diferentes entre eles, grupos de favela ou o de teatro mais chique do Rio de Janeiro. Então, era esse tipo de coisa que eu estava querendo levar para o teatro do oprimido, esse tipo de reflexão.
E já que sou muito crítico, vou fazer a crítica a mim mesmo. Acho que nunca fiz um negócio que eu me apaixonasse tanto como as Escolas de Teatro Popular [ETPs]. Estamos presentes em oito cantos diferentes, conseguimos mobilizar mais de 90 pessoas toda semana por meio das nossas atividades, estamos com movimentos sociais que tentam fazer coisas interessantes. Estamos tentando retomar um trabalho de base. Mas uma crítica que eu faço ao CPC [Centro Popular de Cultura], que a gente elogia muito, mas poucas vezes analisamos as peças. Analisamos qual o programa político deles. A gente faz crítica ao PSB [Partido Socialista Brasileiro], mas não faz ao seu braço cultural. E acho que a gente faz isso porque não temos mais estratégia, não tem mais programa, não sabemos mais para onde vai. Então, valorizamos o trabalho de base.
Mas, ao mesmo tempo, a valorização do trabalho de base, em si e por si, também deixa totalmente fora de questão qual é o nosso programa, acerca do que a gente quer construir. E são questões difíceis mesmo. E a gente sabe das urgências que temos e sabe que são questões que precisamos resolver, tanto pelo genocídio do povo preto quanto pelo ecocídio que está em curso. E não vemos nenhuma organização que pensa daqui a 5, 10 ou 15 anos em como é que a gente toma o poder de Estado. Essa não é uma questão que está sendo posta.
No melhor dos casos, a eleição do Lula não vai ser o fim das contradições. E vejo muitas vezes da parte das pessoas que querem votar no PT [Partido dos Trabalhadores] uma ideia de que as contradições vão acabar assim que o Lula chegar lá. E não vai ser o caso. Vai ser um momento de aguçamento dessas contradições. E se não tem forças populares para criar algum tipo de resistência, estamos deixando o jogo ser jogado pelo outro lado.
Mas tudo isso para dizer, para fazer a crítica a mim mesmo, dizer que sim, está sendo feito um trabalho muito importante na Escola de Teatro Popular, mas não podemos nos colocar somente como angariadores de uma força popular para um programa ainda a vir, para uma reconstrução ainda a ser feita. Essas questões são de hoje e eu não sei em quais lugares elas estão sendo feitas. Se vocês conhecem, por favor, me digam.
Também não podemos cair naquilo de pensar como certas organizações pensam, no sentido de “já temos a verdade”. De que haverá uma crise que fará com que o feitiço da mercadoria se esvaia e que o povo, enfim, verá a realidade e que, portanto, virão até nós que já a conhecemos, e seremos então o líder natural das massas. Acho que a questão do programa é urgente para nós, tentei colocar dentro do último ensaio [intitulado O que fazer (com a arte)?]. Mas um último ensaio em que são só apontamentos o quanto a gente ainda não resolveu essas questões.
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Espectador não idenetificado – De onde vem essa noção de teatro emancipado em uma sociedade não emancipada?
Fernando Kinas [diretor da Kiwi Companhia de Teatro, atual Coletivo Comum] – Parabéns pelo livro. Durante a pandemia fizemos aquela conversa longa [encontro Formas críticas e populares do teatro latinoamericano, com Julian Boal e Geo Britto, pesquisador e coordenador político-artístico do Centro de Teatro do Oprimido (RJ), transmitido pela internet em 30 de outubro de 2021], mas eu ainda não li essa publicação. Me parece que tem uma ideia central e eu queria, de novo, ouvir um pouquinho sobre isso.
Antes de vir para cá, pesquisei um pouco para saber se você já tinha lançado em outro lugar, não sabia que já tinha saído. Li que o livro discute a diluição do projeto crítico do teatro do oprimido, especialmente na versão do teatro-fórum. E eu acho que não é isso, acho que é algo mais essencial, mais central, acerca de seu projeto, que vai além do livro. Queria te ouvir. O que acho mais interessante é que parece que tem uma crítica dos pressupostos e, portanto, não da aplicação futura, da deturpação ou isso da diluição crítica do projeto original do teatro do oprimido na sua versão teatro-fórum.
Outro ponto diz respeito a uma noção de macro projeto, não só em relação ao projeto artístico, ligado à realidade social. Pensando na recuperação do que a gente viveu em 13 anos [de governos de centro-esquerda com o PT ocupando o Palácio do Planalto entre 2003 e 2016], ficou bem claro o que podemos chamar de melhorismo, de possibilismo, de travestismo, se quiser. Ou seja, não se trata de um proejto da conciliação habitual, tampouco é o proejto da pedra sobre pedra, que não sobra nada, tô simplificando um pouco… Queria te ouvir a respeito disso. O que você imagina no lugar, exatamente. Aliás, você falou da questão de programa, eu levantaria o termo “hipóteses estratégicas”, e aí estou falando do [filósofo francês] Daniel Bensaïd [1946-2010], que até a morte dele se ocupou desse assunto.
Julian Boal – Por que eu pensava que era um teatro emancipado? [Respondendo à primeira pergunta]. Por razões psicológicas, psicanalíticas talvez, de uma admiração que eu tenho obviamente pelo meu pai e pelos escritos dele. E também pelas experiências concretas, de coisas que eu pude ver. Com 24 anos eu fui para a Índia, conheci esse movimento [Jana Sanskriti] que o Douglas comentou. Fiquei seis semanas lá e sai muito impressionado com o que vi. São mil camponeses que são atores e atrizes, que atuam dentro de uma organização de mais ou menos 25 mil pessoas numa população de 300 mil cidadãos.
E vi coisas que o Jana Sanskriti fez que eu nem pensava que podiam fazer tanto, [em termos] de questões estéticas. Naquela época eu morava em Paris, via resoluções de problemas que me colocavam e [a respeito das quais] eu não conseguia ver nos palcos parisienses. O Sanskriti me parecia mais avançado em relação a escrever, analisar material e abordar questões como o patriarcado, por exemplo. Para mim era um encontro das linhas paralelas que nunca se encontram. Uma organização de base muito importante.
Eu vi uma manifestação de 15 mil pessoas, todas elas participantes do Sanskriti e que vinham de povoados, alguns deles a um dia de distância de Calcutá. E pessoas que muitas vezes estavam saindo do povoado pela primeira vez. Quem deu o número de 15 mil pessoas foi a polícia local, antes mesmo das lideranças do Sanskriti, porque elas não sabiam o quanto a base estava trabalhando para fazer com que as pessoas viessem. O Sanskriti achava que viriam 3 mil pessoas, e foram mais de 15 mil. Sabendo que o partido no poder estava dizendo que os vilarejos iam queimar caso eles fossem se manifestar. Então, eles tiveram que organizar a segurança dos vilarejos para que nenhum queimasse naquele dia.
Havia muitos fatores que estavam se colocando juntos, de uma horizontalidade, de uma estética incrível, uma confrontação com os poderes locais. E foi a partir do Jana Sanskriti que comecei a querer fazer teatro do oprimido. Se desse para fazer aquilo com teatro do oprimido, então eu queria fazer. É depois disso que eu começo a ver experiências em diferentes lugares e começo a me formar politicamente e a ver que coisas que eu podia achar não eram tão simples assim como eu achava. Então teve, de fato, um ponto de partida.
E espetáculos tão impressionantes do ponto de vista estético e político também pelo fato de que essa peça sobre o patriarcado foi apresentada mais de 3 mil vezes, tornou-se massificada.
Sobre as questões do Fernando, muitas pessoas do teatro do oprimido não leram os livros, e tudo bem, porque tem pessoas que não leram mas fazem um trabaho maravilhoso, extraordinário. Essa não é a questão, que é muito mais densa do que a volta em torno de si. Vamos fazer um teatro do oprimito ortodoxo e resolver, não se e trata disso. A gente está contra a divisão social do trabalho, mas como ela se configiura hoje, como ela opera no concreto?
Tem outra citação do Marx que diz mais ou menos assim [do livro A ideologia alemã (1847), escrito com o teórico e conterrãneo Friedrich Engels]: “Numa sociedade emancipada, cada um poderá ser pescador de manhã, pastor à tarde e crítico à noite”. E isso é a realidade de muita gente. Muitos professores no Rio precisam de outro emprego porque o salário não dá para se viver. Então, ver como é que essas coisas se reconfiguraram.
Você [para Douglas Estevam] citou o Jameson, há uma tese dele de que a gente vive num momento hiperartístico, hiperestético. Essa fusão da arte e da vida se deu, só que de uma maneira perversa. Precisa entender como isso se configura nas hipóteses estratégicas para chegar no segundo ponto rapidamente.
Sim, sou um grande admirador do Bensaïd [também teórico do movimento trotskista], é uma figura fundamental para mim, entrei na organização dele, sou mais bensaidiano que trotskista. Ele escreve muito mais sobre o eclipse da razão estratégica do que sobre uma nova formulação. Ele se questiona o porquê não existe mais. Tem textos dele que são do maior interesse, mas não existem hipóteses basilares. Ele é um leninista sem leninismo, sem partido bolchevique. Ele constata e tenta analisar muito mais do que ele propõe.
Tem uma pessoa interessante, um ecologista suíço chamado Andreas Malm, que escreveu O morcego e o capital [La chauve-souris et la capitale, La Fabrique Éditions, 2020]. Um livro muito interessante, tem pontes estratégicas reais, tem objetivos. Ele diz: ok, se a gente quer falar de guerra climática, vamos pensar em modelos de guerra. E tenta resgatar o que seria o comunismo de guerra hoje. Basicamente, ele diz que o movimento ecológico já teve seu movimento grande, seu momento Martin Luther King Jr. [1929-1968], mas agora temos de chegar ao momento Frantz Fanon [1925-1961], a gente tem que colar umas bombas por aí e ver no que isso dá… Com isso não quero dizer me dê vontade imedidata de colocar bombas…
Então, sobre isso das hipóteses estratégicas, acho que é difícil abandoná-las, é difícil acharmos que esse é um capítulo fechado. Não existe resolução simples para essa questão, mas acho que precisamos colocar essa discussão porque a gente vê os sintomas dessa falta em tudo quanto é canto.
Um dos últimos textos do meu livro [Em busca da estratégia perdida?] é sobre o quanto os políticos, quando falam de cultura e de arte, só falam de dinheiro. Não tem uma hipótese estratégica na prática. E não tem uma hipótese estratégica para a arte porque não tem uma hipótese estratégica para a sociedade como um todo. É como se falássemos sobre educação só em termos de regularização dos salários dos professores, mas não vê o que a educação cria de condições para o capital, mas ao mesmo tempo como dá para pensar uma educação crítica. E tem gente pensando nisso. Mas para a arte isso não existe, e acho que é porque não está havendo um debate estratégico que pensa em cada esfera. É o leninismo. “A arte é um pequeno parafuso dentro da grande máquina da revolução”. E precisamos pensar essa grande máquina, acredito eu.
Muito obrigado por terem vindo.
Livro
Julian Boal
Hucitec Editora (SP)
326 páginas
R$ 65,00