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Reportagem

‘Encruzilhadas’ e ‘Florestania’ em Praga

Participação na Quadrienal

17.6.2023  |  por Teatrojornal

Foto de capa: Flor Dias

A escolha da participação brasileira na Mostra dos Países e Regiões como melhor trabalho em equipe com a instalação  Encruzilhadas: acreditamos nas esquinas, conforme definiu o júri internacional na terça (13), e as menções no jornal inglês The Guardian, na segunda (12), à intervenção urbana inédita Florestania, da encenadora Eliana Monteiro (SP), e à Tenda Ave Lola, montada pela diretora Ana Rosa Genari Tezza, da Trupe Ave Lola (PR), são notícias angariadas pelo país na última semana da Quadrienal de Praga, ou Prague Quadrennial (PQ), na sigla em inglês. Em sua 15ª edição, o maior evento internacional dedicado às artes performáticas e às espacialidades, visualidades e sonoridades da cena acontece de 8 a 18 de junho na capital da República Tcheca.

O alentado catálogo da participação brasileira na jornada – que acontece desde 1967, a cada quatro anos, e em 2021 foi redefinida como um festival composto por várias seções com curadoria internacional –, informa que “A PQ vê a cenografia e o desenho da cena contemporânea como uma arte interdisciplinar composta de experiências vivas, imersivas, sensoriais, que provocam um papel ativo no público”. O tema global deste ano é “Raro – Histórias raras de lugares únicos”. No sentido de pensar “a arte brotando de ideias, materiais, abordagens artísticas e práticas cenográficas que podem motivar a imaginação sobre como o mundo e o teatro poderiam ser no futuro pós-pandêmico”.

Daí o estímulo a buscar trabalhos realizados entre 2019 e 2022 que tenham contido “sementes de mudança e esperança, ou momentos preditivos, visionários, catalisadores de transformações políticas e sociais”.

Nossa condição e clima nos convidam a estar no exterior, em relação, e é nessa perspectiva que extrapolamos o espaço interno do sótão e atravessamos nosso território simbólico para nos convidar a OUVIR O INVISÍVEL. Tanto de dentro para fora, como de fora para dentro, essa frase nos provoca a ampliar sentidos e conexões, a expandir a percepção para a imensidão de seres e expressões da Terra e da arte, a ouvir a si próprio, a ouvir seu coração individual e coletivo, a se posicionar no mundo a favor da vida e da magia que nos mantêm de pé

Artistas da instalação ‘Encruzilhadas: acreditamos nas esquinas’, melhor trabalho em equipe da PQ’23

No caso de Encruzilhadas: acreditamos nas esquinas, 29 criadoras e criadores representando as 27 unidades federativas do país – gente afeita ao desenho de som, à sonoplastia, à composição e direção musical e demais derivas – colaboraram na concepção e montagem de sete esculturas sonoras, ou “oferendas sonoras”, segundo preferem, como que instaladas em diferentes pontos de um armazém numa das áreas expositivas de Praga.

Seis quartetos e um quinteto de artistas tiveram suas regiões de origem embaralhadas ou singularizadas, de maneira a conceber “a instalação sensorial, composta por uma dramaturgia de forças e partituras sonoras”, como afirmam no artigo assinado coletivamente, Materializando escutas no espaço. Isso se deu através da escuta de manifestações de diferentes culturas, referências, memórias e instrumentos.

Cocriadoras e cocriadores de distintas gerações, cujos nomes serão relacionados adiante, dissertam a propósito das oferendas sonoras que chamaram de Casulos à margem, EncruzOdu, Escuta ancestral, Floresta de cada um, Homem do Interior, OUVIR-O-PESO e Samuel.

“A sala nos possibilitou criar um espaço imersivo para o aflorar das SONORIDADES de um Brasil de muitas vozes, discursos e perspectivas, buscando instaurar, pela presença, um estado extra-cotidiano, SAGRADO. Através do ritmo com passado que transforma som em matéria, e que reúne diferentes materialidades para produzir sons, redesenhamos as linhas que estruturam o espaço”, contam.

“Nossa condição e clima nos convidam a estar no exterior, em relação, e é nessa perspectiva que extrapolamos o espaço interno do sótão e atravessamos nosso território simbólico para nos convidar a OUVIR O INVISÍVEL. Tanto de dentro para fora, como de fora para dentro, essa frase nos provoca a ampliar sentidos e conexões, a expandir a percepção para a imensidão de seres e expressões da Terra e da arte, a ouvir a si próprio, a ouvir seu coração individual e coletivo, a se posicionar no mundo a favor da vida e da magia que nos mantêm de pé.”

Na sustentação da escolha pelo júri formado por sete pessoas de destintas nações, entre elas a pesquisadora brasileira Rosane Muniz: “A névoa atmosférica flutua no espaço, acima de objetos ancestrais e contemporâneos, representando uma vasta região e diversas culturas. A luz, cheiros e sons comungar juntos em um tangível e intangível enredo multifacetado de narrativas para criar esta imersiva instalação de trabalho em equipe”.

Divulgação A confecção das redes envolveu pessoas de diversas etnias indígenas do Brasil em ‘Florestania’, intervenção urbana dirigida por Eliana Monteiro (SP) e destinada a três áreas verdes de Praga

Seguem criadoras e criadores do premiado projeto Encruzilahdas: acreditamos nas esquinas: Álvaro Rosa Costa (RS), Anderson Leite (PE), Anne Louise (RR), Arthur Barreto (SE), Augusto Krebs (MT), Ayrton Bob Pessoa (CE), Barulhista (MG), Diego Vattos (PA), Diogo Vanelli (DF), Dori Sant’Ana (ES), Écio Rogério da Cunha (AC), Eliberto Barroncas (AM), Elton Panamby (MA), Érico Ferry (PI), Eugênio Lima (SP), Hedra Rockerbach (SC), Heitor Martins Oliveira (TO), Jo Mistinguett (PR), Jones Barsou (AP), Kaline Barroso (RR), Kevin Melo (PB), Luciano Salvador Bahia (BA), Marcelo Marques (GO), Marcio Marciano (PB), Miran Abs (AL), Reginaldo Borges (MS), Rinaldo Santos (RO), Toni Gregório (RN) e Zahy Tentehar (RJ).

A Mostra dos Países e Regiões, como se sabe, é competitiva e de responsabilidade da curadoria de cada país. No caso do Brasil, o núcleo contou com participações de Arianne Vitale, Elaine Nascimento, Gregory Silvar, Heloisa Lyra Bulcão, Karina Machado, Lu Bueno, Marieta Spada, Rafael Bicudo, Renato Bolelli Rebouças e Sergio Lessa. Um dos pensadores que nortearam os saberes foi o professor e educador Luiz Rufino, para quem “A encruzilhada é a boca do mundo, é saber praticado nas margens por inúmeros seres que fazem tecnologias e poéticas de espantar a escassez abrindo caminhos”.

Já o editor de teatro do jornal inglês The Guardian, Chris Wiegand, mencionou Florestania em sua cobertura do evento. Segundo o autor, a intervenção urbana concebida por Eliana Monteiro (SP) versa “sobre a devastação da floresta tropical”, “uma paisagem sonora para ser ouvida deitada em redes feitas por mulheres indígenas brasileiras”.

Moradora na capital paulista, onde é encenadora do grupo Teatro da Vertigem, nesse trabalho inédito no país Monteiro propõe ao público uma experiência imersiva e política por meio do ato de deitar-se numa das 13 redes de descanso afixadas em três áreas verdes de Praga: “Park Tusarova (próximo ao Mercado que concentra a maior parte das ações da PQ), Park Vltavská (um parque perto do Rio Moldava, pelo qual passam muitas pessoas a caminho da estação de metrô) e Ilha Štvanice (uma ilha do mesmo Moldava)”, situa a diretora, que está na cidade com seis pessoas da equipe de pesquisa, criação e produção.

Por cerca de 15 minutos, observar o céu e ouvir sons registrados na Amazônia, reproduzidos por meio de fones e vídeos gravados na floresta, deslocariam a percepção do fluxo urbano e ativariam outras pulsações, como a “lembrar celularmente que a gente faz parte do todo”, afirma a criadora. Neta de indígena, ela e equipe foram atrás de artefatos produzidos por mulheres de diferentes etnias, como Noke Ko’í, Honi Kuin e Kalapalo, com participação também de Txawa, Meto, Nawa Itxa, Vari, Kai, Mashe e Nai. As peças representam os 13.235 km² de árvores da Amazônia brasileira que foram devastados em 2021.

A confecção das redes envolveu pessoas de diversas etnias indígenas, como a Noke Ko’í, da Aldeia Viñoya, terra indígena Rio Gregório, em Tarauacá, Acre. Nessa aldeia, a anciã Rave Varinawa e sua filha Mema, ambas artesãs, deram oficina de confecção de redes a outras mulheres, homens e crianças, com organização do Cacique Pero e de Luandra.

De acordo com informativo à imprensa, a ideia da instalação surgiu em agosto de 2019, quando o céu de diversas cidades do país, incluindo São Paulo, ficou cinza por volta das 15h devido às queimadas em áreas de florestas, algo recorrente nos últimos quatro anos. Naquele momento, quando “o dia virou noite” devido à fumaça das queimadas, e junto com uma quantidade infinita de notícias na imprensa nacional e internacional sobre o descaso com o meio ambiente, Monteiro começou a conceber seu projeto, que se propõe uma denuncia à situação vivida nos últimos anos e uma saída através da reconexão com os povos indígenas e com a natureza.

Para tanto, a artista busca inspiração nas palavras do cronista, poeta e pensador acreano Antonio Alves: “A Florestania é a tentativa de chamar a atenção para o fato de que a humanidade não é o centro, mas sim parte integrante e dependente da natureza”. Essa convicção surgida no final da década de 1980 preconiza a noção de cidadania adaptada à floresta amazônica e desmistifica o antropocentrismo moderno. A intervenção urbana tem dramaturgismo de Bruna Menezes e Patricia Montanari, direção musical de Tomé de Souza e Igor Souza e cenografia de Rafael Bicudo.

Divulgação Uma das 13 redes de ‘Florestania’, instalação urbana em parques da capital da República Tcheca, concepção da encenadora Eliana Monteiro que ficou entre as 20 ações selecionadas pela curadoria a partir de quase 300 inscrições de 52 países

Florestania faz parte do eixo Performance, ao lado de outras 19 ações selecionadas pela curadora portuguesa Carolina Santo a partir de quase 300 inscrições de 52 países, instadas a trazer vozes que chegassem ao público de uma forma simples, mas poderosa, provocando raros encontros, ao mesmo tempo que revelassem as potencialidades poéticas e críticas do espaço.

Dessa seção também foram contemplados os projetos brasileiros ConCordis- o Coração, de Nina Vogel (RS), e Manifestações, Jaq Lisboa (PA/Alemanha). Na sinopse do primeiro: “Um coração tão grande que ultrapassa os limites do corpo da artista. Ela o transforma em palco e o segura aberto em seus braços, enquanto convida o espectador a se aproximar. Dentro dele, um pequeno habitante e universos em miniatura insuspeitos se revelam em uma jornada à busca do que faz um coração bater”. O segundo, “ritual performance” realizado com a comunidade brasileira na Europa, “trata-se da criação de memórias coletivas para corpos diaspóricos, especialmente os racializados, como uma estratégia de cura do passado colonial”.

Por fim, o eixo Espaço da Cena e da Performance, dedicado a áreas não convencionais, recém-criadas, adaptadas, transformadas ou reaproveitadas, que se tornaram referência ou ponto de encontro de uma região, reunindo comunidades em atividades de formação artística, cultural e social. O curador Andrew Filmer selecionou 35 projetos, de 22 países, com a intenção de celebrar locais pulsantes e proporcionar o vislumbre de possibilidades futuras mais amplas para teatros e espaços performáticos, cujos acessos se tornaram raros a partir da pandemia. Do Brasil, foram acolhidos a Tenda Ave Lola, de Tezza, da capital paranaense, “um teatro temporário de 150 m², ao ar livre, que se propõe a estabelecer uma intersecção entre o conceito de parque (espaço público) e a sala de espetáculos (espaço privado)”, e Parque de produções, anunciado como “Manifesto pedagógico sobre o fazer e pensar da multiartista e professora Sônia Paiva (DF). Respiro profundo para quem busca transformação cultural, social e política por meio da criatividade artística”.

O Brasil se faz presente nas edições da PQ por meio da PQBrasil, um movimento atualmente coordenado pela Associação Brasileira de Profissionais das Espacialidades, Visualidades e Sonoridades da Cena, a Grafias da Cena Brasil, criada em 2021, ou seja, ainda sob o negacionismo cultural do governo de turno. Grafias da Cena Brasil, por sua vez, está vinculada à OISTAT, a Organização Internacional dos Cenógrafos, Técnicos e Arquitetos Teatrais.

Em parceria com a teiabr, uma plataforma coletiva, independente e colaborativa, foi possível articular um grupo de 40 consultores (críticos, curadores, pesquisadores das cenas e o que a organização denominou de “espectadores apaixonados”) de cada unidade federativa, e de diferentes linguagens (dança, ópera, circo, teatro de formas animadas, arte de rua), além de especialistas em cenas criadas por povos originários, cenas por pessoas negras, cenas por pessoas trans, cenas por pessoas com deficiência. Nesse processo, houve cerca de 350 indicações de obras cênicas, sendo que 230 desses grupos e artistas inscreveram seus trabalhos para compor uma publicação digital.

Mais informações no site https://pqbrasil.org/ e no catálogo da representação brasileira. Dezenas de artistas e estudantes de múltiplos estados viajaram a Praga em razão de seus trabalhos ou pesquisas, bem como participaram de ações reflexivas e formativas.

O Ministério da Cultura (MinC) e a Fundação Nacional de Artes (Funarte) apoiaram a representação.

Hector Cruz A representação ‘Espectadores em uma cidade fantasma’, de Chipre, que levou a Triga de Ouro na Quadrienal de Praga; “Olhando no passado, presente e futuros possíveis, vislumbrando esse território através das estreitas aberturas quadradas de edifícios, a exposição provoca sentimentos de angústia enquanto deixa subentendido o potencial RARO de esperança”, diz o júri internacional

Histórico

A PQ surgiu da Bienal das Artes Plásticas do Teatro, no Brasil, parte da Bienal de Artes de São Paulo, evento que aconteceu de 1957 a 1965 e contou com a participação de importantes cenógrafos tchecos, que decidiram criar a Quadrienal de Praga, em 1967. A partir de então, a Bienal das Artes Plásticas do Teatro passou a acontecer de forma intercalada com a PQ, até 1973. Isto marca a importância da participação brasileira nas PQs.

Segundo o catálogo de 2023, o Brasil esteve presente em 13 das 14 edições, confirmando-se como um importante representante da América do Sul. O país já recebeu várias premiações, tendo conquistado, em 1995 e 2011, a Triga de Ouro – a consagração máxima do festival.

Na PQ’23, o prêmio foi para a representação da ilha mediterrânea de Chipre, cuja geografia cruza Europa, África e Ásia, intitulada Espectadores em uma cidade fantasma. Na ótica do júri: “Esta exposição elegante e com muitas camadas demonstra como a cenografia pode interrogar e negociar temas locais de memória, ausência e presença que ressoam universalmente. É autocrítica, convida visitantes a questionarem as próprias posições enquanto espectadores de imagens reais ou reproduzidas de lugares de conflito e de trauma. Olhando para o passado, presente e futuros possíveis, vislumbrando esse território através das estreitas aberturas quadradas de edifícios, a exposição provoca sentimentos de angústia enquanto deixa subentendido o potencial RARO de esperança”.

A Quadrienal de Praga é iniciada e financiada pelo Ministério da Cultura da República Tcheca e organizada pelo Instituto de Artes e Teatro naquela capital.

Divulgação No caso de ‘Encruzilhadas: acreditamos nas esquinas’, 29 criadoras e criadores representantes das 27 unidades federativas do país conceberam um espaço imersivo numa sala com o intento de aflorar das sonoridades um país de muitas vozes, de maneira a instaurar, pela presença, um estado que se aproxime do sagrado

Pela equipe do site Teatrojornal - Leituras de Cena.

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