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3.nov.2010
O convívio teatral
Por Valmir Santos
A terceira e última semana do 2º Pequeno Grande Encontro de Teatro para Crianças de Todas as Idades tangenciou as linguagens do circo e da animação. Nos espetáculos Memórias do palhaço Amoroso, da Companhia Pé no Palco, e Circo s/a, da Companhia dos Palhaços, os títulos já explicitam a remissão ao universo contido entre a lona e o picadeiro. Ambos trilham caminhos distintos. Contrastam uma criação de forte apelo visual, a primeira, com outra mais despojada, a segunda, sendo seus resultados subversivos aos pressupostos. Surpresa, a terceira montagem da semana, pela Companhia Manoel Kobachuk, injetou uma nostalgia à maneira da mirada artística do cineasta Federico Fellini. Cativa a presença em cena de um veterano da cultura de animação de objetos e bonecos, lá se vão mais de 30 anos, um homem que firma um diálogo cristalino com o espectador sem angustiar-se pela busca de efeito. Vamos passear, pois, por esses processos sem sugerir valoração dos mesmos. E lembrando que também foi reprisada a apresentação de Sobrevoar, da Companhia do Abração, montagem sobre a qual comentamos na semana passada.
Em Memórias do palhaço Amoroso, a Pé no Palco – companhia com bagagem de 25 anos de artes cênicas – ergue uma produção de fôlego para os padrões do teatro infantil. A equipe de criação, por exemplo, conforma mais de três dezenas de artistas. O principal elemento cenográfico é a tela ao fundo, uma plataforma estruturada no plano médio para receber projeções em vídeo ou servir de transparência para as figuras oníricas que pululam na jornada do protagonista em busca de seu amigo. O texto e a direção, ambos assinados por Fátima Ortiz, acenam para a arte irmã do circo como pretexto e deixa a desejar quanto à essência presumida.
A figura central do palhaço, como o interpretado por Pedro Bonacin, não se sustenta apenas com o nariz vermelho, o figurino e os adereços típicos. Sentimos falta do carisma, do timming, da gestualidade, do olhar dolente a contrariar o sorriso largo, da sapiência popular que essa máscara universal denota em suas particularidades. As presenças dele, do amigo que o mobiliza (por Daniel Kleiber) e da namorada (por Maíra Lour) são pontos demarcados de uma encenação hiperbólica em suas cores, luzes, projeções. Daí nosso alívio visual quando Amoroso finalmente reencontra o amigo no que parece uma ilha sem a poluição de informações. As canções compostas por Rosy Greca e cantadas em playback tampouco aliviam a distância endossada ainda pelas referências ao videogame, à internet, à motocicleta, recursos que soam como desvios daquilo que a peça pede ao espectador, desejosa de que ele não se esqueça de “regar as sementes essenciais” na vida. O espetáculo carece editar esses elementos todos, plasmar o que a palavra já enuncia poeticamente. Quando o aporte material excede, dá saudades da menor grandeza, escala que a Pé no Palco conhece como poucos.
Em Circo s/a, a Companhia dos Palhaços captura o espírito do clown, aquele que o teatro contemporâneo borra com mais frequência entre o dramático, o gesto, a ação física, o número circense, a coreografia, a linguagem do cinema (Chaplin e Buster Keaton à frente), e por aí vai. Essa elaboração surge como latência na dupla Rafael Barreiros e Milene Dias, ou simplesmente Alípio e Sombrinha. Eles emanam potencial para aprofundar uma linguagem que pede interfaces.
De volta ao espetáculo, de título infeliz, aliás – Circo s/a sinaliza algo de oportunismo econômico -, Barreiros e Dias vão à cena com um roteiro mínimo com boa margem para o improviso, sustentam o enigma do que virá a cada número após o terceiro sinal. Eles quebram a quarta parede, optam por poucos elementos que sacam de uma espécie de empanada. O roteiro espelha a condição humana em suas tentativas e erros, a gangorra da vitória e do fracasso espreita cada um dos jogos propostos.
A capacidade de Barreiro e Dias de interagir com inventividade e prover sutilezas lembra o trabalho da dupla do Grupo La Mínima, de São Paulo, leia-se Domingos Montagner e Fernando Sampaio. A dupla curitibana da Companhia dos Palhaços também fez parceria com a Parabolé Educação e Cultura em Palmas pra que te quero, apresentada na segunda semana do Pequeno Grande Encontro. Circo s/a contrapões justo a teatralidade mínima que faltou em Palmas pra que te quero, que tem tudo para avançar em sua simbiose pertinente à música e às brincadeiras de mão.
Em Surpresa, transborda o encantamento por ver um ator veterano em cena com tanta verdade e convicção na defesa das pequenas histórias que surgem das caixas coloridas. Constrói um mundo sem truques, por assim dizer, em que tudo é revelado com o tempo estendido para perscrutar o mistério, o oculto, o prazer do primeiro contato das crianças com o admirável mundo novo que lhe é apresentado. Ainda que parte da plateia mirim já reflita a ansiedade dos pais ou responsáveis da sociedade em que vivem, certa impaciência que a Manoel não falta. A cada boneco ou mundo mimetizado (o circo, o castelo assombrado, o quintal, a bailarina), despontam fios de breves enredos encadeados um ao outro. Apesar da companheira de cena, Neiva Figueiredo, exibir um registro mais duro no tato com os bonecos e maquetes, Manoel Kobachuk e seus bonecos fundem a relação criador e criaturas, um cosmo paralelo e peculiar acessado por espíritos livres e leves, independente do peso da existência.
Balanço
As três semanas de convívio com a produção teatral para crianças nos puseram em contato com artistas cujos trabalhos desconhecíamos ou só tínhamos notícias das criações para adultos (Edson Bueno, Fátima Ortiz). Em todos, com maior ou menor grau, ficam patentes a vocação para a pesquisa, a preocupação ao expressar forma e conteúdo, o prenúncio de linguagem que, a rigor, vingará ou naufragará na proporção da devoção e da coragem para o mergulho e a continuidade. Respostas para as quais o tempo é implacável.
A segunda edição do Pequeno Grande Encontro acena para articulações em termos de políticas públicas. A presença do crítico Ricardo Schöpke, vindo do Rio de Janeiro, representante da Rede Nacional de Teatro Infantil, a RENATIN, dá conta do esforço em endossá-la por meio de uma sucursal paranaense. Para tanto, grupos, artistas, arte-educadores, produtores e pesquisadores já estariam se encontrando periodicamente, como ficou claro nas rodas que aconteceram em três manhãs de segundas-feiras na sede da Companhia do Abração.
A mobilização é legítima, ecoa o que já ocorre em outras praças do País, vide a organização do Teatro de Rua e do Circo por um lugar sob o sol das artes cênicas. Intuímos que a iniciativa será mais profícua quando estabelecer ponte com o Movimento de Teatro de Grupo que já está em curso em Curitiba. E vice-versa. Cito um exemplo. A luta dos núcleos de São Paulo em torno do Programa Municipal de Fomento ao Teatro – a Lei de Fomento que vigora desde 2002 e fruto de ativismo do Movimento Arte contra a Barbárie havia quatro anos, assembleias, corpo a coro com vereadores e secretarias, ocupação de galerias, etc -, enfim, essa luta não dissociou teatro para adultos e teatro para crianças. Sobrevento, Paidéia, Companhia do Feijão, Circo Mínimo e outros coletivos que transitam pelas duas vertentes contracenam com seus pares sem distinção de voz, relevando-se as diferenças estéticas, conceituais, ideológicas. O cisma não ajuda nenhuma das partes na hora de sentar para conversar e demonstrar representatividade diante de secretários de Cultura, vereadores, deputados ou senadores afeitos à causa da cultura. (Isso para não dizer do fundamental intercâmbio de concepções artísticas que raramente se dá). Superar idiossincrasias é que são elas. Ou a fratura é tão traumática que não comporta identificar o que é comum?
No plano da organização do Pequeno Grande Encontro, este é um território que também tem tudo para convergir à autonomia dos núcleos, tantas foram as vozes que acolheu. Vimos interlocuções, olho no olho e abertura para crítica e autocrítica nas presenças de Regina Vogue, Manoel Kobachuk, Fátima Ortiz, Renato Perré, Letícia Guimarães, gente que tem mais estrada e mostram-se abertos às gerações que vieram depois, com o talento e o ímpeto construtor de Nélio Spréa, Maurício Vogue, Fabiana Ferreira, Milene Dias e Rafael Barreiros, entre outros.
Reafirmamos a importância de o encontro ser abraçado por outros núcleos que não só a companhia idealizadora e realizadora de proa. No arquivo do blog do evento, vimos que a primeira edição, em 2009, já trazia mais espetáculos da Abração do que seus pares locais. O desequilíbrio na programação, que suscita conflito de interesse, foi repetido este ano com espetáculos do repertório abrindo e fechando o evento sob justificativa da insuficiência financeira que implicou o próprio cachê à metade. Apesar do discurso em direção ao outro, conclamando os criadores às rodas matinais em sua sede, às bandeiras coletivas, a prática não sincroniza. Faria muito bem ao Pequeno Grande Encontro descentralizar-se radicalmente, por mais que a Abração lhe seja precursora e proponente, um protagonismo notável que agora, talvez, necessita ser delegado ao coro do qual faz parte a ajudou a crescer e ser visto. É o que intuímos a partir da vivência e da escuta desses dias.
• O jornalista e pesquisador de teatro Valmir Santos acompanhou o II Pequeno Grande Encontro de Teatro para Crianças de Todas as Idades a convite da organização.
27.out.2010
Quintal para os pés da imaginação – Por Valmir Santos
Valmir Santos *
As duas primeiras semanas do II Pequeno Grande Encontro de Teatro para Crianças de Todas as Idades, no Teatro José Maria Santos, teve dois temas recorrentes: a memória e a brincadeira. Elas têm a ver com as duas pontas da vida, a meninice e a velhice. Memória e brincadeira que não surgem estanques nas narrativas. Elas são entretecidas por palavras, objetos, bonecos, músicas, luzes e jogos verbais e espaciais emendados por atores para compor um quintal entre o céu e a terra. Terra em que hoje os pés mirins ou adultos raramente pisam.
Em Teimosinho e Mandão, direção e adaptação de Edson Bueno para o livro Dois idiotas cada qual sentado em seu barril… (2003), de Ruth Rocha, o jogo de oposição lembra as figuras cômicas do branco e do augusto, o que se insinua ingênuo e o que se quer inteligente. Esses contrastes podem até sugerir uma leitura moral, mas, em regra, no picadeiro ou no palco não costumam carregar juízo de valor ou negatividade. Bueno é fiel ao espírito do livro e investe no ponto elementar dessa história: o conflito, matéria-prima do drama aqui tangenciado pela comicidade.
Nas entrelinhas de Teimosinho e Mandão, interpretados respectivamente por Marcelo Rodrigues e Raphael Rocha, estão os chamados “senhores da guerra”. A alusão bélica vem nas referências a munições, armamentos, territórios e diferenças de gostos que pautam a disputa mediada por bichos de pelúcia, cores, plantas – ou seja, os objetos ou adereços dizem mais do que as atitudes. Cada um deles veste uma capa de super-herói com a cor do adversário, azul e amarelo invertidos. Os barris cênicos de cada um viram seus respectivos baús dos quais sacam os brinquedos.
As atuações de Rodrigues e Rocha sublinham as ações físicas, endossam o nível de testosterona com ênfase tal que, da metade em diante da apresentação, apagam justo as sutilezas prenunciadas e parecem “jogar” só para a ala masculina da plateia com a qual estabelecem correspondência instantânea. A linearidade dificulta o trânsito personagem/narrador sem variações mínimas de voz e gesto. A peça da MR Produções Artísticas, leia-se Márcio Roberto e Centro Cultural Boqueirão, fica a meio caminho desse elogio à compreensão. A mensagem até chega do lado de cá, mas a transmissão é feita com ruídos.
Mauricio Vogue interpreta e codirige com Richard Rebelo o monólogo Quando a criança era uma criança, uma criação francamente autobiográfica sob dramaturgia de Letícia da Rosa. Há uma sinceridade na presença do ator, um dos artistas mais profícuos da cidade. Vogue não inclina à mera caricatura para se passar por criança. A bordo dessa transparência enxergamos também a natureza autocentrada do projeto. A relação com objetos ou bonecos na tela plana de fundo não se revela viva, serve utilitariamente ao condutor que as descarta com a mesma velocidade com que despontam por meio das mãos da contrarregragem “oculta”.
Esse estado diluído de presença cria um campo de virtualidade nas relações com o espectador e com os demais elementos da cena na proporção que as vozes adultas da mãe e demais pessoas imaginárias são distorcidas, por exemplo, ou estilizadas em desenhos. Realização conjunta do Centro de Estudos de Teatro para Crianças, o Centec, e da Companhia Regina Vogue, o espetáculo dá a entender que o protagonista tem mais facilidade de vínculo com o robô e sua guitarra do que com amigos ou familiares. O figurino de macacão, à maneira dos astronautas ou aviadores, parece traduzir o ser encerrado em si, em seu quarto agora adolescente, em seu mundo. O frenético uso de projeções e trilha incisiva reflete uma necessidade constante de preencher a cena, o que acaba desviando o foco da criança do passado e do presente.
É sintomático o número de mágica abortado pelo intérprete, apesar de sinalizar com um número simples. Assim ele frustra um cadinho de magia, fixa-se pragmático. E há ao menos um momento de Quando a criança era uma criança em que Vogue consegue atingir síntese poética: a passagem da chuva que combina todos os recursos. Um “frame” no espetáculo que promete mais de largada e termina distante.
O gato & a dona Chica, soubemos depois, soma mais de duas décadas no repertório da Companhia Filhos da Lua, dirigida pelo também dramaturgo e manipulador Renato Perré, aqui ao lado de Edna Kallil – os bonecos são confeccionados por Maria Tereza Carvalho Silva, cofundadora do grupo em 1981. É uma surpresa conhecer na cidade um núcleo dedicado a essa modalidade popular do Nordeste. É como se Curitiba, de tantas afluências alemãs, italianas e afins cumprisse um ciclo do eterno retorno dos bonecos de luva oriundos da cultura medieval européia.
O que desponta, como não poderia deixar de ser com a bagagem da companhia, é a segurança no domínio da linguagem do mamulengo. Falas, gestos e perspectivas de cena convencem na expressão, tudo embalado por músicas igualmente tradicionais. Apesar da moldura da boca de cena da barraca circunscrever a área cênica no plano médio do palco, ao centro, a montagem consegue redimensionar a história em torno da cantiga Atirei o pau no gato, desconstruída de forma original. O ápice da transcendência é quando Dona Chica vira gata, ou seja, transforma-se no bicho que rejeitara. Essa metamorfose instiga a criança que, ao final, pergunta-se como foi que aconteceu a metamorfose e Perré explica, paciente. A generosidade é um dos trunfos desse artista que permanece com o seu boneco em punho, o Gato, deixando-se tocar e fotografar ao lado dos espectadores que o solicitam, e não o contrário. A Filhos da Lua equilibra a forma convencional e o frescor juvenil, conforma em palco frontal um bocado do ambiente solto do improviso que o mamulengo irradia em praça pública, rural ou urbana.
É instigante o ponto de partida de Palmas pra que te quero, da Parabolé Educação e Cultura. A obra elege as brincadeiras de mãos para apoiar uma dramaturgia, sobretudo, da gestualidade. Não intenta alcançar os parâmetros virtuosos da mímica, técnica que aparece mais como citação. Três dedos são elevados à categoria de personagens com seus respectivos apelidos, o menino Mata-piolho e as meninas Minguinho e Fura-Bolo. Pena que, traçado esse alicerce promissor, as opções de Nélio Spréa, codiretor com Rafael Barreiros, resultam refém do entretenimento simplificador. A despeito da performance habilidosa do trio Fernanda de Souza, Milene Dias e Barreiros, que harmoniza o timing de cena com a música instrumental tocada ao vivo por Souza e tem a plateia nas mãos, como se diz – Barreiros lança mão (olha o trocadilho!) de seu palhaço com propriedade, sem ofuscar suas colegas –, ainda assim a montagem não desenvolve o seu potencial para a teatralidade. Possui uma boa equipe para isso, mas soa engessada. Não enreda uma história, mas quadros acomodados à exposição dos jogos de mãos. A dramaturgia é frágil. Troca representação por demonstração. Reduz a plateia a auditório. E provoca indignação: qual a elevação humanista em repetir marcas de carros numa das brincadeiras, induzir desde já ao entorpecimento pelo consumo que é uma das principais pedras no meio do caminho? Eis algumas das contradições de Palmas pra que te quero, que envolve o público com a mesma força com que o afasta.
A anfitriã Companhia do Abração, idealizadora e realizadora do Pequeno Encontro, apresentou três espetáculos que, vistos em conjunto, dão conta do seu percurso histórico e estético desde 2001. Antes de entrar no mérito dos trabalhos, há um paradoxo evidente na programação, como apontamos na segunda roda de conversa ocorrida na sede do grupo, na manhã de segunda-feira passada. A Abração organiza o evento, ocupa as sessões de abertura e de encerramento. E a matemática se impõe inquiridora feito uma criança. Por que a Abração conta três peças em cinco sessões? Por que a Filhos da Lua apresenta uma obra duas vezes? Por que as demais companhias têm uma montagem cada para a respectiva tarde?
O desequilíbrio pode dar margem a ilações que, ao menos no âmbito do discurso e da prática verificados nas duas semanas, inclusive traduzidos em cena, não corresponderiam. A diretora Letícia Guimarães diz ter clareza quanto ao desdobramento e o atribui ao aperto no patrocínio público nesta segunda edição, o que implicou suspensão de montagens previstas e inclusão das três peças de sua companhia, com cachês reduzidos à metade, para cumprir as três semanas da agenda reservada no teatro. Essa disponibilidade tem a ver também com a capacidade de compreensão, planejamento e execução dos artistas da Abração ao revezar várias funções na sede administrativa, no afluxo de público espontâneo e vindos de escolas e entidades sociais convidadas que lotam as sessões no José Maria Santos. E tudo atrelado ao desafio maior do intérprete faz-tudo que é atuar por inteiro em meio às demandas.
De volta à recepção dos espetáculos, Sobrevoar (2010), Estórias brincantes de muitas mainhas (2007) e Sonho de uma noite de verão (2002) triangulam procedimentos constitutivos de uma linguagem que mira obsessivamente o apuro. A dramaturgia assinada por Guimarães e consolidada em colaboração galga o universo existencial mais comum aos adultos e, nem por isso, tratado com concessão. Estão lá a velhice e a ancestralidade, por exemplo. A linguagem cênica apóia-se na animação de objetos e de bonecos sem virtuosismo, combinando-a organicamente a um ator-criador, sujeito mais propositivo na partitura corporal e autônomo nas veredas simbólicas que abre no contato ao vivo.
Sobrevoar espreita o desejo humano invejado positivamente de deuses como Ícaro, o voo como metáfora da liberdade. Nada mais óbvio que evocar Santos Dumont, convenhamos, mas o texto o faz escapando ao lugar-comum. O álibi é visitar a infância do pai da aviação com inventividade. Registros enciclopédicos ou históricos não têm vez. As asas são da imaginação: livro, relógio, chapéu, bola, enfim, tudo se transforma ao contracenar com o quarteto de atores. É assim que módulos quadrados do cenário viram, súbito, o 14 Bis projetado no início do século XX. Surpresas assim causam reações como a da criança que soltou um “Nossa!” quando se encantou pela mágica da carta enviada de um ponto a outro do palco por meio do sopro invisível de um dos atores do elenco formado por Felipe Custódio, Moira Albuquerque, Negra Silva e Simão Cunha. Os senões vão para certos instantes em que a estridência da música concorre com a fala e o desenho de luz é efusivo. Acreditamos desnecessário o segundo final do espetáculo, como se fosse uma nota de rodapé para comunicar uma mensagem da qual já tinha dado conta: sim, todos devemos e podemos voar em todos os sentidos na vida. O adendo de um número musical à la cultura americana destoa do que vimos até então, uma mistura à brasileira e à francesa, ou seja, menos massificado.
Estórias brincantes de muitas mainhas – Foto: LidiaUeta – Patricia Lion
Em Estórias brincantes de muitas mainhas, o título adianta o tom fabular que o prólogo endossa: uma coreografia bem bolada no jogo dos atores com xícaras, pires e bule vermelhos dotados de outras funções, como a do nariz de palhaço. Albuquerque, Cunha e Custódio encaram velhinhos narradores de histórias, imigrantes ucranianos naturalmente inspirados na colônia daquele país radicada em Curitiba. Suas lembranças são estimuladas por uma explosão na riqueza de detalhes. O tapete, os figurinos e objetos coloridos, as geometrias e sincronismos temporais são atrelados à noção da memória ancestral, como na cena da sereia no mar, talvez uma remissão ao líquido amniótico, à Pachamama da cultura indígena quéchua, a Mãe Terra. O espetáculo capta a idéia de universalização de laços e sentimentos do pertencer, do elo de origem, do cordão umbilical rebobinado.
Também uma trupe de velhos está reunida para o chá da tarde em Sonho de uma noite de verão, na pele de Fabiana Ferreira, Cunha, Silva e Custódio. Shakespeare é pretexto para o encontro desses contadores de história com o bardo inglês, sendo o desempenho de Ferreira mais lapidado, na minúcia corporal e rítmica, porque no elenco desde o início, há nove anos, enquanto seus colegas substituem papéis no repertório. O roteiro de desencontros de dois casais, seres enamorados entre reis, rainhas, fadas e duendes, vira prato cheio para a Companhia do Abração dar vida a sapatos, gravatas borboletas, nos convencer da floresta encantada despojada e demarcada com panos e bambus cênicos. Desde o primeiro espetáculo do núcleo, portanto, o relógio da vida e seus ponteiros da aurora e do crepúsculo já estavam pulsando.
* – O jornalista e pesquisador de teatro Valmir Santos acompanha o II Pequeno Grande Encontro de Teatro para Crianças de Todas as Idades a convite da organização.(do

(documentos produzidos a convite da organização do encontro em Curitiba, pela Companhia do Abração, http://pequenograndeencontro.blogspot.com)

 

 

3.nov.2010

 

O convívio teatral

Por Valmir Santos

A terceira e última semana do 2º Pequeno Grande Encontro de Teatro para Crianças de Todas as Idades tangenciou as linguagens do circo e da animação. Nos espetáculos Memórias do palhaço Amoroso, da Companhia Pé no Palco, e Circo s/a, da Companhia dos Palhaços, os títulos já explicitam a remissão ao universo contido entre a lona e o picadeiro. Ambos trilham caminhos distintos. Contrastam uma criação de forte apelo visual, a primeira, com outra mais despojada, a segunda, sendo seus resultados subversivos aos pressupostos. Surpresa, a terceira montagem da semana, pela Companhia Manoel Kobachuk, injetou uma nostalgia à maneira da mirada artística do cineasta Federico Fellini. Cativa a presença em cena de um veterano da cultura de animação de objetos e bonecos, lá se vão mais de 30 anos, um homem que firma um diálogo cristalino com o espectador sem angustiar-se pela busca de efeito. Vamos passear, pois, por esses processos sem sugerir valoração dos mesmos. E lembrando que também foi reprisada a apresentação de Sobrevoar, da Companhia do Abração, montagem sobre a qual comentamos na semana passada.

 

Em Memórias do palhaço Amoroso, a Pé no Palco – companhia com bagagem de 25 anos de artes cênicas – ergue uma produção de fôlego para os padrões do teatro infantil. A equipe de criação, por exemplo, conforma mais de três dezenas de artistas. O principal elemento cenográfico é a tela ao fundo, uma plataforma estruturada no plano médio para receber projeções em vídeo ou servir de transparência para as figuras oníricas que pululam na jornada do protagonista em busca de seu amigo. O texto e a direção, ambos assinados por Fátima Ortiz, 

acenam para a arte irmã do circo como pretexto e deixa a desejar quanto à essência presumida.

A figura central do palhaço, como o interpretado por Pedro Bonacin, não se sustenta apenas com o nariz vermelho, o figurino e os adereços típicos. Sentimos falta do carisma, do timming, da gestualidade, do olhar dolente a contrariar o sorriso largo, da sapiência popular que essa máscara universal denota em suas particularidades. As presenças dele, do amigo que o mobiliza (por Daniel Kleiber) e da namorada (por Maíra Lour) são pontos demarcados de uma encenação hiperbólica em suas cores, luzes, projeções. Daí nosso alívio visual quando Amoroso finalmente reencontra o amigo no que parece uma ilha sem a poluição de informações. As canções compostas por Rosy Greca e cantadas em playback tampouco aliviam a distância endossada ainda pelas referências ao videogame, à internet, à motocicleta, recursos que soam como desvios daquilo que a peça pede ao espectador, desejosa de que ele não se esqueça de “regar as sementes essenciais” na vida. O espetáculo carece editar esses elementos todos, plasmar o que a palavra já enuncia poeticamente. Quando o aporte material excede, dá saudades da menor grandeza, escala que a Pé no Palco conhece como poucos.

 

Em Circo s/a, a Companhia dos Palhaços captura o espírito do clown, aquele que o teatro contemporâneo borra com mais frequência entre o dramático, o gesto, a ação física, o número circense, a coreografia, a linguagem do cinema (Chaplin e Buster Keaton à frente), e por aí vai. Essa elaboração surge como latência na dupla Rafael Barreiros e Milene Dias, ou simplesmente Alípio e Sombrinha. Eles emanam potencial para aprofundar uma linguagem que pede interfaces.

 

De volta ao espetáculo, de título infeliz, aliás – Circo s/a sinaliza algo de oportunismo econômico -, Barreiros e Dias vão à cena com um roteiro mínimo com boa margem para o improviso, sustentam o enigma do que virá a cada número após o terceiro sinal. Eles quebram a quarta parede, optam por poucos elementos que sacam de uma espécie de empanada. O roteiro espelha a condição humana em suas tentativas e erros, a gangorra da vitória e do fracasso espreita cada um dos jogos propostos.

 

A capacidade de Barreiro e Dias de interagir com inventividade e prover sutilezas lembra o trabalho da dupla do Grupo La Mínima, de São Paulo, leia-se Domingos Montagner e Fernando Sampaio. A dupla curitibana da Companhia dos Palhaços também fez parceria com a Parabolé Educação e Cultura em Palmas pra que te quero, apresentada na segunda semana do Pequeno Grande Encontro. Circo s/a contrapões justo a teatralidade mínima que faltou em Palmas pra que te quero, que tem tudo para avançar em sua simbiose pertinente à música e às brincadeiras de mão.

 

Em Surpresa, transborda o encantamento por ver um ator veterano em cena com tanta verdade e convicção na defesa das pequenas histórias que surgem das caixas coloridas. Constrói um mundo sem truques, por assim dizer, em que tudo é revelado com o tempo estendido para perscrutar o mistério, o oculto, o prazer do primeiro contato das crianças com o admirável mundo novo que lhe é apresentado. Ainda que parte da plateia mirim já reflita a ansiedade dos pais ou responsáveis da sociedade em que vivem, certa impaciência que a Manoel não falta. A cada boneco ou mundo mimetizado (o circo, o castelo assombrado, o quintal, a bailarina), despontam fios de breves enredos encadeados um ao outro. Apesar da companheira de cena, Neiva Figueiredo, exibir um registro mais duro no tato com os bonecos e maquetes, Manoel Kobachuk e seus bonecos fundem a relação criador e criaturas, um cosmo paralelo e peculiar acessado por espíritos livres e leves, independente do peso da existência.

 

Balanço

 

As três semanas de convívio com a produção teatral para crianças nos puseram em contato com artistas cujos trabalhos desconhecíamos ou só tínhamos notícias das criações para adultos (Edson Bueno, Fátima Ortiz). Em todos, com maior ou menor grau, ficam patentes a vocação para a pesquisa, a preocupação ao expressar forma e conteúdo, o prenúncio de linguagem que, a rigor, vingará ou naufragará na proporção da devoção e da coragem para o mergulho e a continuidade. Respostas para as quais o tempo é implacável.

 

A segunda edição do Pequeno Grande Encontro acena para articulações em termos de políticas públicas. A presença do crítico Ricardo Schöpke, vindo do Rio de Janeiro, representante da Rede Nacional de Teatro Infantil, a RENATIN, dá conta do esforço em endossá-la por meio de uma sucursal paranaense. Para tanto, grupos, artistas, arte-educadores, produtores e pesquisadores já estariam se encontrando periodicamente, como ficou claro nas rodas que aconteceram em três manhãs de segundas-feiras na sede da Companhia do Abração.

 

A mobilização é legítima, ecoa o que já ocorre em outras praças do País, vide a organização do Teatro de Rua e do Circo por um lugar sob o sol das artes cênicas. Intuímos que a iniciativa será mais profícua quando estabelecer ponte com o Movimento de Teatro de Grupo que já está em curso em Curitiba. E vice-versa. Cito um exemplo. A luta dos núcleos de São Paulo em torno do Programa Municipal de Fomento ao Teatro – a Lei de Fomento que vigora desde 2002 e fruto de ativismo do Movimento Arte contra a Barbárie havia quatro anos, assembleias, corpo a coro com vereadores e secretarias, ocupação de galerias, etc -, enfim, essa luta não dissociou teatro para adultos e teatro para crianças. Sobrevento, Paidéia, Companhia do Feijão, Circo Mínimo e outros coletivos que transitam pelas duas vertentes contracenam com seus pares sem distinção de voz, relevando-se as diferenças estéticas, conceituais, ideológicas. O cisma não ajuda nenhuma das partes na hora de sentar para conversar e demonstrar representatividade diante de secretários de Cultura, vereadores, deputados ou senadores afeitos à causa da cultura. (Isso para não dizer do fundamental intercâmbio de concepções artísticas que raramente se dá). Superar idiossincrasias é que são elas. Ou a fratura é tão traumática que não comporta identificar o que é comum?

 

No plano da organização do Pequeno Grande Encontro, este é um território que também tem tudo para convergir à autonomia dos núcleos, tantas foram as vozes que acolheu. Vimos interlocuções, olho no olho e abertura para crítica e autocrítica nas presenças de Regina Vogue, Manoel Kobachuk, Fátima Ortiz, Renato Perré, Letícia Guimarães, gente que tem mais estrada e mostram-se abertos às gerações que vieram depois, com o talento e o ímpeto construtor de Nélio Spréa, Maurício Vogue, Fabiana Ferreira, Milene Dias e Rafael Barreiros, entre outros.    

 

Reafirmamos a importância de o encontro ser abraçado por outros núcleos que não só a companhia idealizadora e realizadora de proa. No arquivo do blog do evento, vimos que a primeira edição, em 2009, já trazia mais espetáculos da Abração do que seus pares locais. O desequilíbrio na programação, que suscita conflito de interesse, foi repetido este ano com espetáculos do repertório abrindo e fechando o evento sob justificativa da insuficiência financeira que implicou o próprio cachê à metade. Apesar do discurso em direção ao outro, conclamando os criadores às rodas matinais em sua sede, às bandeiras coletivas, a prática não sincroniza. Faria muito bem ao Pequeno Grande Encontro descentralizar-se radicalmente, por mais que a Abração lhe seja precursora e proponente, um protagonismo notável que agora, talvez, necessita ser delegado ao coro do qual faz parte a ajudou a crescer e ser visto. É o que intuímos a partir da vivência e da escuta desses dias.

 

• O jornalista e pesquisador de teatro Valmir Santos acompanhou o II Pequeno Grande Encontro de Teatro para Crianças de Todas as Idades a convite da organização.

27.out.2010

 

Quintal para os pés da imaginação

 

Por Valmir Santos

 

As duas primeiras semanas do 2º Pequeno Grande Encontro de Teatro para Crianças de Todas as Idades, no Teatro José Maria Santos, teve dois temas recorrentes: a memória e a brincadeira. Elas têm a ver com as duas pontas da vida, a meninice e a velhice. Memória e brincadeira que não surgem estanques nas narrativas. Elas são entretecidas por palavras, objetos, bonecos, músicas, luzes e jogos verbais e espaciais emendados por atores para compor um quintal entre o céu e a terra. Terra em que hoje os pés mirins ou adultos raramente pisam.

Em Teimosinho e Mandão, direção e adaptação de Edson Bueno para o livro Dois idiotas cada qual sentado em seu barril… (2003), de Ruth Rocha, o jogo de oposição lembra as figuras cômicas do branco e do augusto, o que se insinua ingênuo e o que se quer inteligente. Esses contrastes podem até sugerir uma leitura moral, mas, em regra, no picadeiro ou no palco não costumam carregar juízo de valor ou negatividade. Bueno é fiel ao espírito do livro e investe no ponto elementar dessa história: o conflito, matéria-prima do drama aqui tangenciado pela comicidade.Nas entrelinhas de Teimosinho e Mandão, interpretados respectivamente por Marcelo Rodrigues e Raphael Rocha, estão os chamados “senhores da guerra”. A alusão bélica vem nas referências a munições, armamentos, territórios e diferenças de gostos que pautam a disputa mediada por bichos de pelúcia, cores, plantas – ou seja, os objetos ou adereços dizem mais do que as atitudes. Cada um deles veste uma capa de super-herói com a cor do adversário, azul e amarelo invertidos. Os barris cênicos de cada um viram seus respectivos baús dos quais sacam os brinquedos.As atuações de Rodrigues e Rocha sublinham as ações físicas, endossam o nível de testosterona com ênfase tal que, da metade em diante da apresentação, apagam justo as sutilezas prenunciadas e parecem “jogar” só para a ala masculina da plateia com a qual estabelecem correspondência instantânea. A linearidade dificulta o trânsito personagem/narrador sem variações mínimas de voz e gesto. A peça da MR Produções Artísticas, leia-se Márcio Roberto e Centro Cultural Boqueirão, fica a meio caminho desse elogio à compreensão. A mensagem até chega do lado de cá, mas a transmissão é feita com ruídos.

Mauricio Vogue interpreta e codirige com Richard Rebelo o monólogo Quando a criança era uma criança, uma criação francamente autobiográfica sob dramaturgia de Letícia da Rosa. Há uma sinceridade na presença do ator, um dos artistas mais profícuos da cidade. Vogue não inclina à mera caricatura para se passar por criança. A bordo dessa transparência enxergamos também a natureza autocentrada do projeto. A relação com objetos ou bonecos na tela plana de fundo não se revela viva, serve utilitariamente ao condutor que as descarta com a mesma velocidade com que despontam por meio das mãos da contrarregragem “oculta”.

 

Esse estado diluído de presença cria um campo de virtualidade nas relações com o espectador e com os demais elementos da cena na proporção que as vozes adultas da mãe e demais pessoas imaginárias são distorcidas, por exemplo, ou estilizadas em desenhos. Realização conjunta do Centro de Estudos de Teatro para Crianças, o Centec, e da Companhia Regina Vogue, o espetáculo dá a entender que o protagonista tem mais facilidade de vínculo com o robô e sua guitarra do que com amigos ou familiares. O figurino de macacão, à maneira dos astronautas ou aviadores, parece traduzir o ser encerrado em si, em seu quarto agora adolescente, em seu mundo. O frenético uso de projeções e trilha incisiva reflete uma necessidade constante de preencher a cena, o que acaba desviando o foco da criança do passado e do presente.

 

É sintomático o número de mágica abortado pelo intérprete, apesar de sinalizar com um número simples. Assim ele frustra um cadinho de magia, fixa-se pragmático. E há ao menos um momento de Quando a criança era uma criança em que Vogue consegue atingir síntese poética: a passagem da chuva que combina todos os recursos. Um “frame” no espetáculo que promete mais de largada e termina distante.

O gato & a dona Chica, soubemos depois, soma mais de duas décadas no repertório da Companhia Filhos da Lua, dirigida pelo também dramaturgo e manipulador Renato Perré, aqui ao lado de Edna Kallil – os bonecos são confeccionados por Maria Tereza Carvalho Silva, cofundadora do grupo em 1981. É uma surpresa conhecer na cidade um núcleo dedicado a essa modalidade popular do Nordeste. É como se Curitiba, de tantas afluências alemãs, italianas e afins cumprisse um ciclo do eterno retorno dos bonecos de luva oriundos da cultura medieval européia.O que desponta, como não poderia deixar de ser com a bagagem da companhia, é a segurança no domínio da linguagem do mamulengo. Falas, gestos e perspectivas de cena convencem na expressão, tudo embalado por músicas igualmente tradicionais. Apesar da moldura da boca de cena da barraca circunscrever a área cênica no plano médio do palco, ao centro, a montagem consegue redimensionar a história em torno da cantiga Atirei o pau no gato, desconstruída de forma original. O ápice da transcendência é quando Dona Chica vira gata, ou seja, transforma-se no bicho que rejeitara. Essa metamorfose instiga a criança que, ao final, pergunta-se como foi que aconteceu a metamorfose e Perré explica, paciente. A generosidade é um dos trunfos desse artista que permanece com o seu boneco em punho, o Gato, deixando-se tocar e fotografar ao lado dos espectadores que o solicitam, e não o contrário. A Filhos da Lua equilibra a forma convencional e o frescor juvenil, conforma em palco frontal um bocado do ambiente solto do improviso que o mamulengo irradia em praça pública, rural ou urbana.

É instigante o ponto de partida de Palmas pra que te quero, da Parabolé Educação e Cultura. A obra elege as brincadeiras de mãos para apoiar uma dramaturgia, sobretudo, da gestualidade. Não intenta alcançar os parâmetros virtuosos da mímica, técnica que aparece mais como citação. Três dedos são elevados à categoria de personagens com seus respectivos apelidos, o menino Mata-piolho e as meninas Minguinho e Fura-Bolo. Pena que, traçado esse alicerce promissor, as opções de Nélio Spréa, codiretor com Rafael Barreiros, resultam refém do entretenimento simplificador. A despeito da performance habilidosa do trio Fernanda de Souza, Milene Dias e Barreiros, que harmoniza o timing de cena com a música instrumental tocada ao vivo por Souza e tem a plateia nas mãos, como se diz – Barreiros lança mão (olha o trocadilho!) de seu palhaço com propriedade, sem ofuscar suas colegas –, ainda assim a montagem não desenvolve o seu potencial para a teatralidade. Possui uma boa equipe para isso, mas soa engessada. Não enreda uma história, mas quadros acomodados à exposição dos jogos de mãos. A dramaturgia é frágil. Troca representação por demonstração. Reduz a plateia a auditório. E provoca indignação: qual a elevação humanista em repetir marcas de carros numa das brincadeiras, induzir desde já ao entorpecimento pelo consumo que é uma das principais pedras no meio do caminho? Eis algumas das contradições de Palmas pra que te quero, que envolve o público com a mesma força com que o afasta.

 

A anfitriã Companhia do Abração, idealizadora e realizadora do Pequeno Encontro, apresentou três espetáculos que, vistos em conjunto, dão conta do seu percurso histórico e estético desde 2001. Antes de entrar no mérito dos trabalhos, há um paradoxo evidente na programação, como apontamos na segunda roda de conversa ocorrida na sede do grupo, na manhã de segunda-feira passada. A Abração organiza o evento, ocupa as sessões de abertura e de encerramento. E a matemática se impõe inquiridora feito uma criança. Por que a Abração conta três peças em cinco sessões? Por que a Filhos da Lua apresenta uma obra duas vezes? Por que as demais companhias têm uma montagem cada para a respectiva tarde?O desequilíbrio pode dar margem a ilações que, ao menos no âmbito do discurso e da prática verificados nas duas semanas, inclusive traduzidos em cena, não corresponderiam. A diretora Letícia Guimarães diz ter clareza quanto ao desdobramento e o atribui ao aperto no patrocínio público nesta segunda edição, o que implicou suspensão de montagens previstas e inclusão das três peças de sua companhia, com cachês reduzidos à metade, para cumprir as três semanas da agenda reservada no teatro. Essa disponibilidade tem a ver também com a capacidade de compreensão, planejamento e execução dos artistas da Abração ao revezar várias funções na sede administrativa, no afluxo de público espontâneo e vindos de escolas e entidades sociais convidadas que lotam as sessões no José Maria Santos. E tudo atrelado ao desafio maior do intérprete faz-tudo que é atuar por inteiro em meio às demandas.

 

De volta à recepção dos espetáculos, Sobrevoar (2010), Estórias brincantes de muitas mainhas (2007) e Sonho de uma noite de verão (2002) triangulam procedimentos constitutivos de uma linguagem que mira obsessivamente o apuro. A dramaturgia assinada por Guimarães e consolidada em colaboração galga o universo existencial mais comum aos adultos e, nem por isso, tratado com concessão. Estão lá a velhice e a ancestralidade, por exemplo. A linguagem cênica apóia-se na animação de objetos e de bonecos sem virtuosismo, combinando-a organicamente a um ator-criador, sujeito mais propositivo na partitura corporal e autônomo nas veredas simbólicas que abre no contato ao vivo.

Sobrevoar espreita o desejo humano invejado positivamente de deuses como Ícaro, o voo como metáfora da liberdade. Nada mais óbvio que evocar Santos Dumont, convenhamos, mas o texto o faz escapando ao lugar-comum. O álibi é visitar a infância do pai da aviação com inventividade. Registros enciclopédicos ou históricos não têm vez. As asas são da imaginação: livro, relógio, chapéu, bola, enfim, tudo se transforma ao contracenar com o quarteto de atores. É assim que módulos quadrados do cenário viram, súbito, o 14 Bis projetado no início do século XX. Surpresas assim causam reações como a da criança que soltou um “Nossa!” quando se encantou pela mágica da carta enviada de um ponto a outro do palco por meio do sopro invisível de um dos atores do elenco formado por Felipe Custódio, Moira Albuquerque, Negra Silva e Simão Cunha. Os senões vão para certos instantes em que a estridência da música concorre com a fala e o desenho de luz é efusivo. Acreditamos desnecessário o segundo final do espetáculo, como se fosse uma nota de rodapé para comunicar uma mensagem da qual já tinha dado conta: sim, todos devemos e podemos voar em todos os sentidos na vida. O adendo de um número musical à la cultura americana destoa do que vimos até então, uma mistura à brasileira e à francesa, ou seja, menos massificado.

Em Estórias brincantes de muitas mainhas, o título adianta o tom fabular que o prólogo endossa: uma coreografia bem bolada no jogo dos atores com xícaras, pires e bule vermelhos dotados de outras funções, como a do nariz de palhaço. Albuquerque, Cunha e Custódio encaram velhinhos narradores de histórias, imigrantes ucranianos naturalmente inspirados na colônia daquele país radicada em Curitiba. Suas lembranças são estimuladas por uma explosão na riqueza de detalhes. O tapete, os figurinos e objetos coloridos, as geometrias e sincronismos temporais são atrelados à noção da memória ancestral, como na cena da sereia no mar, talvez uma remissão ao líquido amniótico, à Pachamama da cultura indígena quéchua, a Mãe Terra. O espetáculo capta a idéia de universalização de laços e sentimentos do pertencer, do elo de origem, do cordão umbilical rebobinado.

Também uma trupe de velhos está reunida para o chá da tarde em Sonho de uma noite de verão, na pele de Fabiana Ferreira, Cunha, Silva e Custódio. Shakespeare é pretexto para o encontro desses contadores de história com o bardo inglês, sendo o desempenho de Ferreira mais lapidado, na minúcia corporal e rítmica, porque no elenco desde o início, há nove anos, enquanto seus colegas substituem papéis no repertório. O roteiro de desencontros de dois casais, seres enamorados entre reis, rainhas, fadas e duendes, vira prato cheio para a Companhia do Abração dar vida a sapatos, gravatas borboletas, nos convencer da floresta encantada despojada e demarcada com panos e bambus cênicos. Desde o primeiro espetáculo do núcleo, portanto, o relógio da vida e seus ponteiros da aurora e do crepúsculo já estavam pulsando. 

* – O jornalista e pesquisador de teatro Valmir Santos acompanha o 2º Pequeno Grande Encontro de Teatro para Crianças de Todas as Idades a convite da organização.

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Teatro Apolo, segunda-feira, 30 de novembro de 2009, 19h. Primavera.

 

Vamos começar pelo que é o coração de um festival: os seus espetáculos. Esta edição do Festival Recife do Teatro Nacional fez um retrato razoavelmente equilibrado da produção brasileira, considerando-se as dimensões territoriais do país e suas representatividades em termos de produção teatral. Leia mais

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No ano em que o Próximo Ato passou a demarcar o Teatro de Grupo em sua agenda de ação e reflexão, em 2006, a Bienal de São Paulo trazia como eixo curatorial a indagação Como viver junto, problematizando modos de pensar, criar, produzir e ler a arte.  Três anos depois, os desafios do convívio catalisam o encontro internacional de teatro contemporâneo realizado em São Paulo de 3 a 7 de novembro de 2009.

Entre os aspectos que perpassaram os cinco dias, de uma terça-feira a um sábado, estão os dilemas internos da vida em Grupo de Teatro, as forças e as contradições que a movem. Como o teor crítico (ou a falta dele) nas concepções formais e práticas que culminam apresentações ou intervenções; a parceria (ou a falta dela) com outros coletivos; e a militância (ou a falta dela) para exigir políticas culturais de direito em níveis municipal, estadual e federal.

 

O relato que segue não pretende esmiuçar as sessões de palestras, debates e a Vivência felizmente incorporada à programação. Antes, interessa-nos a condição de espectador privilegiado a relacionar essas instâncias e propor uma narrativa que, tomara, permita vislumbrar as potencialidades e as tensões dessa modalidade dinamizadora da relação teatro-cidade nas últimas duas décadas. Uma contracenação, a rigor, parte dela substancialmente antagônica ao lugar-comum do mercado.

Esta 7ª edição do Próximo Ato – Encontro Internacional de Teatro Contemporâneo não pode ser lida dissociada das três anteriores que versaram sobre formas coletivas de criação, organização e sustentabilidade (2006); sobre a provocação glauberiana “Nossa estética é a nossa fome?” (2007); e sobre experiências e formas na produção dos Grupos (2008). Soma-se a descentralização “sudestina” que permitiu antenar minimamente as demais regiões do país com representantes do Norte, Centro-Oeste, Nordeste e Sul, nas edições de 2008 e 2009, e temos a dimensão do que está em xeque no último ano da equipe de criadores-curadores. Neste quadriênio, foram desafiantes os enunciados lançados por Antônio Araújo, José Fernando Azevedo e Maria Tendlau, percorrendo desde o plano das ideias estruturais até a conversa ao rés do chão cotidiano dos artistas de Grupo, suas socialidades possíveis.

 

Realizada nas duas manhãs e nas duas tardes seguintes à noite de abertura, a Vivência coordenada por Eleonora Fabião despressurizou sensivelmente as convenções de uma assembléia de Teatro de Grupo, quando a maioria dos participantes franze a testa de tanto pensar – e sem pestanejar. Isso está longe de ruim. Mas, nos últimos anos, testemunhamos rodas no Redemoinho nacional, no Fomento paulista ou na Mostra Cena Breve paranaense em que pelejas político-ideológicas pareciam fazer com que se abandonasse o território sensorial do corpo e delegasse tudo às razões da cabeça, ensimesmamento que muitas vezes bloqueava a escuta do outro.

 

As 12 horas da Vivência sorrateiramente intitulada O Encontro entre 11 Movimentos para 78 Pessoas, um Punhado de Gelo, Sete Bolsas e Uma sala reverberaram no plano das ideias, ajudaram a perceber o quanto o foco na experiência criadora, no microcosmo do espaço do Grupo e seus procedimentos práticos, é essa experiência  que pode constituir instrumento para ajudar os artistas quanto a questões como o autoreconhecimento, o conhecimento do outro, a saída para o beco, a sua postura pública, os entendimentos do Eu, da Identidade Grupal, da Autonomia.

Ficou muito claro que o ponto de vista político, o posicionamento perante seus pares, a sociedade e o mundo acaba impregnando a experiência em direção à forma. A poética da cena que vem a público diz por si mesma, seja em potência ou naufrágio, as variantes do risco. A experiência é o motor dessa zona de desconforto, afirma Eleonora, fazendo eco ao espanhol Óscar Cornago, um dos palestrantes, no sentido de “restituir o pensamento à sua condição prática”.

 

Sob o signo da performance (linguagem escovada a contrapelo, guiada pela desautomatização do hábito), Eleonora estruturou um programa de ação minucioso. Seu enunciado, localização, número de pessoas integradas, duração cravada, enfim, todo esse caráter cirúrgico que fundamenta a ação jorrou um princípio de clareza que o espírito coletivo pode estranhar, em princípio. Pode ser refratário ao direcionamento explícito – a imagem dessa atriz e teórica com um cronômetro pendurado no pescoço talvez seja a melhor tradução disso -, mas em nenhum instante a Vivência tangenciou autoritarismo, ao contrário, os jogos foram propositivos, interagiam.

 

O resultado é que o proativismo de Eleonora, sua vigília incondicional, trouxe um referencial dialógico ainda pouco assimilado pelo modo de criação do Teatro de Grupo, esse segmento que alterou sensivelmente o panorama do teatro no Brasil das últimas duas décadas e cujas diferentes gerações, mesmo aquela dos anos 70 e 80, estiveram representadas neste Próximo Ato.

 

A Vivência comunicou uma convicção de presente mais radical. A experiência de dois dias no Centro Cultural São Paulo tirou a noção de Grupo do eixo, colocou em relevo individualidades coletivas às vezes sufocadas. Um dos momentos que mais chamou a atenção foi a proposta da ação de trocar as peças de roupa entre os participantes, instaurando o vínculo entre artistas que talvez nunca tenham botado os olhos no outro à sua frente e se viu ali, despido, descolado de uma máscara social, e chamado à condição de cúmplice na experiência proposta. A troca de energias das peças de roupa entre as pessoas é uma profunda atitude de reconhecimento, um tema caro a este Próximo Ato, como ouvimos em algumas rodas. Reconhecimento. Autoreconhecimento. Todos os artistas mergulharam naquele espaço entre a pele exterior e a pele interior.

 

Outro momento chave de intimismo ocorreu no almoço do primeiro dia de Vivência, quando todos foram comer em locais diferentes, dentro ou fora do CCSP. A proposta era que os artistas, em dupla, se deixassem conduzir pelo colega ao servir o seu prato, com as cores e sabores do seu apetite, mas doá-lo em seguida ao outro – e este também proceder da mesma maneira, sentados à mesa de um restaurante qualquer, à mercê do olhar, do estranhamento e do julgamento dos clientes ao redor. A experiência não deixou de firmar um pacto de confiança. Mais um exemplo de que essas atividades construíram metáforas provocadoras, no melhor sentido, ao universo do Teatro de Grupo. O ato criador como experiência inerente às cerca de 70 pessoas, incluídas as representantes de coletivos dos 26 Estados e do Distrito Federal, esse ato criador demandou parâmetros de uma ética do sujeito, de uma ética de Grupo.

Irrigador de subjetividades, esse coração da performance contagiou o ambiente das plenárias e dos espaços abertos – atividades inteligentemente conduzidas em sedes de grupo, como na coabitação do Vertigem e do Teatro de Narradores na Bela Vista, o popular Bexiga. Subsidiou ainda as audiências noturnas na sala do Itaú Cultural na hora de fruir as visões conceituais de Nicolas Bourriaud e de Hans-Thies Lehmann – este que nos ajudou a desconstruir um tanto da mitomania em torno do Teatro Pós-Dramático que propôs uma década atrás. Modeladas pelo espírito de estúdio, de atelier, de ensaio, a fala crítica desses pensadores circunscreveram as formas de convívio e demonstram que eles são interlocutores atávicos do aqui e agora; transitam sem afetação por searas institucionais da universidade, da curadoria, das editoras de seus livros, da imprensa especializada ou de uma platéia de espectadores e de criadores apaixonados.

 

BOURRIAUD


A experiência teatral encontrou o teor crítico das práticas artísticas nas exposições de Nicolas Bourriaud. Na noite de abertura ele dissertou sobre Formas de Convívio: Os Limites da Coabitação. Minutos antes, tive a primeira visão conjunta dos grupos reunidos e sentados em círculo na arena do IC, um espaço semiaberto e mais despojado do que sugere o design arquitetônico “high-tech” do prédio da Avenida Paulista. Entre os informes de boas-vindas, o organograma delineava a proposta de uma ”vigília dos Grupos em ação no centro da cidade”; a curadoria já articulava a estratégia das lanternas portáteis, mas os detalhes seriam consolidados só mais adiante. Eleonora Fabião observou que era importante não definir antecipadamente as regras de ação; estas brotariam da própria Vivência.

E fomos ouvir Bourriaud trançar suas percepções do mundo da artes plásticas com o Teatro de Grupo – ele é teórico e curador. Nada de manual de instruções, mas de analogias clareadoras, tomando-se por base dois de seus livros traduzidos este ano no Brasil.

 

Durante os anos 1990, Bourriaud debruçou-se sobre uma “nova” geração de artistas europeus que costumava ser rotulada de “neo isso”, “neo aquilo”. Interessava-o a singularidade desses criadores, construir conceitos dentro de sua originalidade. O ponto comum que encontrou: o trabalho deles operava dentro de uma “estética relacional”, um conjunto de práticas artísticas que tem por elemento fundamental a relação. Todos tomavam como ponto de partida a esfera de relação inter-humana. Havia ali uma evolução, intuia. O trabalho desses artistas constituía a linha de fluxo de resistência à transformação das relações humanas em mercadoria.

 

Anos antes, em artistas como o brasileiro Helio Oiticica ou o norte-americano Gordon Matta-Clark, as intervenções colocavam a esfera humana no centro para problematizar a expansão da arte como linguagem. A arte podia se apoderar de todos os elementos da sociedade e se tornar a arte deles. No contexto mais recente da arte relacional, toma-se o horizonte da esfera inter-humana – de como os artistas contemporâneos se relacionam com o mundo através de sinais, gestos. E não importa o material usado, e sim o poder de observação do mundo.

 

Dizer relacional não quer dizer participativo, lembra Bourriaud, cujo postulado de base da Estética Relacional é marxista. Ele de fato se assume um pouco “filósofo materialista que toma um trem no deserto sem saber de onde vem e nem para onde vai”. Para Marx, a essência da humanidade é a totalidade daquilo que fazemos juntos, somos resultado temporal das relações e assim seguiremos responsáveis para sempre, como anotou em seus escritos de 1844, Manuscritos Econômico-Filosóficos, sobre a importância da mediação histórica do trabalho na formação social.

 

Isso determina, a priori, um processo implícito na ideia relacional: a sociedade, qualquer que seja, não é outra coisa que não um roteiro, script de sistemas jurídicos, tradições, costumes, ideologias, etc., aos quais cada uma das nossas vidas de fato obedece. Uma sociedade humana é um conjunto de roteiros preexistentes aos quais nos conectamos, aderimos. Bourriaud crê que o artista decora esses roteiros para reescrevê-los.

 

No registro alternativo da realidade, o artista pode se apoderar de todas as formas existentes, pode se apropriar das formas sociais para desviá-las, pode usar obras anteriores, como objetos, pinturas… Essa é uma atividade fundamental, ao mesmo tempo política e culturalmente atuante. Significa um trabalho de reescritura permanente do script social, do argumento. Significa que o ambiente onde vivemos é nada menos do que uma construção extremamente frágil, sustenta o crítico francês.

 

– Faz 30 anos que ouvimos sobre o pós-tudo, pós-feminino, pós-político, pós-tudo que vocês quiserem. Não sei como vocês se sentem vivendo na periferia da história. É como se tudo já tivesse passado. Isso me deprime. Penso que precisamos sair do pós-moderno. De certa forma, a Estética Relacional é uma vontade teórica de não se basear, se apoiar no neo, no pós, mas sim criar o agora – explica.

 

REINVENÇÃO DO PRECÁRIO


Bourriaud deduz que mecanismos dessa realidade social algo anárquica já nos apontam a precariedade extrema de situações aparentemente mutáveis em que vivemos, um contrapoder, um contradiscurso, enfim, tudo aquilo que o poder nos diz através do conjunto de escritos que ele gera, emite ou propaga todos os dias do ano. O poder nos diz que vivemos numa ordem imutável e que não há nada a ser mudado. Ele cita a Coca Cola, fenômeno de consumo ícone do capitalismo que não se manifesta pela arquitetura do poder, mas pelo seu tempo, a repetição ao longo do tempo dessa mensagem.

– A tarefa política mais importante hoje é manter a chama da precariedade, mostrar que as construções ideológicas, socioculturais que vivemos não são nada mais que edifícios desmoronando… Isso de certa forma vive na arte e esta tenta se manter à altura dessa mensagem. A tarefa do artista é retomar os elementos e retomar os movimentos. Falo da precariedade positiva, essa do artista que nos mostra a fragilidade das coisas, ela responde a outras precariedades organizadas, toleradas pelo poder, como a precariedade social, do trabalho, a precariedade da condição de vida, a precariedade das relações humanas, esse sistema em que vivemos. Um dos pilares sobre os quais vivemos apresentam duas problemáticas que podemos dizer que fundaram a modernidade: a precariedade e a globalização. Elas foram bastante conectadas em algum momento – argumenta Bourriaud.

 

Ele cita que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman enxerga negativamente esse ambiente predatório de objetos e laços descartáveis, essa sociedade que tem horror às coisas duráveis. Já a cientista política alemã Hannah Arendt trata essa questão definindo cultura de maneira exatamente inversa, a cultura como algo que resiste ao ciclo dos costumes, algo que não pode ser tocado por essa rotação rápida como as coisas se organizam hoje.

 

– A primeira utilização que faço da palavra precário é na perspectiva de que, hoje, queremos inventar uma resposta positiva a esse estado de precariedade, queremos inverter a questão da precariedade ou pelo menos inventar virtudes. Não se contentar em dizer: “Eu vou lutar contra o precário através do durável”. Não. Mas integrar o precário ao programa da cultura que é bastante extenso – defende Bourriaud.

O raciocínio dialoga com a angústia da curadoria do Próximo Ato, quando ela diagnostica, como descrito no programa, que “A precariedade econômica, que determina as relações de trabalho e a (des)continuidade dos processos criativos, quase sempre aparece como cerne, muitas vezes tópico único de uma discussão ora mais ora menos politizada”. Para depois questionar a si mesma e a seus pares: “Em que medida essa produção tem sido capaz de elaborar a precariedade que a condiciona e responde efetivamente a ela? Ou mesmo, até que ponto tal precariedade não corresponde a outra, mais ampla e violenta, atravessando a sociedade brasileira como um todo?”.

 

As relações de produção do Grupo, do seu processo criativo e da forma que alcança são afetadas, no melhor e no pior sentido, por esse estado de coisas da precariedade à brasileira, considerando-se de chofre seus percalços de formação, a contar dos quatros séculos de escravidão em apenas cinco séculos de dito Descobrimento.

 

O precário não quer dizer mimetizar o material, a sobra, os restos recicláveis aos quais o batalhão de catadores de lata estão acostumados diuturnamente nas cidades brasileiras. A sustentabilidade evocada aqui é de outra ordem. Desloca do ramerrão dos Grupos pela sobrevivência – esse terreno movediço. O precário torna-se mediação (meio de ação) para se apropriar. “Pouco”, “insuficiente”, “escasso”, “que tem pouca ou nenhuma estabilidade”, “incerto”, “contingente”, “inconsistente”, “com pouca resistência”, “frágil”, “débil”, “delicado”, “que está em más condições e não cumpre a contento seus propósitos” e “deficiente” – eis algumas das definições do dicionário para o precário que, ao artista, urge subverter, construir seu léxico teatral como condição limite, como grito, como ironia, como força motora do Grupo.

 

A atual temporada paulista assiste a espetáculos que acenam justamente com a inclusão do precário como forma, como ideologia, como corrosão das vísceras dos artistas de Grupo, como signo de urgência desses mesmos artistas do efêmero e de seus espectadores oculares na era da impermanência. E justo quando essa modalidade de teatro há anos luta pela continuidade, pela colaboração, pela manutenção, pela verdade presumida do que leva à cena e une – ou deveria unir – os coletivos em suas diversidades.

São sintomáticas as escavadeiras estacionadas no entorno do Teatro Oficina, no último final de semana de Estrela Brasileira a Vagar – Cacilda!!. Tudo em volta do espaço no Bexiga está um tanto fantasmagórico, edifícios e terrenos baldios prometidos como centro comercial ou residencial do grupo Silvio Santos. E isso, óbvio, Zé Celso não dissocia da cena. Mas o que toca em particular nesse espetáculo sobre a jovem Cacilda Becker tateando o ofício no Rio de Janeiro é a passagem em que a personagem e todo o elenco enterram as sementes de um bendito e profano fruto de cacau em uma caixa com terra preta, fofa, a semear uma geração ou as gerações que oxigenaram o teatro na sequencia dela, Cacilda.

 

Identificamos essa matriz numa montagem como Hospital da Gente, que o Grupo Clariô apresenta numa casa de Mauá, na região metropolitana. Onde o teatro não tem tradição, inventa-se. Histórias de mulheres de fibra severina que divisam a margem, mas se põem no centro com muito orgulho, conforme a dramaturgia estruturada em contos de Marcelino Freire. A miséria não é estetizada porque o que está em primeiro plano é o ser mulher, sem prés ou prós feminismos. Adentramos barracos e, no entanto, as moradas humanas são as que mais mobilizam, sem teto, sem marido, sem a filha violentada.

Os interstícios do Teatro de Grupo atravessam até fábula popular. O Clows de Shakespeare, de Natal, pespegou uma varredura em seus sistemas internos, enfrentou crises d’antes não navegadas e faz um bem bolado do cisma – que é seu e de outros coletivos – ancorado como metalinguagem de uma trupe desfalcada de seu personagem principal, o comandante-título de O Capitão e a Sereia. O recurso da peça dentro da peça, a deferência para com o vão entre realidade e ficção e a honestidade com que o Grupo se despe diante do público expõe seu desvelo para com a arte sublinhada em cada objeto de cena, em cada gesto, em cada canção tocada, cantada e assoprada. E La Nave Va, sempre

 

Oficina, Clariô e Clowns de Shakespeare dialogam em suas proximidades e distâncias. Afinal, como diz Bourriaud, qualquer obra gera um tipo de espaço social simbólico. São apenas três exemplos de contextos que certamente estão em curso em outros Estados.

 

Bourriaud contou uma anedota a respeito de seu compatriota Jean-Luc Goddard. Certa vez, durante um encontro com a imprensa, um jornalista fez queixume ao cineasta de que havia detestado seu filme. “Bom, é que você não trabalhou o suficiente”, rebateu o diretor de Acossado. Num contexto mundial de exaltação escalonada da passividade e do consumismo, a própria noção de atividade é um fato que pode ter outras relações possíveis entre obra de arte e aquele que a contempla, reforça o crítico. É mais que isso: é algo de caráter político.

 

– Hoje, a tarefa do artista é criar circuitos e não criar formas estáticas, mas encaminhamentos, passagens. Uma das definições de artista que me interessa hoje é a do artista semionauta, navegador de signos, que rele signos, formas, informações e fatos a priori distanciados entre si, mas por meio dos quais o artista é capaz de reorganizar e produzir uma espécie de circuito de sentidos – conjectura Bourriaud.

 

A extensão do convívio humano passa também pela resistência ao discurso formatado da mercadoria. A mercadoria hoje se apresenta sobre o modo da mentira, invade o discurso político. O discurso publicitário é a ideologia dominante. A arte é também o contradiscurso. Desde Manet, lembra Bourriaud, a obra de arte enuncia o que ela é. Ou deveria ser: o contrário do pensamento único. A extensão do humano é voltar às fontes da humanidade, e a melhor tradução disso está em figuras como o flanador, o “flaneur” de Baudelaire, ou mesmo em Chaplin ou Jacques Tati no cinema, que emanam aquela ideia do movimento irregular e do errar que vem se opor ao positivismo, à racionalização geral da sociedade. O crítico se diz quase convencido de que uma nova modernidade está sendo organizada desde já em nossa época. A Estética Relacional tenta abrigar esse estado ainda gasoso que corresponderia de fato à civilização, que é a globalização, ou aquele que é seu desafio principal: a não anulação do homem dentro desse sistema.

 

LEHMANN E BOURRIAUD


Na tarde do quarto dia do Próximo Ato, abriu-se uma janela extra na programação para um encontro breve, mas substancioso entre Hans-Thies Lehmann e Nicolas Bourriaud. A sala vermelha do IC foi o cenário para os convidados e os participantes, todos um tanto quanto menos formais. Seguindo a linha dialética brechtiana de que o teatro é uma atividade que deve ser feita junta, não só com a mente, mas com as atitudes, mudando ideais políticas de uma forma física, o estudioso alemão disse que percebe em parte da produção de seu país uma volta aos anos 1960, quando as estéticas e práticas passavam pelos happening, pelo contato improvisação, pela intervenção urbana, etc. Segundo Lehmann, o teatro está mudando de objeto para um processo, uma potência para criar situações especificas, para criar relação. Segundo ele, a Estética Relacional proposta pelo colega francês não está longe da forma de Heiner Müller, a saber: “O teatro é um laboratório de imaginação social”. Vamos a algumas partes do dialogo:

Lehmann – O que eu gosto muito, e você fala muito sobre convivialidade, é, digamos, a prática da performance como comer junto, como distribuir alimento junto, reconectando com a história ritual do teatro, de certa forma. Uma relação que abre as mentes para diferentes formas de comunicação. É interessante esse estabelecimento de relação por meio do conflito. Heiner Müller costumava dizer que se há algo em que ele acredita é o conflito. E a tarefa da arte é tornar a realidade importante.

 

Bourriaud – Existe uma espécie de polinização cruzada entre teatro, arte e cinema. Hoje em dia o que é diferente é o lugar da difusão, da distribuição do evento, do objeto. O teatro agora vai para fora do palco, é interessante ver, encontrar os limites do palco para exercer as diferentes disciplinas. E seria mais interessante ainda inventar algo anfíbio, navegar por essas águas tendo como pano de fundo o grande teatro.

 

Lehmann – Perspectiva da qual é possível ver tudo?

 

Baurriaud – Não. Nunca se pode ver tudo de tudo, mas a estética tradicional disse que concentrando você conseguiria ver tudo… É uma imagem caleidoscópica. [Ele fala em moldura temporal para o espectador, mas não capturei esse trecho]

 

Lehmann – O teatro está tentando se afastar dessa ditadura da moldura cronológica. Para definir a presença específica do teatro gostamos de usar a palavra exibir. Há um performer no palco ou na mesa e ele é um exibidor, está lá por si mesmo, na sua própria realidade. Mas uma observação: você mencionou instalação de vídeo. Gosto dessa ideia de fracasso no teatro porque ao sair você não viu o que tinha para ser visto…

 

Bourriaud – Existe uma corrente de perda da moldura cronológica e outra da moldura espacial, de fragmentos do tempo, uma grande solicitação dos artistas contemporâneos. Nesse dois casos que se tocam, é interessante pensar a respeito… Cinema e arte são baseados nas ideias de prisão, por isso me surpreende que o sr. está falando em intercambiar propriedades, uma espécie de hibrido…

Lehmann – Estamos no mesmo barco, estamos deixando isso culturalmente atrás de nós. É muito difícil definir o outro na prática teatral. O mais interessante hoje são os atores coprodutores, cocriadores que ocupam todo o espaço da encenação… Se estivermos questionando culturalmente o processo de noção da arte, que poderia ser distinguível de outra prática, podemos lembrar então que a arte por si só é invenção do cotidiano. As pessoas criam suas próprias esferas públicas.

 

Bourriaud – Para mim a arte não é nada mais que uma atividade que consiste em produzir relações com o mundo. Você pode criar relações mediante gestos… [em livro, ele define o verbete “gesto” como “o conjunto das operações necessárias executadas para produzir obras de arte, desde sua fabricação à produção de signos periféricos (ações, acontecimentos, anedotas)”]

 

Lehmann – Voltando a Brecht, um dos aspectos importante da arte durante muito tempo foi o impacto crítico, a possibilidade da arte se colocar ao lado da realidade. Por causa da minha biografia, que passa por Maio de 68, não paro de pensar o teatro como exceção, como uma possibilidade de trabalhar junto, se comunicar, características sem as quais realmente ele não é possível de ser feito. A sociedade é um fracasso nesse sentido. Mas o belo no teatro é que eu vejo isso se manifestando de formas diferentes…

Baurriaud – Todo filme é documentário na medida em que ele é mostrado, disse Jacques Rivette. Qualquer obra é uma espécie de possível modelo social, em pequena escada. A arte cria espaço sobre a vida através daquilo que modifica sua própria realidade ou, no caso, se vemos isso encenado. É um momento de suspensão das regras.

 

Lehmann – No teatro, nós temos esse impacto crítico. E a ironia é um elemento muito forte no trabalho politicamente engajado. Há uma propensão ao distanciamento, ao brincar, acho isso muito normal, isso é produtivo, mesmo que algumas vezes pode parecer dependente de todas as imagens da sociedade midiática. Às vezes, assumir esse discurso pode sugerir fraqueza, mas expõe certa produtividade de ideia do que está acontecendo. Nos anos 1960, a ilusão geral era de não sabermos para onde ir, ainda que não tivéssemos dúvidas de qual era a verdade. Agora, a situação é mais complicada, a configuração do nosso futuro imaginário tornou-se difícil. Isso leva a criar subcomunidades, o que não é muito produtivo. Não tenho tendências a comparar como uma situação negativa em relação à paixão dos anos 60, mas apenas de expor essa situação sociológica diferente; as respostas não podem ser meramente comparadas.

 

ARANTES E LEHMANN


“De quem sou contemporâneo e com quem estou vivendo”. São questionamentos afeitos ao pensamento do filósofo francês Jacques Rancière, entreouvidos no debate de Lehmann com o filósofo Paulo Arantes [grande parte desse diálogo foi transcrito por Henrique Fontes, do Grupo Beira de Teatro, Natal-RN]. Sob o guarda-chuva do Mundo das Coabitações Precárias, sobrenome da mesa deles no sábado à tarde, sala principal lotada do IC, eles transitaram ora pelas artes cênicas ora pelos mecanismos da vida em sociedade, suas leis e seus poderes econômicos e políticos que logicamente afetam micro-organismos da comunidade como um todo e o Grupo de Teatro em particular.

 

Espectador contumaz do percurso de alguns agrupamentos da cidade de São Paulo, Arantes vem contribuindo com reflexões dessa fase histórica dos anos 1990 para cá, quando o mundo vê “o capitalismo organizacional começar a gerar o desemprego estrutural e configurar uma paisagem social diferente”. A esse desmanche, percebido de maneira controversa no Brasil – afinal, “quando é que esteve inteiro?”, indaga o filósofo -, ele aponta correspondência com a leitura pós-dramática de Lehmann para os procedimentos de construção da cena nas últimas três décadas.

 

Indispensável recuperar aqui o trecho de uma entrevista de Arantes ao jornal O Estado de S.Paulo, em 2007, na qual interpreta o Teatro de Grupo pós-Lei de Fomento, o programa municipal em vigência desde 2002:

 

– Em 1990, o Estado saiu de cena, deixando atrás de si um cenário de ruínas. Ou melhor, “nós” é que saímos de cena. Não que o script anterior fosse brilhante, mas o Estado estava lá porque a livre iniciativa, como diziam os nossos avós, não era assim tão livre nem estava muito disposta a tomar qualquer iniciativa mais enérgica por conta própria. O jogo se inverteu: a razão de ser do Estado é a de intervir vigorosamente para que haja cada vez mais mercado, e não menos. Por isso, caiu a fantasia da reserva cultural, espaço recolonizado como outra fronteira de negócios por meio da alienação de parcelas do fundo público, como nos bons velhos tempos da acumulação primitiva. Contra essa regressão, literalmente bárbara, finalmente reagiram os grupos teatrais de São Paulo, tomando, enfim, consciência de que constituíam de fato um movimento. Como notou Mariângela Alves de Lima (crítica teatral do Estado), pela primeira vez as artes cênicas se articularam como um setor social. Nada a ver com a mera crispação defensiva de uma categoria profissional. Como, afinal, foram à luta e arrancaram uma Lei de Fomento de governantes embrutecidos pela lex mercatoria, pode-se dizer que um limiar histórico foi transposto, por irrisório que seja. Nos tempos que correm não é pouca coisa converter consciência artística em protagonismo político. Foi uma vitória conceitual também, pois além de expor o caráter obsceno das leis de incentivo, deslocaram o foco do produto para o processo, obrigando a lei a reconhecer que o trabalho teatral não se reduz a uma linha de montagem de eventos e espetáculos. Nele se encontram, indissociados, invenção na sala de ensaio, pesquisa de campo e intervenção na imaginação pública. Quando essas três dimensões convergem para aglutinar uma platéia que prescinda do guichê, o teatro de grupo acontece. Mesmo quem honestamente acredita que está fazendo apenas (boa) pesquisa de linguagem, de fato está acionando toda essa dinâmica. O curioso nisso tudo, vistas as coisas do ângulo de um observador vindo de uma faculdade de outros tempos, é que o espírito da Lei lembra muito o de uma agência pública de amparo à pesquisa. Reativou-se, inclusive, a ideia de residência. É bem verdade que os gestores começaram a cair em si e os editais vão se tornando cada vez mais restritivos. Corrijo-me: mais curioso, ainda, seria o caso de dizer: lembraria, caso os CNPqs da vida não transitassem na mão contrária, passando a enfatizar cada vez mais o produto e quase nada o processo de irradiação cultural próprio da pesquisa autônoma; política produtivista de eventos, em suma, é o que agora também se espera de um infeliz condenado a justificar assim sua mera existência intelectual: o ato docente se degrada e a corrosão do caráter é uma questão de tempo. Por isso, são tão animadores os sinais de vida emitidos pelos mais variados processos de pesquisa em curso nos grupos mais imbuídos desse imperativo, aliás, próprio de um gênero público como o teatro. É possível que minha visão esteja ainda contaminada pela lembrança do tempo em que a universidade pensava, mas é forte o sentimento de que a tradição crítica brasileira migrou e renasce, atualmente, na cena redesenhada por esses coletivos de pesquisa e intervenção – dissertou Arantes.

 

De volta ao debate com Lehmann, Arantes afirma que o teatrólogo entende a cena pós-dramática como uma reação à resposta clássica que a arte sempre deu e, por outro lado, uma resposta a um laço social inteiramente dominado pela mídia, pela sociedade do espetáculo. Vamos à conversa deles:

Arantes – Essa resposta pós-dramática, um assunto de minoria no teatro, ela se defronta com a seguinte questão: há uma banalização, uma degradação ideológica. Do drama como tal tornar-se uma linguagem universal, se pensarmos no uso coloquial da palavra drama. Aliás, ele [Lehmann] usa um capitulo para esse uso. Esse uso, senso comum, não é inocente e exprime algo relevante. Há uma unanimidade de que nunca vivemos, com o acúmulo das crises, um período tão dramático.

 

Lehmann – O drama é uma forma de escamotear o conflito. Essa é uma forma de antagonismo catastrófica. Mas essa catástrofe já aconteceu. Ao explicar a dramaturgia de Tadeuz Kantor, certa vez, escrevi que parece que vivemos em uma situação depois do fim do mundo. Uma poética do mundo. Há uma catástrofe ocorrendo, já anunciava Beckett. Quando entra em cena ele diz que o que vivemos não é um período, mas sim um prazo que está acabando, que está vencendo. A cada crise que surge, epidemias ou seja lá o que for, somos avisados de que o prazo está acabando e que medidas drásticas devem ser tomadas. Mas como não há conflito, o drama se banaliza. A resposta do teatro é sair do drama, mas quando se sai o conflito não é encarado. Processos são amarrados aos protagonistas de forma permanente.

 

Arantes – Os conflitos existem entre blocos de poder, interesses burocráticos, estratégias imperiais, etc. A dramatização sempre nos traz esses conflitos de forma falsa. Que nos cega. Não necessitamos de juízes justos, mas sim de juízes que conheçam a lei. No Teatro de Grupo, como é que se responde a isso? Bem, de maneira mais enfática, na dramaturgia das vitimas. A resposta que o teatro deu a esse pós-desmanche foi dessa forma. Um exemplo é o Livro de Jó. Há um acordo tácito onde não tem “eu tô fora,” “eu tô antes.” Todos concluímos que a situação é dramática, emergencial e protagonizada  por vítimas. E essas vítimas não lutam pela reconfiguração de seu espaço social, mas lutam por reconhecimento. Esse massacre apresentado pela primeira vez fez as pessoas reagirem. Acentuo o consenso de que vivemos uma situação em que as vitimas se proliferam. Temos que refletir a partir daí: o que se faz? Talvez isso seja um momento de reflexão. Esse não dramático significa que vivemos em uma situação de emergência absoluta e significa que as providências vão ficar mais drásticas. Há muitas restrições, como no caso das pandemias. O teatro pós-dramático se estabelece na urgência, na vitimização e na resposta pós-dramática dada.

*

Um parêntese. Nesse ponto, são flagrantes as visões opostas dos debatedores. Para Lehmann, o teatro é político na proporção em que anula exatamente o discurso político e encontra abrigo na forma, nos procedimentos da criação. Arantes, por sua vez, parece descrer da transgressão política configurada na cena como tal; só teria lugar fora dela. Esse antagonismo sintetiza, em alguma medida, a confrontação interna nas atuais mobilizações dos Grupos quando a politização às vezes é cobrada em sua praxe tradicional em desprezo do quão uma dramaturgia ou uma encenação podem ser tão poderosas ao comunicar o estado de coisas. Seguimos com o diálogo:

*

Lehmann – Eu acho que talvez haja um pequeno problema: entre a descrição da situação política e a cena artística não podemos fazer relação tão direta. O modelo da dramatização está ligado a uma relação humana. Vivemos num período em que a capacidade de agir se tornou um grande problema. Eu acredito que a narrativa continue, mas a situação chamada de desmanche exige não uma reprodução das realidades políticas, mas, no teatro, poderíamos mudar a forma como percebemos as relações humanas como objetos. A teoria social é mais visível em análises políticas. Mas o teatro exibe uma política da percepção e não a política tradicional. O que é ainda político na sociedade de hoje? Porque tudo parece ser político. Falamos da crise sem nenhum efeito. Esses discursos são pseudopolíticos porque passamos a falar décadas da crise ecológica, mas não discutimos que a crise foi criada a partir de um sistema que obriga o progresso. Não tiramos consequências de nada. Não analisamos os pressupostos e não tomamos direcionamentos. Todas as nossas sociedades têm uma estrutura chamada de polícia e essa estrutura poderia ser questionada pela arte na medida em que nos perguntamos sobre a igualdade. Muitas vezes quando o teatro coloca essas questões há uma reflexão mesmo que sem solução. Certa vez, perguntaram a Jean Genet se quando escreveu As Criadas ele o fez para denunciar os maus tratos sofridos pelas empregadas domésticas. Ele respondeu: “Não, pra isso existem os sindicatos”. O teatro é político à medida que interrompe o discurso político. O teatro pós-dramático precisa ser enxergado sob as perspectivas das artes visuais e da dança, por exemplo. A dança hoje não analisa porque e como as neuroses corporais acontecem, mas elas estão lá. O corpo é esse que está sendo dançado. É tarefa do teatro se afastar da dramatização da realidade e colocar uma voz contra ela. Você disse que não há mais emprego [na sociedade]. A biografia de um trabalho desaparece. Hoje tem que fazer esse ou aquele “bico”, o fator de reconhecimento, de orgulho de saber realizar uma profissão, sumiu. Há aspectos hoje que deixam claro que experimentamos nossa vida em fragmentos, de forma desmanchada. As artes não têm o dever de explicar o porquê de as vidas estarem assim. Essa é uma tarefa da teoria social. Como entender do ponto de vista sociológico? Que se mantenha um distanciamento entre o trabalho estético e a teoria política para termos uma retroação sobre a realidade política.

 

Arantes – Concentrar a dimensão política só na percepção parece arriscada e já experimentada. A concepção de política do Rancière coincidiu com a ascensão do PT, grupos de sociólogos apoiando-se nas teorias marxistas falavam em um espaço de avanços políticos com o partido e isso despencou por razões empíricas. Pela primeira vez a classe trabalhadora fez política, segundo ele. Isso é um análise correta do período histórico, mas não hoje. Ele lamenta o fim da luta de classes com essa ascensão. Para que haja igualdade é necessário que essa classe de trabalhadores requisite essa igualdade; quando a classe trabalhadora se desmancha essa reivindicação se esvai.

 

Lehmann – É um momento para dialogar a distância entre política e estética. […] Muitos teatros políticos não são políticos porque ficam seguindo a mesma ideologia do governo. Critico o teatro que realiza um teatro político e não uma reflexão política.

 

Arantes – O interessante é que o Teatro de Grupo é pós-dramático em grande parte. Vale pelo material bruto que traz à cena e que outros não traziam, nas quais aparecem todos os setores da sociedade num momento em que todas as estruturas viraram pó. E o teatro pegou essa matéria bruta. O problema é como pegamos essa matéria bruta, elaborada, e transformamos isso em política. Não pode terminar na cena, porque senão não é política. O teatro vem funcionando como um teatro de pequenos causas, um horizonte legal. O que causa espanto, num momento em que patrimônio não é respeitado, movimento social ocupa área produtiva… A política está no meio do caminho, a gente está recorrendo a esse parâmetro de honra que tem que ser cumprido. O teatro pós- dramático não cumpre… Nós vamos procurar o desvio, a transgressão, por outro lado estamos a dois milímetros da política pública. Isso se chama gestão, não é mais política. Os conflitos estão aí diariamente, não se trata de outra coisa, maneira pela qual nós vamos administrá-los. São sempre normas consensualmente partilhadas. O teatro está perdendo iniciativa de romper como um acontecimento novo.

 

GRUPOS DE TEATRO DE GRUPO


Não há dúvida de que a modalidade Teatro de Grupo resulta mais madura em termos de autocrítica e consciência de sua capacidade para agir internamente e para intercambiar parcerias de criação e de mobilização entre seus pares, em territórios próprios ou alheios. Tomando-se as primeiras reuniões mais significativas desses coletivos, no início dos anos 1990, é inequívoco o avanço na qualidade dos debates e das conquistas, inclusive em termos de produção, de organização e de construção de linguagem, descontadas as idiossincrasias demasiado humanas. Muitos paradigmas foram quebrados, outros tantos erguidos, mas o importante é perceber a memória histórica construída em tempos recentes. Os Grupos forjaram uma forte representação nas últimas décadas – quer o façam conscientemente, em consonância, quer não. Basta ler os roteiros de espetáculos e das atividades teatrais em muitas cidades para se dar conta, sem dificuldades, dos processos criativos afins.

 

Segundo o espanhol Óscar Cornago, a maneira de se relacionar também pode ser determinada historicamente. Todo grupo humano exprime a forma como se organiza, especialmente se esse grupo se dedica a uma dimensão humana. Pode-se dizer que todo grupo é um documento da forma como se organiza esse grupo. Na sociedade atual, uma grande parte dos trabalhos tem a ver com essa potencia organizacional. Cornago distingue três níveis no trabalho cênico. Primeiro, o modo como o grupo se organiza, reuniões, hierarquias ou não, e por aí vai. Segundo, através da obra que está realizando. Terceiro, o modo como essa obra se comunica o espectador. Os três níveis estão interconectados, correm paralelamente.

 

– Lembro-me de um comentário que ouvi, certa vez, de um encenador argentino. Ele ganhou uma bolsa para trabalhar com Robert Wilson em seu espaço de trabalho [The Watermill Center, EUA], mas só o viu pessoalmente um mês depois. Havia uma distância muito grande em relação às obras que o diretor criava. E isso chega ao publico de alguma forma. Tudo isso tem a ver com um conceito de ponto de partida: convivência. Convivência, sobretudo, como ponto de partida. Chegando a esse ponto, já temos conflito. Temos o conflito de que somos animais sociais, mas não temos política porque não nos sentimos representados. Não me sinto representado politicamente… Se pensarmos cenicamente, um ator em cena vive uma citação de algo. Um ator como signo de um ser humano é também uma citação do ser humano. Uma pessoa na rua já está em conflito, mas sentir o social em termos do conflito, ou formular com certa força essa orfandade do animal social, já não seria pouco. E termino com duas ideias. Uma é a necessidade do espacial para pensar o social. Há uma tendência perigosa de apagarmos o espaço. O social deve ser pensado a partir de cada espaço. A outra tem a ver com o fato desse espaço estar habitado… Trata-se da dimensão biológica – o que ocorre com um e outro no espaço. Situações são conglomerados de atores em que cada um não pode sair de sua pele, de seu cérebro, como citou o filósofo Sloterdijk – afirma Cornago.

 

O mesmo pensador alemão Sloterdijk notou, certa vez, que há décadas giramos em torno de vetores como solidão e engajamento, mas os tempos atuais seriam de cooperação. Pois esse foi um sentido e um sentimento predominante no derradeiro Próximo Ato – que, doravante, dará lugar ao Rumos Teatro, projeto a ser detalhado em breve pelo IC. Numa analogia à razão e à emoção de lidar, os pés subiram pelas cabeças, e vice-versa, com as experiências e pensamentos urgentes partilhados por artistas, pesquisadores e público em geral. O Teatro de Grupo, mote propulsor do encontro, foi cotejado com organicidade e ponderação em suas vicissitudes. Muito saíram mobilizados pela experiência de convívio e pelo pensamento crítico disseminado. Outros, quem sabe, nem chegarão a esta altura do relato por desinteresse, desatenção. Quem dera ninguém passasse imune ao caleidoscópio presencial enredado.

Um reflexo desse espírito de perseverança radia de um painel de 18 metros de largura por 7 metros de altura, uma fotomontagem em preto e branco de artistas e populares registrados pelo arquiteto Luis Saia durante a antológica Missão de Pesquisas Folclóricas que Mário de Andrade encampou em 1938 por povoados do Norte e Nordeste brasileiros. Não por acaso, o primeiro dia da Vivência dos representantes dos Grupos aconteceu num dos pisos do subsolo do Centro Cultural São Paulo, sob os pés daqueles olhares firmes no horizonte. As regionalidades do Brasil urgem ressignificadas por meio dos rostos e corpos do passado e do presente.

 

Uma ancestralidade à espreita que não deixa “integração” tomar o lugar de “vinculação” num documento firmado por coletivos neste 2009, dado o histórico descaso para com aquela gente. A Amazônia Legal não engole mais o desgastado termo da “integração”, seu regionalismo postiço. Muitos malefícios já foram feitos em nome dela. Artistas de Estados daquela região ressalvaram suas especificidades, como a de que a maioria das empresas locais é isenta do recolhimento de impostos – Zona Franca – e, portanto, mesmo a Lei Rouanet redunda letra morta. A circulação de informações é determinante.

Aliás, um trânsito alentador durante o Próximo Ato foi sua ponte com a universidade, uma ponte involuntária, talvez, propiciada pelo calendário da ABRACE, a Associação Brasileira de Estudos de Pós-Graduação em Artes Cênicas, cuja V Reunião Científica aconteceu no mesmo período, no campus central da USP, sob o tema “A pesquisa teórica e os processos criativos na cena contemporânea”. Alguns dos pesquisadores vindos de vários pontos do país estiveram presentes nos dois encontros. É cada vez mais comum encontrar estudiosos circunscritos ao Teatro de Grupo. O Departamento de Artes Cênicas da USP é prova cabal: concentra em seus corredores alguns dos encenadores mais ativos de São Paulo, como Maria Thaís (Companhia Balagan), Sérgio de Carvalho (Companhia do Latão), Cibele Forjaz (Companhia Livres) e Beth Lopes (Companhia de Teatro em Quadrinhos), entre outros.

 

No teatro contemporâneo, o fazer é decisivo. O resultado, nem tanto. Essa máxima lehmanniana pode ajudar a entender a ação real, digamos assim, gerada pela Vivência com Eleonora Falcão, parágrafos atrás. Por volta da meia-noite de quinta-feira – portanto, antes das plenárias e espaços abertos -, os artistas do Próximo Ato juntaram-se aos poucos colegas moradores locais sob o vão livre do Museu de Arte de São Paulo, o MASP. Combinou-se que todos iriam se dirigir ao local, a partir do ponto em que estivessem (hotel, casa, teatro, etc) com uma lanterna em punho piscando feito vaga-lume.

Foram concretizadas duas ações experimentadas na Vivência. Na conformação de “Estrelas de Cabeças Falantes”, título improvisado, um círculo de atores é postado no chão e faz de suas cabeças, juntas, o epicentro. Cada um expressa um texto à revelia, ecoando uma sinfonia de vozes. Em seus pés, encostam os respectivos pés de outros artistas como se expandissem a rede num desenho pentagonal. E esses componentes agregados são também muito falantes, acendendo/apagando a lanterna. Isso dura uns 15 minutos, com a audiência percorrendo as pontas dessas “estrelas” deitadas. Após um breve intervalo, ocorre a segunda performance, quando os artistas sentados reproduzem o som do vento com a boca, uma espécie de assovio mais grave que se revela uníssono aos poucos.

 

A ação do MASP comunicou um jogo lúdico que pode ser confundido com ingenuidade. Foi o jeito improvisado de os Grupos se encontrarem com a cidade de uma forma mais poética, pisar o mundo sensível como um respiro dentro da programação do Próximo Ato. Isso se deu em parte, ainda, porque o horário ingrato para a interação, os poucos espectadores e a própria concorrência de atenção da Avenida Paulista contribuíram para diluir as ações decididas e preparadas a toque de caixa. Ainda assim, os participantes emendaram uma narrativa mínima como se propuseram a fazer. E resultado, como vimos, é relativo.

 

Transpostas da Vivência para o ar livre, as duas ações arquitetaram uma força simbólica que tem a ver com o destino dos Grupos e a disponibilidade de cada um para não deixar afrouxar essa rede informal. Parafraseando o crítico de arte Rodrigo Naves, pode ser que o moinho ainda esteja longe da sua capacidade máxima de produzir, artista e intelectualmente falando, mas o vento continua. Talvez os espíritos nunca estejam mesmo de acordo. No entanto, a trajetória dos Grupos de Teatro de Grupo deixa um rastro de solidez (um engenho feito de erros e acertos). E é por meio dessa solidez que as percepções políticas e estéticas hão de encontrar lugar.

 

Bibliografia:

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

LAGNADO, Lisette e PEDROSA, Adriano. 27ª Bienal de São Paulo: Como viver junto. Guia. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2006.

NAVES, Rodrigo. O vento e o moinho: ensaio sobre arte moderna e contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

NÉSPOLI, Beth. Paulo Arantes: um pensador na cena paulistana. São Paulo, O Estado de S.Paulo, Caderno 2, pp. D8-D9, 15 jul. 2007.

grupos

Histórico do Grupo XIX de Teatro, de São Paulo, integrado ao livro “Hysteria/Hyiene”, publicação independente lançada em 2007.