25.8.1994 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 25 de agosto de 1994. Caderno A – capa
VALMIR SANTOS
O diretor Amir Haddad emana tanta paixão ao falar do seu trabalho, que fica difícil não enxergar nele uma espécie de guru. Maior expressão do teatro de rua no Brasil – 18 anos à frente do grupo carioca Ta Na Rua -, Haddad optou por caminho dos mais difíceis nos tempos que correm: o popular.
“Às vezes penso que o nosso teatro é feito para os excluídos”, afirma. Tirar o teatro da “caixa” (palco italiano) e levá-lo para a rua ou espaço não-convencional foi o ideal abraçado.
Haddad prega um ator que encontre sua verdade, opinião, consiga comunicar-se plenamente. Isso, segundo sua ótica, se dá no teatro de rua, onde a expansão do espaço externo culmina com a descoberta de um espaço interior. “Aí, a liberdade se estabelece entre público e atores, independente de camadas sociais”, acredita o diretor.
Depois de um workshop na Capital, onde também apresentou o espetáculo “Febeapá”, de Stanislau Ponte Preta, Haddad, 57 anos, falou com exclusividade a O Diário.
O Diário – O Tá Na Rua nunca subiu ao palco?
Amir Haddad – Nosso problema não é o palco ou rua. Somos livres da estética ou ideologia estabelecidas pela elite. Detesto quando nos rotulam, nos ‘prendem’ às ruas…
O Diário – Mas então o grupo já levou espetáculos em teatro convencional?
Haddad – A nossa montagem mais recente, “Febeapá”, com narrativas dramáticas baseadas na obra de Stanislau Ponte Preta, estreou primeiro no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, em janeiro de 1993, e só depois, aos poucos, foi sendo ‘desmontada’ para as ruas. Quando se faz um teatro igual ao nosso, é mais difícil conseguir recursos. Raríssimos são os empresários que apóiam. Então, às vezes, fazemos a via normal, do palco italiano, para fazer o que a gente realmente gosta e quer.
O Diário – Como concebe seus espetáculos?
Haddad – O nosso jogo é aberto, por isso muito mais difícil. Desenvolvemos o ator que seja capaz de falar sua realidade, ter sua própria opinião, palavra, que possa exercer seu ofício com uma visão de mundo, com verdade e espontaneidade. Ele tem que romper cacoetes, vícios.
O Diário – E quais são as principais influências nesse processo?
Haddad – No início do Tá Na Rua, há quase duas décadas, não havia qualquer preocupação com esse contexto histórico. Nos reunimos, fazíamos bastante rua e só depois começou a aparecer Brecht, Shakespeare, commedia dell’arte…
O Diário – …Commedia é puro improviso…
Haddad – A commedia dell’arte surgiu há 30 anos, nas ruas da Europa. Não somos passadistas, Ela simplesmente foi incorporada, como outras coisas. Creio que visitamos o século 18, hoje, para pensar o século 21. O palco italiano, ‘caixa certinha’, vai se tornar ‘coisa do século 20’.
O Diário – Como se dá a relação com o espaço em seu trabalho? Como não há uma delimitação formal com o público, tem que ter muito jogo de cintura…
Haddad – É uma parte crucial do nosso trabalho. O teatro hoje é feito em sala italiana, tem conotações e está a serviço de idéias e de uma classe política, a burguesa. Então, o que temos feito é sair da ‘caixa’ para sabermos quem somos. Trabalhos na expansão, não na angústia. Buscamos os gestos exagerados, épicos até.
O Diário – Essa contextualização política não tem a ver com um teatro engajado?
Haddad – Não apresentamos o discurso político, panfletário. Somos mais ideológicos, não políticos. Construímos uma utopia em um momento de demolição. As elites não têm preocupação com o futuro, a não ser se manter no poder. Vamos de encontro aos excluídos, àqueles que não têm acesso.
O Diário – Em sua carreia, você chegou a fazer o chamado teatrão. Depois, se afastou das peças comerciais. Como foi a transição?
Haddad – Rompi com medo, chorando, impludindo, não queria mais repetir fórmulas. Saí dos palcos consagrados. Fiquei praticamente afastado durante três anos… Quando voltei, troquei o certo pelo duvidoso… Não queria o câncer, mas o fluxo. E aí entrou o teatro de rua.
O Diário – Como vê o teatro brasileiro atual?
Haddad – É um teatro muito rico… No Brasil, o problema é que cada diretor quer ser um Brecht… Ele acaba virando o centro da atenção. No Tá Na Rua, a gente dá muito valor ao coletivo, à participação do todos para se atingir uma expressão artística de essência.
Espetáculo de rua conduz à carnavalização
Quando “Febeapá” foi encenada há duas semanas, num espaço da estação São Bento do metrô, na Capital, o público captou muito bem o espírito do teatro de rua. Numa das cenas em que o personagem morre e desaba no chão, soaram os sinos do Mosteiro de São Bento. Abertos para o universo exterior, os atores sabiamente aproveitaram o “timing” da badalada para enfatizar a morte daquele pobre coitado.
Para o público em geral, tudo que a trupe do Ta Na Rua faz é fácil, porque parece que o elenco está o tempo todo rindo, improvisando. Não é bem assim. “Febeapá” é o Festival de Besteiras Que Assolam o País. Por isso, o grupo e o diretor Amir Haddad foram buscar em Stanislau Ponte Preta uma interface da história recente do País, de 64 pra cá.
De fato, o engajamento foi para escanteio. Nada a ver com os Centros Populares de Cultura, os CPCs. Mas o efeito, na prática, é mais poderoso. Não se vê o “Febeapá” do Tá Na Rua impunemente. Os fatos e as versões se cruzam entre os personagens que são o espelho de quem está assistindo ao espetáculo ali – na rua, na praça, na escola.
Executivos e donas de casa, aposentados e meninos de rua, na roda teatral do Tá Na Rua cabe todo mundo. E tudo sob o comando do ‘chacrinha’ Haddad. As músicas, os gags, os exageros, as tiradas do público, tudo conduz a uma carnavalização.