20.7.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, quinta-feira, 20 de julho de 2006
TEATRO
Após tragédias gregas, diretor adapta o romance brasileiro “A Pedra do Reino”
Projeto surgiu na década de 80, mas teve de superar a resistência do escritor paraibano, que temia um espetáculo autobiográfico
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
“Voltei ao meu velho estilo”, avisa Antunes Filho. Ele interrompe um ciclo de tragédias gregas (Sófocles e duas vezes Eurípides, montados desde 1999) e reabre as entranhas do Brasil real da literatura, para citar Machado de Assis, com a teatralização do romance “A Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna.
O sonho cultivado e adiado desde os anos 80 é materializado hoje, com o seu grupo Macunaíma, braço do CPT (Centro de Pesquisa Teatral do Sesc), em pré-estréia no teatro Anchieta, em São Paulo. A temporada começa amanhã. A ponte livro-palco aparece aqui e ali na carreira do diretor, como divisor de águas: em “Macunaíma” (1978), da obra homônima de Mário de Andrade, e em “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” (1986), de João Guimarães Rosa. O último fio-terra com o país, por assim dizer, foi a peça “Vereda da Salvação” (1993), de Jorge Andrade. Ao visitar tal universo, Antunes, 76, diz que se deixa levar pelo espírito moleque. “Comigo o Brasil flui, posso abrir meu coração, não tem esforço como na tragédia grega. É fechar os olhos e a coisa sai; é epidérmico.” Mas às vezes deixa hematomas, como na peleja com Suassuna para convencê-lo da idéia.
Desde o início, há pelo menos 20 anos, era intenção de Antunes tomar por base o “Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta” (1971) e sua continuação, “História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão – Ao Sol da Onça Caetana” (1977).
Quase biografia
Ocorre que, nessa que seria a primeira parte da continuação de “A Pedra do Reino”, Suassuna, 79, se deu conta de que havia cometido um erro de apreciação. “Se você ler os dois livros, verá que o [personagem protagonista] Quaderna que aparece no segundo não é o mesmo do primeiro. Queria fazer um personagem que de certa forma encarnasse o povo brasileiro, e ali ele estava mais reduzido à história pessoal de Ariano Suassuna. Eu parei o projeto por causa disso, mas não avisei o Antunes”, afirma.
Quando o diretor tentou surpreendê-lo com a boa-nova, a teatralização pendia justamente para o lado biográfico do qual Suassuna fugia como o diabo da cruz. Trocaram cartas de zanga. Só retomaram o assunto -e a paz- nestes anos 2000, quando Suassuna leu num jornal de Brasília que Antunes ainda acalentava encenar “A Pedra do Reino” e lhe deu carta branca. “Ele [Suassuna] não é o Quaderna, mas tem muito do Quaderna. É nesse limite que esbarram certos problemas”, afirma Antunes, que manteve a junção dos dois livros.
Utopias
Brasileiro e sertanejo, o narrador atravessa os dois romances oscilando faces de rei e palhaço, de dor e humor que rimam tragicidade. Se Macunaíma é o arquétipo do herói sem caráter, Quaderna é o herói movido pelo moinho da utopia, devagar e sempre.
Como nesse trecho substancial da lavra de Suassuna: “Eu, ao montar no meu cavalo Pedra-Lispe, ao colocar na minha pobre cabeça a minha pobre coroa de flandre de palhaço e de rei -eu galopo também pelas estradas e descaminhos desse meu reino e Castelo da Raça Brasileira, e oponho, assim, às misérias, feiúras e tristezas da vida real, a galope livre do sonho e da desaventura, sentido-me ir, como um Dom Sebastião, talvez grotesco mas indomável, ao encontro de Deus, de meu Povo e da sagrada Morte Caetana- ao encontro da morte que me imortalizará”.
Quem o interpreta é o ator de nome artístico e próprio Lee Thalor, 22, que faz sua estréia profissional após cursar o CPT. Nascido em Goiás, ele diz identificar-se com os traços regional e universal da obra.
Existem mais 19 intérpretes, a maioria em seu primeiro trabalho com Antunes. O grupo assume a direção musical, canta e toca. O palco surge praticamente nu, como a mente do protagonista a ser preenchida por peripécias. Os figurinos e adereços foram criados para remeter à memória a às invenções de Quaderna, por meio de uma pesquisa que inclui a história política da Paraíba e do Nordeste coronelista da década de 30. Há citações ainda à Coluna Prestes, ao Cangaço, à Revolução de 30, enfim, ao início da Era Vargas.
O maior desafio, diz Antunes, é equilibrar os tons picarescos e dramáticos que às vezes não se comportam. Nas entrelinhas, ambiciona a montagem como espelho crítico “diante da imoralidade que presenciamos na política e na atitude de alguns brasileiros”. Leia-se corrupção. Em sincronicidade, como diria Jung, referência obrigatória para o diretor, o teatro abraça duas epopéias: Zé Celso com “Os Sertões” e Antunes com “A Pedra do Reino” (ele assistiu a uma das partes no Oficina e saiu revigorado).
“Se eu pudesse escolher um patrono para a minha carreira de escritor, seria Euclydes da Cunha. É como se “Os Sertões” fosse o Velho Testamento e “A Pedra do Reino”, pelo menos na minha intenção, um Novo Testamento, uma herança de “Os Sertões'”, afirma Suassuna.