24.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 24 de março de 1998. Caderno A – capa
Walderez de Barros e Luís Melo em seus monólogos emocionam o público no FTC
VALMIR SANTOS
Curitiba – Waiderez de Barros (“Tu e Eu”) e Luís Meio (“Nijinsky”) interpretam monólogos neste 8º Festival de Teatro de Curitiba. A programação traz ainda Iara Jamra (“O Caderno Rosa de Lori Lamby”), que estreou ontem. O formato costuma receber críticas, quer pela suposta facilidade em montá-lo em tempos de crise econômica, quer pela exigência maior da entrega/atenção do público, esse ser flutuante cada vez mais acostumado à fácil digestão de entretenimento.
Mas tudo isso ainda é muito pouco para relegar o monólogo. Enfrentar personagem e platéia sozinho é dos maiores desafios que um ator pode registrar no currículo. Walderez de Barros e Luís Melo, cada um a seu modo, fazem um libelo à interpretação solitária nos espetáculos que chegam a São Paulo no mês que vem.
Em “Tu e Eu”, Walderez traz à cena a palavra do afegão Rumi (1207-1273), um mestre versado em filosofia e poesia que legou para a humanidade uma obra repleta de lampejos líricos e espirituais. “Apenas somos quando em nada nos tornamos” – eis um exemplo da reflexão que Rumi propõe na reverência a seu interlocutor, que pode ser um deus, uma mulher, um homem, não importa. Embriagado pelo outro, o personagem evoca a energia solar ou lunar para declarar seu amor universal e incondicional.
Walderez de Barros recupera o olho no olho do espectador, um gesto cotidiano tão elementar quanto distante dos palcos contemporâneos. O prazer da palavra, da trova, toma conta do espaço. Vestida em terno e calça cinzas, divagando entre as pedras, a atriz cativa o espectador com um encanto arrebatador.
O diretor Jorge Takla deposita tudo na atriz, suavizando cenário e luz em favor da poesia. Quem viu Walderez em outro monólogo recente, interpretando e cantando versos do poeta francês Jacques Privet, sabe do poço de energia que ela é. Em “Tu e Eu”, temos simplesmente uma intérprete que faz jus à poderosa mensagem de Rumi em sua esperança na força transformadora do homem e – do teatro, por que não?
Já em “Nijinsky”, a cenografia, a iluminação e a música funcionam mais do que elementos de apoio – elas dialogam o tempo todo com Luís Melo, dirigido pela dupla Rosella Terranova e Ciáudia Schapira.
O monólogo é baseado nos cadernos que o bailarino russo escreveu compulsivamente, por volta dos 29 anos, antes de ser internado na “casa de loucos”, como diz o texto. Não é propriamente uma biografia (pinçela o relacionamento com a mulher, o rompimento com Diaghilev, seu professor).
“Nijinsky” expõe o homem por trás do mito, a loucura sã por trás da fachada de “bobo da corte” que o personagem assumiu para como que despistar os desafetos burgueses do início do século. Um Van Gogh, um Arthur Bispo do Rosário.
Impossível não enxergar na interpretação de Melo os resquícios da fase com Antunes Filho. Está lá impregnado, por exemplo, um ensandecido Macbeth. O ator encontra no seu Nijinsky terreno propício para uma expressão corporal mais acurada afinal, estamos falando de um dos gênios da dança mundial.
É assim que Melo vai preenchendo todo o espaço do palco, se enlaçando nos panos do cenário, saltitando nos quatro cantos, sempre no limite da consciência que precede a loucura. Ao contrário da imobilidade e parcimônia de “Sonata Kreutzer”, pulsa aqui o devaneio, o instinto, a porção anima que referenda Kazuo Ohno – não à toa, ele surge com um vestido rendado que remete ao dançarino japonês na célebre coreografia “La Argentina”. Enfim, um Melo como nos bons tempos.