1.6.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 01 de junho de 1997. Caderno A – 4
Evento tradicional Ibero-Americano, na Espanha, aperta orçamento para 12ª edição em outubro
VALMIR SANTOS
O Festival Ibero-Americano do Teatro de Cádiz, na Espanha, chega à sua 12ª edição com os cofres em baixa. Para se ter um idéia, a principal porta do teatro latino na Europa tinha, cinco anos atrás, um orçamento de US$ 2 milhões. Para a edição de outubro próximo – entre os dias 16 e 15 -, a organização conta apenas com US$ 350 mil. “O Festival de Cádiz é como a própria arte do teatro, que sempre dizem que está em crise”, raciocina o diretor artístico do evento, o espanhol Pepe Bablé. “Oxalá sempre esteja, porque a vida é crise”. Ele acompanhou o Festival de Teatro de Curitiba, em março, e conversou com O Diário.
Lançado e 1975, o Festival Ibero-Americano de Cádiz nutriu sua importância histórica abrigando os principais grupos da vanguarda de teatro latino. No final dos anos 70, início dos 80, havia uma acentuação política. O engajamento explícito tinha seu espaço de expressão contra os regimes autoritários em voga em muitos países.
“Era uma época áurea, de redescobrimento do teatro, e tínhamos muito apoio”, lembra o organizador. Essa perspectiva de palco militante foi diluída com a queda de todos os muros. A partir dos anos 90, a cidade turística de Cádiz bateu de frente com uma “agonia econômica” que se estende até os dias de hoje.
Se depender deste homem que carrega o teatro na veia – seus descendentes familiares fundaram a companhia de bonecos mais antigos do mundo, a espanhola La Tia Norica (1750), a qual ele segue dirigindo -, o festival vai dar a volta por cima.
“Não vamos jogar a toalha”, promete Bablé. Além da prefeitura de Cádiz, o festival tem apoio do Ministério da Cultura da Espanha, da Junta de Andaluzia e da universidade local, entre outros organismos.
Para a edição deste ano, a intenção é reunir grupos de seis ou sete países (no ano passado, foram nove). Do Brasil, está praticamente fechada a apresentação da peça “Deadly”, com o grupo No Ordinary Angels, encabeçado pelo ator Rodrigo Matheus e por uma atriz da Nova Zelândia. Foi dos espetáculos que Bablé mais admirou em Curitiba – cita também “Tristão e Isolda”, de Enrique Diaz e sua Cia. de Atores do Rio de Janeiro.
A programação inclui ainda o segundo Congresso Ibero-Americano do Teatro, com enfoque para o teatro pedagógico. Serão 12 dias de reflexão, “um escritório vivo e orgânico do teatro latino”, acredita Pepe Bablé. Todo ano, Cádiz realiza uma mostra temática sobre determinado país. A intenção é apresentar um leque cultural e artístico, com exposições, shows, peças, etc. No ano passado, a Colômbia foi contemplada. Neste, quem ganha destaque é o México. Ano que vem, o Brasil deverá ganhar a sua vez – pelo menos é a intenção de Bablé.
Uma característica muito importante do festival é a celebração do encontro entre os grupos. “A gente promove um contato de pele, de união, de troca sobre a arte da representação”, afirma o organizador. Comparado ao aparato empresarial de eventos como o de Curitiba, por exemplo, Cádiz é provavelmente o último dos festivais românticos. Não no sentido depreciativo d termo, caduco mas no que propõe como alicerces básicos; a pesquisa da linguagem cênica, idiomática, um diálogo com todo o continente.
Bablé quer ir mais longe. Sonha com a transcendência da concepção do teatro. Deseja uma “casa do teatro latino-americano”. É uma visão antropológica. “O homem nunca pôde abandonar sua terra; é preciso cultivar Cádiz pelo resto da América”, argumenta Cádiz. De fato, é a mais americanizada das cidades européias. A cidade possui 150 mil habitantes e 30km de praias.
Cabeça e, por extensão, coração do festival Bablé foi autor durante 21 anos. Agora, cuida da direção da La Tia Norica. No ano passado, ele montou “El Montaplatos”, Herold Pinter. Para o próximo, quer levar ao palco uma peça do dramaturgo francês do momento, Berrnad Koltès, que explora a violência urbana deste final de século.
Quando à mostra que conferiu em Curitiba, Bablé identifica um predomínio do papel do diretor. “Desaparece o ator e o público sai prejudicado, porque precisa de uma comunicação mais de pele, direta”, raciona. Para ele, o teatro tem poder de fogo para impactar e comover revelando que o mundo não está tão bem como a mídia anda pintando por aí. “O autor tem esta força da palavra e a gente precisa ir ao teatro escutar a palavra viva e não ser inválido pelas imagens, como acontece atualmente.”
Viotti dramatiza a arte do encontro
O dramaturgo Plínio Marcos comemorou seus 40 anos de teatro com uma conversa-espetáculo. Surgia como ele é, sem qualquer resquício de distanciamento (como maquiagem, figurino ou iluminação estilizada). Não havia personagem que não ele mesmo, em luz geral, texto improvisado. Agora o veterano Sérgio Viotti, 36 anos em cena, vai por um caminho semelhante, no qual o público pode perder um entretenimento convencional, mas ganha na saudável transferência da oralidade que o tempo humano se incumbiu de escantear aos poucos. E, outro detalhe, no mesmo palco da Cultura Artística.
Por mais que se queira acentuar a interpretação, a magia do vão público-espetacular, Sérgio Viotti é um personagem de si mesmo em “Humoresque”, espetáculo que tem um fundo autobiográfico encerra hoje a sua participação na atual temporada teatral paulistana.
Seu diretor, Dorival Carper, o deixa bastante à vontade. Paletó e gravata, em tom formal, um humor quase britânico – aliás, que tem um quê de Hitchcock que deixa um suspense no ar -, Viotti vai citando amigos como Sofia, Luci, Agenor, enfim, personagem das suas reminiscências que se tenta transmitir ao espectador.
Ainda esboça uma nuance de voz, uma expressão corporal, sutil – mas todos os tipos, sem a pretensão do humor rasgado, apresentam poucas variações. “Depois dos 50, sempre a gente acorda com uma coisa doente”, conta Viotti – narrador, com uma pitada de sarcasmo. A intenção é sempre pela via do humor.
Sérgio Viotti é homem de palco, de televisão. Usa toda sua versatilidade, apesar de alguns limites da idade. É um proseador que explora os recursos faciais e gestos pequenos, sempre circunscrito ao miolo do tablado. Ali, em pé ou sentado, ele comanda o bate-papo, relatando seus “causos”.
“Humoresque” celebra o encontro. Um artista veterano que soube lavar o ofício com amor e dedicação. Com coragem e disposição para superar muitas coisas e chegar à condição de criar seu próprio personagem, sem precisar de máscara. Talvez esteja aí o ápice para quem vive do (e para) o teatro.
Humoresque – Texto e interpretação: Sérgio Viotti. Direção: Dorival Carper. Última sessão hoje, 18h. Teatro Cultura Artística (rua Nestor Pestana, 196, Vila Buarque, tel. 258-3616). R$ 20,00. 60 minutos.
Bill T. Jones globaliza os movimentos
Coreógrafo passou por São Paulo na semana e impactou com magia da sua dança universal
Os bailarinos da companhia atingem, durante a apresentação, uma universalidade de gestos e movimentos que não o identificam geograficamente. São bailarinos do mundo. A companhia do coreógrafo norte-americano Bill T. Jones dançou em São Paulo, na semana passada, e deixou seu recado de globalização da dança, capitalizando-a com moeda humana.
A estréia, numa noite tumultuada, marcada por atraso de uma hora, tinha tudo para atrapalhar. A tensão do público foi convertida em energia logo que abriram-se as cortinas do Teatro Sérgio Cardoso, por conta da atuação de Miguel Anaya e Christian Canciani em “Soon” (1988).
Síntese
Na coreografia seguinte, “After Black Room” (1996), a companhia Bill T. Jones/Arnie Zane parece sintetizar seu momento atual. Os corpos mergulhados em penumbras e cores desenham um vocabulário de muita introspecção. É um trabalho que exala a dor no que ela tem de pulsão de vida.
Bill T. Jones, soropositivo, que perdeu o companheiro Arnie Zane, vítima de Aids, sabe como ninguém do que está tratando. Toda a sua dança tem essa perspectiva de urgência, de finitude. O coreógrafo não tem tempo a perder e quer viver até o infinito.
Uma coreografia, “Lisbon” (1977), por conta dos percalços técnicos que impediram a afinação da luz, acabou sendo excluída da programação da primeira noite. O encerramento se deu com “Some Songs”, em que o grupo vai num crescendo, num jogo de luz e música, até provocar a catarse na comunhão com o público.
A essa altura, pouco mais de meia-noite, só restou aplaudir e ovacionar os rapazes e garotas de Bill T. Jones, tão próximos do Brasil quanto da África ou Estados Unidos, o berço deles. O coreógrafo subiu ao palco, juntou-se ao elenco e foi reverenciado de pé pelo público. É um gênio do movimento.