30.4.2005 | por Valmir Santos
São Paulo, sábado, 30 de abril de 2005
TEATRO
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Na era da sublimação da individualidade, paradoxalmente, é quando ela escorre cada vez mais pelas mãos, tantas as forças contrárias. É por aí que o grupo Fora do Sério, de Ribeirão Preto, caminha para levar à cena a sua versão do romance “A Ilha do Dr. Moreau”, clássico do escritor inglês H.G. Wells (1866-1946).
Narra a história de um náufrago resgatado para uma ilha no oceano Pacífico, onde um cientista recria a forma humana a partir da remodelagem física de animais, um processo de vivissecção, no qual a dor poderia trazer à tona a “humanidade” dessas criaturas.
A encenação do Fora do Sério poderia pegar carona nas polêmicas em torno da clonagem, célula-tronco e que tais, mas preferiu o plano da filosofia. “O conhecimento é ampliado a todo instante, muitas vezes representado por instituições religiosas e científicas. Mas, ao mesmo tempo em que as novidades edificam o ser humano, podem enquadrá-lo em dogmas, a liberdade sofre manipulação”, diz o diretor Dino Bernardi, também responsável por argumento e concepção. A dramaturgia é assinada por Amir Abdala.
Segundo Bernardi, Welles captou bem as contradições sociopolíticas do final do século 19, colocando-as em xeque sob o ponto de vista da ciência, mas não só. “Wells foi um escritor de antecipação, não de ficção. Tudo o que escreveu praticamente se tornou realidade”, afirma o cenógrafo Jair Correa.
No espetáculo, um quarto de uma instituição religiosa, quarto de uma pessoa desmemoriada, serve como metáfora para a ilha.
Diante de personagens e situações de suspense, o espectador também experimentará uma trajetória de perdição, como a do narrador de Welles, Edward Prendick, que na ficção sobrevive ao naufrágio e, mais que isso, às castrações que sofria num ambiente sombrio e hermético. (Ainda que, retornando à civilizada Inglaterra, viria a notar que muito do que o dr. Moreau experimentava já se tornara regra cotidiana.)
Criado há 16 anos, o Fora do Sério é conhecido e premiado pela apropriação da linguagem da Commedia dell’Arte, movimento teatral popular surgido na Itália no século 16, que se utiliza principalmente de máscaras. Aqui o grupo busca outro registro. Não que as máscaras, como se viu em “Mistério Bufo” (92) e “Auto da Barca do Inferno” (02), tenham sido abolidas; antes, recriadas.