27.4.2005 | por Valmir Santos
São Paulo, quinta-feira, 27 de abril de 2005
TEATRO
Aos 70 anos, autor participa, no Sesc Ipiranga, em São Paulo, de evento que resgata peças que criou com Augusto Boal
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Para Gianfrancesco Guarnieri, 70, é mais fácil abrir uma peça com música composta do que com um protocolar “cena 1”. Ele fez assim em alguns dos cerca de 25 textos que escreveu, muitos deles musicais, como “Arena Conta Zumbi” (1965) e “Arena Conta Tiradentes” (1965), em co-autoria com Augusto Boal.
Trechos das peças serão encenados amanhã e sexta-feira, no Sesc Ipiranga, em São Paulo, dentro do projeto “Em Cena, Ações!”, que relembra ícones do repertório teatral brasileiro dos anos 60 e 70, em plena ditadura militar.
Hoje é dia de hemodiálise para Guarnieri. São três sessões por semana, enfrentadas com mais humor e esperança do que há quatro anos, quando iniciou o tratamento. Na tarde do último domingo, após almoço em família, Guarnieri recebeu a Folha em sua casa, na serra da Cantareira. Ao lado, a mulher Vanya Sant’Anna, 61, socióloga com quem está casado há 40 anos e com quem também contracenou em “Zumbi”.
EDU LOBO – O “Arena Conta Tiradentes” tinha músicas de Caetano, de Gil, de Sidney Miller, Theo de Barros e daí por diante. Eram muitos. Enquanto “Arena Conta Zumbi” tinha um autor só. Sem querer desfazer dos outros, era um só com essa grande responsabilidade. O Edu Lobo era fantástico; moçíssimo, tinha acabado de ser premiado no Festival da Excelsior [1965, com “Arrastão”, parceria com Vinicius de Moraes e interpretação de Elis Regina]. O melhor mesmo é quando você tem um compositor com o qual se afina, conversa, vai junto, aí é muito legal. O Edu ficou com a gente. Éramos dois tímidos, uma coisa terrível. Eu perguntava: “Dá para tocar?”. Ele respondia: “É bom”. Ficamos nessa dois dias, até que chegamos a coisas que realmente nos entusiasmaram.
PÁTIO DOS MILAGRES – A única coisa que a gente poderia fazer era sobre a história brasileira, porque aí ninguém cobraria, não proibiriam logo de cara. Chegamos à conclusão de que Zumbi seria realmente fantástico. Foi o início de um intercâmbio muito grande entre nós e os diversos setores das artes, desde instrumentistas, compositores, atores, jornalistas, enfim, eram todos. Parecia que um fio começava a se juntar. Aquilo se tornou realmente um pátio dos milagres, no bom sentido. Vinham pessoas de outros Estados e se juntavam lá no Redondo [bar e restaurante na esquina da av. Ipiranga com a r. Teodoro Baima, em frente ao Arena, reduto de artistas e intelectuais].
DOENÇA – É uma insuficiência renal crônica. Essa aí, ou você fica fazendo hemodiálise, três vezes por semana, como eu, ou faz um transplante. Ainda bem que existe a hemodiálise, sempre agradeço. Após quatro anos, sinto-me mais animado. A doença dá uma depressão terrível, aquele cansaço. Não é moleza, não. Mas, ao mesmo tempo, não é dizer: “Que terrível, morreu”. Morreu o escambau. Está aí e vai em frente, rapaz, com todo o sorriso de felicidade que tem. A ciência trabalha com essas tecnologias todas e, puxa, te dá um rim novo. Uma injeçãozinha e uma maquininha te viram o sangue de cabeça para baixo. Estou discutindo com os médicos para saber se vale a pena tentar o transplante ou se deixa para lá.
REALISMO SOCIALISTA – A questão da transformação, eu acho que continua. Não escrevo nada que não vá transformar. Agora, ao mesmo tempo, não posso me esquecer daquela tendência à ingenuidade na nossa juventude. De achar que vai dar tudo certo, é assim mesmo, ah, não tem galho, porque a gente sempre termina ganhando. Depois, percebemos que não era nada disso. O que realmente não admito é deixar a bola cair. Há momentos em que cai; puxa, tudo é uma bosta. Mas isso é um momento e, depois, deixa de frescura, bicho, vai em frente.
OS PORQUÊS – E tem o lado que eu me preocupo cada vez mais, que é com as grandes questões filosóficas, os porquês disso, daquilo. De onde vem a vida? Vou lá saber… Aí começo a rir. Perguntar para mim mesmo é covardia. E é lindo você pensar de onde veio e para onde vai. Eu talvez me preocupe mais para onde vou. Mas sei que para onde vou terei uma calma. Se você me perguntar se tenho medo da morte, não tenho, me enturmo com o que vier. Eu tenho medo do sofrimento. Eu sei que o que vier vem de bom.
OTÁVIO, TIÃO E AGILEU – Para imaginar esses personagens [de “Eles Não Usam Black-Tie” e “A Semente”, ambas sob o ponto de vista dos operários] na atual sociedade brasileira, é preciso colocá-los imutáveis. Seriam daquela época vivendo hoje. Acho que eles enlouqueceriam, não agüentariam. Têm coisas sólidas na cabeça, a questão moral. Esses caras não mudariam nada, possuem uma ética brutal.