22.11.2005 | por Valmir Santos
São Paulo, terça-feira, 22 de novembro de 2005
TEATRO
Novo espetáculo de Ivaldo Bertazzo e Dança Comunidade expõe desigualdade social de Brasil e África do Sul
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Passo a passo, o coreógrafo Ivaldo Bertazzo constrói uma identidade possível para um teatro musical brasileiro mais original na incorporação da dança e da música. Desde o início da década, ele monta espetáculos corais que incluem estudantes das periferias de São Paulo e Rio de Janeiro.
A partir de “Samwaad – Rua do Encontro” (2004), o projeto ganhou status de grupo, o Dança Comunidade, berço para profissionalização de jovens entre 14 e 29 anos.
Eles podem enveredar pelo fazer artístico ou pelo trabalho social, por exemplo, o futuro dirá. Por enquanto, dançam para a pré-estréia nacional de “Milágrimas”, na próxima quinta-feira, no teatro do Sesc Pinheiros em São Paulo.
No palco, 41 dançarinos-cidadãos vinculados a sete ONGs (organizações não-governamentais) dos extremos da cidade. Fazem a travessia de uma ponte que os levam à cultura popular da África do Sul, por meio do canto e da dança. No mesmo caminho, com atalhos outros, o grupo chegou à Índia em “Samwaad”.
Não dá para pisar o continente africano sem falar de exclusão, com a qual o Brasil também se alinha. “Ouso dizer que a idéia desse trabalho é fazer a contaminação cultural do lado de lá, na periferia”, diz Bertazzo, 56.
Ao lidar com suas carências, afirma, os estudantes se revelam “soberbos em sua existência fresca, capazes de transformar qualquer coisa em algo imediatamente criativo”.
Bertazzo vê no jogo de cintura e deslocamento natural desses adolescentes pela cidade (trem, metrô, ônibus, a pé) potencial para ir mais longe. Daí o grau de exigência e aperfeiçoamento a cada novo espetáculo.
Nos primeiros ensaios de “Samwaad”, diz o coreógrafo, seus corpos comunicavam insegurança quanto à capacidade de se expressar diante do público. As amarras e as travas musculares foram diluídas aos poucos.
“Isso era natural para quem tinha dúvida até em sair de casa para passear com os amigos na avenida Paulista, por causa do apartheid social monstruoso em que vivemos”, diz Bertazzo.
Agora, a identificação é mais direta em se tratando da cultura africana. “Milágrimas” quer transcender estereótipos de uma inclusão da periferia fixada na batida perfeita da lata. Quer ampliar o trânsito para além da base percussiva.
A diretora-assistente, Inês Bogéa, crítica de dança da Folha, diz que uma das mudanças perceptíveis na nova coreografia é a introdução do canto.
Além de trabalhar o corpo, foi preciso trabalhar a voz. Entre as fusões Brasil-África do Sul, haverá o canto à capela em algumas passagens, fruto de intercâmbio com o grupo Kholwa Brothers, criado em 1990.
Liderados por Ziboneli Derrick Mlambo, os músicos-dançarinos passaram dois meses e meio no projeto Dança Comunidade, ensinando canto e dança.
“Os meninos e meninas estão participando mais ativamente da montagem. Foram desafiados a criar improvisações, o que ajudou bastante na solução dos espaços da cena”, afirma Bogéa, 40. Surgiram inclusive solos e pas-de-deux, repletos de autonomia.
Além de ensaiar -média de seis horas diárias, seis vezes por semana-, os artistas em profissionalização tiveram aulas complementares de lingüística, saúde e história da dança.
“Milágrimas” também se desdobra em livro e CD. A trilha sonora ganha lançamento com o mesmo título do espetáculo, sob direção musical de Benjamim Taubkin e Arthur Nestrovski, articulista da Folha. Aliás, o nome do espetáculo evoca letra de Itamar Assumpção e Alice Ruiz. O CD com 11 faixas (R$ 20) traz participações de músicos convidados, como Sapopemba, Anelis Assumpção, Dimos Goudaroulis e Teco Cardoso.
A socióloga Carmute Campello organizou o livro “Tenso Equilíbrio na Dança da Sociedade” (ed. Sesc, R$ 25, 240 págs.), que reúne ensaios, artigos e fotos sobre o universo do Dança Comunidade.
Participam especialistas em antropologia, urbanismo, administração pública de cultura e três romancistas, entre eles Ferréz e Paulo Lins (autor de “Cidade de Deus”), que discorre sobre ficar “em pé de igualdade com o ser humano de qualquer época ou lugar”, ele que nasceu e foi criado na periferia do Rio.
“E a molecada vai lendo as ‘coisas”, vendo que o resto do mundo não é tão grande e distante, conseguindo se expor sem o temor natural da periferia, tomando mais ciência do corpo, conhecendo novas pessoas e lugares, convivendo com a organização de instituições que possuem os recursos necessários, o horário, o compromisso, a auto-estima, a necessidade de querer mais do viver”, escreve o escritor carioca.