São Paulo, quinta-feira, 28 de setembro de 2006
TEATRO
Kama Ginkas traz ao Brasil montagem baseada na miséria de Katerina Ivánovna
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Numa de suas noites numa engordurada taberna de São Petersburgo, o protagonista de “Crime e Castigo”, o estudante Ralskólnikov, é abordado por um beberrão que lhe conta sobre a vida miserável que leva: ele, Marmieládov, três filhos menores e a mulher, Katerina Ivánovna.
Esta personagem secundária do romance do russo Fiódor Dostoiévski, publicado em 1866, ganha corpo e voz no espetáculo teatral “K.I. do Crime” -suas iniciais. A montagem do diretor lituano Kama Ginkas (pronuncia-se “guinkas”), um solo da atriz Oksana Mysina, estreou em Moscou há 12 anos. Conquistou prêmios e viajou a outros países da Europa e EUA.
O Brasil pode assisti-la desde a semana passada, quando estreou no 7º Cena Contemporânea-Festival Internacional de Teatro de Brasília. Em São Paulo, haverá sessões de hoje (para convidados) a domingo, no Sesc Ipiranga. Na próxima semana, é a vez da também 7º edição do evento riocenacontemporânea, no Rio.
No livro, Katerina Ivánovna é apresentada sob o ponto de vista do marido. Na dramaturgia adaptada por Daníl Gink, 37, filho de Ginkas, 65, ela surge em desespero após a morte do marido, que se autodenominava “um porco”. Soma-se ao baque a tuberculose que abate a viúva, magra e irascível também por causa da fome, a ponto de encaminhar a filha mais velha, adotiva, para a prostituição.
“Como Dostoiévski, preocupamo-nos não somente com os problemas sociais, que existem na Rússia de ontem e de hoje, como em outros países. O que nos interessa é o problema do ser humano e a sua relação com Deus”, afirma Ginkas.
Inevitável a associação com Jó, personagem bíblico. “Todo humano tem o direito de perguntar: por que estão me obrigando a provações para mostrar o meu lado negativo? Todo ser contém as faces do santo e do demônio”, diz o diretor, que atende a reportagem em quarto de hotel em São Paulo.
Em “K.I. do Crime”, a personagem como que convida o público a entrar em seu quarto, um canto frio onde ela organiza um almoço em memória do marido, uma cerimônia tradicional entre os russos após a morte de um familiar.
Nesse espaço opressivo -em São Paulo, a garagem do Sesc Ipiranga é adaptada para cerca de 80 pessoas-, vem à tona o estado confuso de Ivánovna, em meio às crianças (três atores russo) ao seu lado.
Remoinho
Oksana Mysina interpreta o texto em russo, mas lança frases em português e inglês, aqui e ali, o que não significa clareza no discurso que remoinha.
Guinkas chegou a ensaiar a peça com a veterana Mariana Neyolova (que passou há pouco pela cidade com “O Capote”), mas problemas na agenda impediram que ela seguisse. Mysina abraçou o projeto de tal forma, desde a estréia em 1994, que o espetáculo tornou-se sua extensão orgânica. “Não poderia ser feita por outra mulher”, diz o encenador-pedagogo ligado ao Teatro do Jovem Espectador de Moscou (1918). “K.I. do Crime” encerra o projeto Estação de Teatro Russo-Brasil 2006, que desde julho trouxe cinco montagens daquele país, uma realização da Funarte/MinC, Sesc SP e Festival Internacional de Teatro Anton Tchecov, entre outras parcerias. Mais detalhes no site www.teatrorusso.com.br.