4.11.2005 | por Valmir Santos
São Paulo, sexta-feira, 04 de novembro de 2005
TEATRO
Peça de 1971 do Nobel de Literatura inglês joga com fragmentos de memórias e ganha montagem inédita em SP
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
A imagem de Harold Pinter, 75, foi estampada nos jornais há três semanas, por ocasião da Nobel de Literatura que lhe fora conferido. Sorrindo, apoiava-se numa bengala e trazia um curativo na testa, resquício de uma queda recente. Faz três anos, ele luta contra um câncer no esôfago. E, ainda assim, as aparências enganam.
Fragilidade? Não para quem, em agosto passado, atacava os EUA por “invadir” o Iraque, “ato bandido, ato de terrorismo estatal”, e por aí foi em suas palavras sem rodeios. Eis um conceito caro à obra do dramaturgo inglês: a busca da verdade. Ao mesmo tempo, ainda que em peças de acento realista, personagens e situações nem sempre se revelam palpáveis, abrindo janelas para planos absurdos, oníricos, por exemplo.
O público vai se deparar com essa dualidade em “Velhos Tempos” (“Old Times”), peça de 1971 que deixa de ser inédita nos palcos brasileiros a partir de amanhã, por conta de uma produção paulista que estréia no Viga Espaço Cênico, em Pinheiros.
Com tradução de Laerte Mello, que também atua no espetáculo, “Velhos Tempos” marca um deslocamento da fase anterior do dramaturgo, que os pesquisadores chamaram de “teatro da ameaça”.
Até a década de 70, seus personagens surgiam confinados dentro de casa -não à toa, sua primeira peça foi “O Quarto”, em 1956-, como que seguros em relação ao mundo exterior, ao cotidiano da cidade lá fora, invariavelmente Londres, que insistia em invadir o espaço do lar.
Em “Velhos Tempos”, a ação ainda se passa na sala ou no quarto, mas Pinter acresce o registro da memória, amplia as possibilidades de manejo dos personagens no tempo e no espaço.
Visita
Moradores de uma região afastada do centro londrino, o casal Kate e Deeley aguarda a visita de Anna, uma antiga amiga da mulher, que não a via há 20 anos. Só que, quando começa o espetáculo, ela, a amiga, já está no palco, acompanhando a inquietação dos anfitriões pela sua chegada.
“A visita de Anna será desestruturadora para o casal. Aos poucos, o público da peça vai percebendo que ela também já conhecia o marido da amiga. Vêm à tona uma série de fragmentos de memórias, de histórias que não há como dizer se realmente aconteceram ou não”, comenta o diretor Bruno Perillo, 35.
O público é instado a pisar o terreno das possibilidades, até encontrar suas próprias deduções. Mas quem é Anna? Uma ladra? A amante da mulher? A antiga amante do marido? Anna e Kate representariam duas faces de uma mesma mulher? Uma delas estaria morta, mas sobrevivendo por intermédio da memória deles? Ou seria Deeley um homem incapaz de compreender a alma feminina?
Estabelece-se o jogo, segundo Perillo, no qual o marido e a amiga disputam a posse pela memória da mulher. Todos estão na casa dos 40 anos e tentam reconstruir o passado por meio de um embate violento.
O elenco que procura dar conta desse jogo inimista é formado por Gisele Valeri (Anna), Heloisa Maria (Kate) e Laerte Mello (Deeley).
“Pinter escreve com se fosse uma partitura, pede uma musicalidade na voz do ator, em meio a longas pausas. O intérprete tem possibilidades infinitas, mas precisa manter o pensamento ativo, não fazer a mera representação dos silêncios”, diz Perillo, ele mesmo ator ligado ao grupo Folias d’Arte, desde 1999.
Sobre essa musicalidade a que se refere o diretor, certa vez, Harold Pinter declarou: “Eu não sei como a música pode influenciar a escrita, mas tem sido muito importante para mim o jazz e a música clássica. Eu tenho com freqüência uma sensação musical quando escrevo”.
Na semana que vem, outro texto de Pinter estréia em São Paulo: “O Zelador” é encabeçado por Selton Mello. O espetáculo é dirigida por Michel Bercovitch e fará temporada no Teatro Folha a partir do dia 12.